O novo Fundeb foi aprovado em duas votações na Câmara dos Deputados no dia 22 de julho. O projeto de Emenda Constitucional de autoria da deputada Professora Dorinha (15/2015) segue agora para o Senado. O portal da ANPEd conversa com José Marcelino de Rezende Pinto, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador na área de política e gestão Educacional com ênfase em financiamento da Educação, municipalização do ensino e regime federativo. O doutor pela Unicamp e integrante do GT 05 da ANPEd está desde 2003 (a convite da Campanha Nacional pelo Direito à Educação) ativamente envolvido no debate de mecanismos como o Custo Aluno Qualidade (CAQ).
O novo Fundeb está em fase de tramitação no congresso nacional. A projeto, amplamente discutido e construído coletivamente desde 2015, agora recebe de última hora propostas do governo, ausente do debate até então. Existe risco de desfiguração do propósito do fundo nesse sentido? Qual a importância de se manter as bases estabelecidas até então?
Entendo que a intervenção estapafúrdia do governo federal, mostrando total desconhecimento da dinâmica do Fundeb, além da arrogância de sempre (arrogância + ignorância), acabou ajudando no arranque final que uniu até a grande mídia (com as exceções de praxe, como a ‘turma do Insper’) ao enorme esforço da sociedade civil em defesa do Relatório da Deputada Dorinha que atuou com grande competência ao buscar os consensos possíveis, assegurando-se alguns pontos importantes, que destaco:
-
Incorporar o conceito de Custo Aluno-Qualidade que vincula o financiamento à presença de insumos nas escolas, assegurando condições adequadas de oferta a todas as escolas (depende de regulamentação);
-
Ampliação da complementação ao Fundeb para 23% até 2026 (hoje é 10%)
-
Proibição de que a União, Estados, DF e municípios contabilizem os gastos com profissionais da educação aposentados como sendo despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino;
-
Modelo de distribuição de recursos da complementação em formato híbrido, que garante os recursos distribuídos pela regra atual para os estados e municípios que já o recebem, mas, para os recursos adicionais, será considerado a disponibilidade total de recursos educacionais de cada ente (estado, DF, ou municípios) de tal forma que municípios pobres em estados considerados mais ricos passarão a receber recursos da complementação;
-
Vedação do uso, como fonte da complementação da União, de receitas do Salário-Educação, contribuição social que destina recursos para os programas complementares de alimentação escolar, livro didático, dinheiro direto na escola, entre outros.
Além do governo, economistas também entram no debate nessa última hora, elencando argumentos de gastos excessivos com folha de pagamento de professores e sobrecarga aos estados e municípios. Como você percebe esse debate sobre financiamento da Educação e papel do Estado, tendo em vista a defesa do CAQ e fontes de recursos?
A ‘turma do Insper’, Think (não muito) Tank da direita alucinada pelo mercado, capitaneada por Marcos Lisboa, apareceu na última hora dizendo que o dinheiro atual já é suficiente, pois o Brasil destina à educação pública um percentual do PIB equivalente àquele dos países ricos, mesmo argumento usado por Bolsonaro em sua campanha. A malandragem aqui é antiga, pois o que importa em educação é o valor gasto por aluno e o pessoal que financia o Insper sabe disso, pois coloca seus filhos em escolas no Brasil e no exterior, cuja mensalidade é maior do que o valor disponibilizado pelo Fundeb no estado de São Paulo em um ano (previsão em 2020 de R$ 5.381 para um aluno do ensino médio, valor que deve cair com a queda de receitas do fundo em virtude da pandemia). O atual valor mínimo do Fundeb que é destinado a 9 estados corresponde a cerca de R$ 300/mês. Na comparação internacional o Brasil gasta menos da metade da Coréia e menos de 1/3 da Finlândia. Outra alegação da mesma turma é que se gasta muito com salário e desfendiam estabelecer um teto (eles adotam estabelecer tetos para os direitos sociais; para os juros, o céu é o limite) de 70% às remunerações de profissionais da educação pública no Fundeb. Mais um exemplo de ignorância, ou má fé; educação é uma atividade intensa em pessoal. No setor público representa de 80% a 90%, e no setor privado, que envolve uma parcela significativa de lucro, esse percentual não é inferior a 70%. Na verdade, o que esse grupo deseja é que recursos públicos sejam destinados ao setor privado de ensino, como ocorre no Chile, com as consequências gravíssimas que podem ser vistas naquele país, com enorme aumento da desigualdade, além do endividamento das famílias. Felizmente nossa Constituição veda essa destinação, só a admitindo, no caso de falta de vagas na rede pública, e de caráter transitório, para instituições sem fins lucrativos.
De modo geral, qual a importância da aprovação do novo Fundeb neste contexto para a educação brasileira?
Em um momento de forte ataque, por parte do governo federal e dos setores ligados ao mercado financeiro, foi uma grande conquista da sociedade brasileira, em especial os itens que ressaltei. De toda forma, resta ainda a discussão no Senado e, principalmente, regulamentação da Emenda Constitucional, já que muitas questões, como a definição dos insumos do CAQ, os fatores de ponderação das etapas e modalidades, a própria destinação de recursos para o setor privado não lucrativo, foram deixadas para essa legislação complementar. É fundamental uma aprovação rápida e com poucas mudanças no Senado para que se garanta tempo para o debate da regulamentação nas duas casas, evitando-se o risco de uma Medida Provisória, que seria um risco imenso dados os interesses que movem esse governo. O curioso é que todo mundo agora quer ser pai do novo Fundeb, até o Bolsonaro e o Todos Pela Educação, ONG empresarial que dizia em Nota Técnica que 15% de complementação federal já estava de bom tamanho.
Nunca é bom esquecer que o CAQ começou a ser concebido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em 2002; foram 18 anos para incluí-lo com todas as letras na CF. Na reta final do novo Fundeb foi fundamental a aliança entre a Campanha e a Fineduca, entidade com filiados e compromissos comuns à ANPEd, com o peso das pesquisas sérias sobre financiamento da educação realizadas pelas universidades públicas, em uma bela aliança entre a sociedade civil, a universidade pública e a Câmara dos Deputados.