O portal ANPEd entrevista a pesquisadora Lara Carlette Thiengo, autora da tese de doutorado "Universidades de Classe Mundial e o Consenso pela Excelência: Tendências Globais e Locais". Defendida em fevereiro deste ano na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com orientação do professor e doutor Lucídio Bianchetti, a tese expõe, a partir de vasta análise documental, os procedimentos e efeitos da normalização da busca por "excelência" nos Institutos de Educação Superior num contexto de acumulação de capital. "Nessa corrida pela excelência, da qual participam países, blocos, grupos e universidades, está a necessidade de o capital garantir que o trabalho tradicionalmente realizado nos países mais avançados seja feito de forma qualificada e flexível também nos países considerados ‘emergentes’." Confira a entrevista:
Lara Carlette Thiengo durante a defesa da tese, em 19 de fevereiro de 2018 na UFSC.
Qual foi a motivação para você desenvolver essa pesquisa?
Entendo que a escolha da temática de pesquisa – As Universidades de Classe Mundial e o Consenso pela Excelência - está articulada ao interesse mais amplo de desvelar o processo de diferenciação no acesso à educação no âmago da sociedade capitalista, bem como as transformações da universidade neste contexto. Devo frisar, contudo, que esse interesse é acadêmico, mas também político e pessoal, visto que o envolvimento com o tema está relacionado com minha trajetória escolar e ainda aos obstáculos, financeiros e formativos, para acessar os espaços escolares.
De forma mais específica, o interesse e a delimitação da pesquisa desenvolvida durante o Doutorado – no PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina, entre 2014 e 2018 -, está articulado, especialmente: 1) com a atualidade e a relevância da temática e a lacuna teórica sobre a questão (que era ainda bem mais expressiva em 2014, quando iniciei o doutorado); 2) aos trabalhos desenvolvidos anteriormente, no contexto do mestrado, no qual pesquisei as tendências internacionais para a educação superior brasileira; 3) e também ao fato de fazer parte de um Grupo de Pesquisa sobre Trabalho e Conhecimento na Educação Superior (TRACES) e ser orientada por um professor com longa trajetória de estudos sobre este nível de ensino no cenário nacional e internacional (Professor Lucídio Bianchetti).
Destaco, contudo, dentre essas motivações, o lançamento do projeto governamental Top 200: Universidades de Excelência, que não chegou a ser implementado, apesar de sua divulgação pela Secretaria de Educação Superior (SESu), durante o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2011-2014). O programa elencava universidades federais para as quais os esforços e investimentos seriam concentrados almejando a conquista da excelência, uma vez que uma das metas era a de que essas universidades ocupassem um lugar de destaque nos rankings acadêmicos internacionais. Foram selecionadas inicialmente as Universidades Federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Minas Gerais (UFMG), do Rio de Janeiro (UFRJ), de São Paulo (Unifesp) e a de Viçosa (UFV).
Eu estava concluindo meu mestrado, na Universidade Federal de Viçosa (UFV), quando participei de um evento no qual o ex-reitor desta instituição e, na época, Secretário de Educação Superior do Ministério da Educação, Luiz Cláudio Costa, apresentou este Programa. Foi justamente neste momento que comecei a pesquisar especificamente sobre o tema e, então, pude começar a visualizar uma tendência que ganhava força em todo mundo, inclusive, nos países que não compõe o eixo dinâmico do Capital.
O termo "excelência" aparece de forma recorrente no mundo corporativo e cada vez mais também no educacional. Como isso se dá na prática no meio universitário? Existe uma tentativa de criar um consenso em torno da necessidade da "excelência" das instituições?
É interessante esta pergunta porque, justamente, estou me aprofundando sobre a questão de como a excelência vem sendo veiculada como sinônimo de qualidade nos diversos âmbitos do discurso, bem como em iniciativas, da educação superior.
No que se refere especificamente à pesquisa em questão, devo frisar que, na Tese, analisando os Planos de Desenvolvimento Institucionais (PDIs) de algumas universidades brasileiras, pude verificar que existem diferenças entre as IES que tem como objetivo/missão alcançar a ‘excelência’, em termos de qualidade, e as IES que visam atingir o nível de excelência no sentido de estar entre as melhores universidades do país, do continente e/ou do mundo. Do mesmo modo, foi possível verificar essas distinções e prescrições nos documentos dos Organismos Internacionais (OIs) e também nas Iniciativas de Excelência dos Estados-nação, blocos e grupos, especialmente no que se refere aos programas nos quais esteve focalizada a análise: o Programa Horizonte 2020 da União Europeia (UE) e o Programa Universidade em Rede do BRICS (BRICS NU).
