A Revista Brasileira de Educação (RBE) traz em seu volume 25, lote 3, de maio de 2020, artigo sobre "Ensino da Notação Alfabética e Práticas de Leitura e Escrita na Educação Infantil: uma análise das três versões da Base Nacional Comum Curricular", de autoria de Artur Gomes de Morais (UFPE), Alexsandro da Silva (UFPE) e Gabryella Silva do Nascimento (UFPE). Confira entrevista das autores para o portal ANPEd:
Vocês analisaram as três versões da BNCC (2015, 2016 e 2017). Como aparecem nestes documentos pontos relacionados à Educação Infantil como alfabetização, leitura e produção de textos?
A grande pesquisadora Sônia Kramer, há décadas comprometida na luta pela democratização de uma Educação Infantil de qualidade, em nosso país, já observava, em um ensaio publicado em 20101, que existe entre nós um grande tabu quando o tema é a presença da escrita nessa etapa de ensino. Infelizmente, esse tabu ficou patente na redação das três versões da BNCC.
No que concerne à iniciação das crianças no mundo da escrita, a BNCC pouco assegurou aos menores de seis anos o direito de avançarem na compreensão do sistema de escrita alfabética. Não estamos cobrando, de modo algum, que se iniciasse um ensino sistemático de correspondências entre letras e sons antes dos seis anos, o que é tarefa do ciclo de alfabetização. Mas sabemos que as crianças de meio popular precisam ser ajudadas a refletir sobre as palavras de seu cotidiano e a desenvolver sua consciência fonológica para, gradativamente, ampliarem sua compreensão sobre como a escrita funciona. Nenhuma versão da BNCC priorizou isto.
Esse tabu com relação ao ensino e à aprendizagem da notação escrita da língua na Educação Infantil parece ter contribuído para que a BNCC, em sua segunda e terceira versões, assumisse um tratamento um pouco mais cuidadoso com relação às práticas de leitura e produção de textos que aquele destinado à compreensão do sistema alfabético. Nessas duas versões, encontramos, de modo geral, uma orientação mais clara a respeito das práticas de leitura de textos e alguns objetivos, sobretudo na última versão, relativos à escrita de textos. Na segunda versão, porém, não se explicitava, na maioria das vezes, se as histórias escutadas ou relatadas pelas crianças deveriam ser lidas ou apenas contadas.
É significativo dizer que, na primeira versão do documento, não havia nenhuma proposição explícita de situações de leitura em voz alta, pelo(a) professor(a), de histórias e de outros gêneros de texto para as crianças, apesar de numerosas pesquisas já terem evidenciado a importância, desde a Educação Infantil, da leitura compartilhada e da conversa sobre o que foi lido na formação do leitor. Do mesmo modo, nessa versão do documento, também não havia nenhuma orientação para a atuação do docente como escriba na produção de textos escritos, outra experiência letrada amplamente recomendada na Educação Infantil.
Vocês consideram que a "Base Nacional Comum Curricular pouco explicitou o direito de as crianças avançarem em sua compreensão da escrita alfabética antes de ingressarem no ensino fundamental". Qual a importância disso e como isso poderia se dar?
Estamos desenvolvendo uma pesquisa em que comparamos aquilo que a BNCC de 2017 propõe para o ensino da escrita, na Educação Infantil, com o que aparece nos currículos voltados à mesma etapa e que estão em voga em cinco outros países (Portugal, Espanha, México, França e Canadá francófono). À exceção do México, onde as prescrições para o ensino da escrita antes do Ensino Fundamental ainda são tímidas, vemos que existe uma tendência generalizada de a escola pública dos demais países assumir como direito de todas as crianças a ampliação de sua compreensão do sistema de escrita alfabética.
Em Portugal, na Espanha, na França e no Canadá existe o compromisso explícito de levar as crianças a avançarem na apropriação da escrita alfabética, mesmo que não acabem aquela etapa usando letras convencionalmente. Há sempre clareza de que as crianças precisam ser ajudadas a refletir sobre palavras que rimam, que começam com sílabas parecidas, que observem que certas palavras são maiores ou menores que outras e desenvolvam outras habilidades iniciais de reflexão fonológica. Há o reconhecimento de que, sem treinar letras soltas, ao assegurarmos o direito de cada criança reconhecer as letras de seus nomes próprios e de seus familiares, assim como as letras dos nomes dos colegas de sala, estamos ajudando-as a evoluir na compreensão da escrita.
Sabemos que o fracasso na alfabetização, em nosso país, é um problema histórico que, via de regra, só atinge os filhos e as filhas das camadas populares. Ao negar às crianças menores de 6 anos o direito de avançarem na apropriação do sistema alfabético, a BNCC só ajuda a mantermos esse trágico apartheid educacional em nosso país. É lamentável que os autores e legisladores que impuseram o documento se prestem a promover esse fosso entre o sucesso na alfabetização das crianças pobres e o de seus pares de classe média.
A pesquisa identifica, no documento, tímidas as propostas de iniciação à produção de textos escritos, com predomínio das indicações de práticas de leitura de textos. O que é possível deduzir destas escolhas?