Já no caso dos rankings internacionais a questão do status de excelência/classe mundial é mais explícita, visto que eles podem ser considerados ‘medidores’ da ‘excelência’. Inclusive, no terceiro capítulo da tese tento demostrar como os critérios dos rankings são, de modo geral, também as características centrais do modelo de Universidade de Classe Mundial proposto pelo Banco Mundial.
Sendo assim, a pesquisa permitiu concluir que um consenso acerca da ‘excelência’ acadêmica e científica vem afirmando-se, de maneira cada vez mais expressiva, no cenário da educação superior em todo mundo. Especialmente a partir dos anos 2000, diferentes atores, quais sejam, OIs, experts e think tanks, bem como diferentes estratégias, dentre as quais se destacam os rankings, têm atuado e sido utilizadas no sentido de corroborar a necessidade da concretização dessa ‘excelência’ a partir de um novo modelo de universidade, as Universidades de Excelência e/ou Universidades de Classe Mundial.
Considerando essas ‘convergências’, no âmbito das redes de políticas globais, estudar a produção de consenso sobre um modelo de universidade implicou compreender a relevância que a produção de consenso adquire na atual configuração do capitalismo, sob a égide do capital financeiro, visto que este age em uma perspectiva global e com referências culturais supranacionais. Assim, a produção de consenso sobre esse modelo de universidade e, de forma mais ampla, pela diferenciação da educação superior, é fundamental para a edificação de uma sociabilidade que atribui à universidade novos formatos e finalidades.
Como você desenvolveu a metodologia para tal pesquisa? O que mais lhe chamou a atenção?
Optei pela análise documental, considerando-se que a investigação sobre as tendências e manifestações da UCM pressupõe a compreensão da totalidade histórica e social, com seus condicionantes estruturais e conjunturais.
Destaco que os procedimentos metodológicos empregados foram embasados nas contribuições/diretrizes para análise de documentos da política educacional desenvolvidas pelos pesquisadores do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho (Gepeto/UFSC), bem como nos elementos da Análise Crítica do Discurso.
O corpus teórico-empírico da pesquisa foi constituído por duas dimensões. A primeira está embasada na revisão bibliográfica para o mapeamento da literatura existente sobre as UCMs, bem como em conceitos essenciais para dar sustentação teórica ao tema de estudo. A segunda é referenciada na investigação empírica de um conjunto de documentos. Fizeram parte do corpus de análise: documentos elaborados pelos OIs e intelectuais orgânicos relacionados à concepção de Universidade de Excelência ou de Classe Mundial; documentos emanados da UE referentes ao PB e ao programa H2020; documentos e diretrizes da BRICS NU; documentos e decretos de políticas e programas para a educação superior do governo brasileiro relacionados à temática; anais de seminários e outros eventos promovidos por representantes do governo ou universidades em parceria com institutos e Organizações Internacionais; e Planos de Desenvolvimento Institucionais (PDIs) de universidades públicas, considerando o recorte temporal 2000-2017.
Ao realizar o cotejo teórico-empírico, almejei relacionar a especificidade do objeto de pesquisa com a totalidade da qual ele é parte constitutiva, considerando que as propostas e iniciativas se constituem de contradições e forças contrárias, constantes movimentos e transformações, relações e inter-relações na construção da totalidade. Desse modo, o grande desafio foi buscar a essência do fenômeno, aquilo que está por detrás da aparência, ou seja, o caráter conflitivo, dinâmico e histórico da realidade.
Também é importante destacar que o tema desta pesquisa foi adquirindo materialidade ao longo do desenvolvimento da investigação. Se, quando a temática foi proposta, a apreensão derivava da ausência de materiais com os quais poderia trabalhar, no decorrer do processo – em curto espaço de tempo! – identifiquei um conjunto de desdobramentos que indicavam precisamente o oposto: a ‘ideologia da excelência’ mostrava-se mais vigorosa do que nunca, o que pôde ser constatado em um conjunto de documentos dos OIs e em programas e políticas de diversos países, no âmbito da UE, do BRICS e, particularmente, do Brasil, ganhando ainda mais notoriedade com a proliferação dos rankings acadêmicos.