Na realidade, na primeira versão da BNCC, mencionava-se somente a elaboração de narrativas e de escritas não convencionais ou convencionais, sem explicitação clara de que tais narrativas seriam registradas por escrito. Já na segunda versão, apareceram objetivos que mencionavam a escrita de textos mais claramente ou de modo subtendido. Na terceira versão, é possível notar a orientação para a produção de gêneros textuais escritos de modo mais explícito, evidenciando, mais claramente, situações de produção escrita de textos pelas próprias crianças, por meio de escrita espontânea, e de produção de histórias, tendo o professor como escriba. Não há, no entanto, indicação para a produção de outros gêneros de texto, apesar de sabermos que, desde cedo, as crianças são capazes de diferenciar a linguagem que se usa para escrever uma história daquela utilizada em um bilhete, uma receita ou uma notícia. Parece-nos que o tom aligeirado com que os objetivos são formulados revela ainda o quanto não há um tratamento mais cuidadoso dos direitos de aprendizagem da escrita de diferentes gêneros textuais na Educação Infantil, tendo o(a) professor(a) como escriba.
A BNCC foi resultado de um processo tumultuado de diálogo e construção, com reclamações de falta de interlocução e consulta popular por partes de entidades como a ANPEd e de imposição de visão de competências. Os documentos expressam de alguma forma uma visão curricular predominante?
De fato, é preciso insistir sobre a ilegitimidade da BNCC. A versão instituída no final de 2017 não foi objeto de debate público. Recordemos que ela sofreu pesada interferência de fundações de grupos empresariais, com claros interesses privatistas, e que foi aprovada por um Conselho Nacional de Educação que já tinha sido muito desfigurado pelo governo golpista de Temer.
No que diz respeito ao ensino da escrita na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, vemos uma evidente falta de diálogo entre quem se responsabilizou por “fechar” o texto relativo a cada etapa. Por um lado, os responsáveis pela redação do capítulo relativo à Educação Infantil buscaram “invisibilizar” a presença da escrita no currículo, de modo que a própria palavra “escrita” foi subtraída do título do “campo de experiência” Escuta, fala, pensamento e imaginação, em que aparece de maneira fugaz e secundarizada. Por outro lado, contrariando o que foi legislado pelo Plano Nacional de Educação (PNE), que define um ciclo de alfabetização correspondendo aos três anos iniciais do Ensino Fundamental, os autores da parte da versão final da BNCC correspondente ao Ensino Fundamental reduziram o período de alfabetização apenas aos dois primeiros anos e assumiram uma perspectiva curricular inconsistente, tanto do ponto de vista teórico quanto didático, porque, ao mesmo tempo em que mencionam um trabalho ancorado em textos, defendem um domínio da “mecânica da escrita”. A ausência de diálogo (tanto público como entre os autores dos capítulos ou seções de cada etapa), assim como de uma perspectiva curricular coerente, salta aos olhos de quem queira analisar a BNCC com um mínimo de cuidado.
De forma geral, como questões de direito à educação e aprendizagem e desigualdades se expressam nestes documentos?
Consideramos que não alfabetizar na educação infantil não significa subtrair o direito das crianças menores de seis anos de brincarem com as palavras e de refletirem sobre elas. A omissão da BNCC a esse respeito contribui, em nossa opinião, para a manutenção das desigualdades sociais, sobretudo porque as crianças pobres e com menor convivência com a escrita tendem a concluir essa etapa da educação básica com menos conhecimentos sobre a língua escrita e sua notação que aquelas pertencentes a grupos economicamente favorecidos. Apesar de vivermos em uma sociedade na qual a escrita está intensamente presente no cotidiano das pessoas, inclusive no das crianças, é fato que milhões de meninas e meninos de meio popular concluem o ciclo de alfabetização sem conseguirem ler e escrever com autonomia, o que, via de regra, não ocorre com os herdeiros das classes médias.
Diferentes estudos já evidenciam que a maioria das crianças que ingressa, nas redes públicas de ensino, no primeiro ano do ensino fundamental começa a alfabetização formal sem compreender, ainda, que a escrita nota os segmentos sonoros das palavras, em grande desvantagem com relação aos seus pares de classe média. Insistimos que, embora a Educação Infantil não tenha como função alfabetizar, defendemos, assim como Magda Soares já declarou em algumas outras ocasiões2 e vem praticando no âmbito do Projeto Alfaletrar, que essa etapa de ensino deve garantir que a criança compreenda, pelo menos, que a escrita representa “as partes orais” das palavras e não os objetos ou seres a que aquelas palavras se referem.
1 KRAMER, S. O papel da Educação Infantil na formação do leitor: descompassos entre as políticas, as práticas e a produção acadêmica. In: FRADE, I. C. A. S. et. al. (Orgs). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 111-133.
2 SOARES, M. Aprendizagem lúdica. Revista Educação, 2011. Disponível em: http://www.revistaeducacao.com.br/aprendizagem-ludica/. Acesso em: 15 nov. 2018.