Ou seja: foi preciso estar muito atenta ao movimento do real para tentar compreender a tendência que se anunciava e vem concretizando-se.
Essa noção de excelência reproduz em países emergentes uma competição com maximização de lucros em aspectos capitalistas? De que forma?
Assim como afirmou o Prof. Dr. João dos Reis Silva Júnior em seu Livro The New Brazilian University, o modelo de UCM decorre do modelo de universidade norte-americano que surgiu durante a década de 1980 – The New American University, caracterizando-se, pois, como fruto/componente do regime de acumulação de predominância financeira.
Contudo, este modelo ganha notoriedade enquanto orientação para a educação superior a partir da década de 2000, sendo difundido pelos intelectuais individuais e coletivos do capital e também por meio dos rankings acadêmicos, no âmbito das redes de políticas globais.
Neste regime, caracterizado pelo fluxo do capital monetário (fictício), torna-se latente a necessidade de aumentar a produtividade do processo de trabalho (real). Em resposta a esta demanda, as universidades passam a ser consideradas estratégicas para o desenvolvimento de ‘conhecimento matéria-prima’, ou seja, o conhecimento o mais ‘pronto’ possível para ser transformado em produtos de alta tecnologia, patentes, novos processos de produção e serviços e, por consequência, em lucro. Por isso, foi possível perceber a ênfase na inovação, como motor crucial da produtividade e da prosperidade econômica.
Nesta mesma direção, às UCMs é atribuído o papel de atuar na vanguarda do desenvolvimento intelectual e científico, tornando-se cada vez mais pontos focais de financiamento específico, especialmente no que tange à pós-graduação, cujo alcance real não é suporte da pesquisa acadêmica por si mesmo, mas serve de catalisador para a geração de inovações técnicas. Sendo assim, a orientação geral propalada pelos OIs é de que cada país deve possuir pelo menos uma UCM para participar do mercado global de forma competitiva – o que a torna uma instituição imprescindível.
À medida que a ciência e a tecnologia ocupam a centralidade nas universidades como mecanismos de acumulação privada de riqueza e reprodução da hegemonia, as instituições não apenas se voltam à criação de novos produtos e direitos de propriedade intelectual como também forjam um ambiente ideológico que legitima essas demandas como sua única e ideal função. Assim, não basta que a universidade se transforme e adeque-se em termos administrativos e científicos ao mercado. Ela também precisa internacionalizar-se. Justamente por isso, o grau de internacionalização das IES, em geral, identifica as UCMs. As novas formas de gestão, nesta perspectiva, tornam-se cruciais para que esta dinâmica se efetive.
Esse processo ocorre com mais força nos países que compõe o eixo dinâmico do Capital, embora, a constituição de UCMs nos países considerados emergentes está posta como um horizonte. No caso do Brasil, por exemplo, entendo que o país está em consonância com as tendências de políticas globais para a educação superior, de modo a normatizar-se e adequar-se ao mercado educacional mundial, o que configura uma cultura da excelência que passa a operar no âmbito da gestão, da docência e da pesquisa a partir da noção de competitividade.
Contudo, no caso brasileiro, os delineamentos no sentido de construir universidades de excelência apontam para a criação de universidades de serviços e/ou produção de ciência e tecnologia de ponta em algumas áreas específicas que garantam a integração do país no cenário global, ainda que de modo subalterno.
Há diferenças claras entre países com maior participação do Estado nas políticas e avaliação da pós-graduação, como o Brasil, e aqueles com interface mais direta com o mercado, como os Estados Unidos? Ou o consenso em torno da excelência produz efeitos comuns?
Entendo que estamos caminhando a passos largos para um processo de homogeneização que obnubila as características e peculiaridades de instituições, regiões, países e blocos. A pesquisa desenvolvida aponta neste sentido, indicando algumas convergências, ainda que, considerando os diferentes estágios de desenvolvimento econômico, científico dos países, Blocos e Grupos.
Algumas obras são particularmente importantes como indicadoras dessa tendência, como a obra Globalização, sociedade do conhecimento e educação superior. Os sinais de Bolonha e os desafios do Brasil e da América Latina, de autoria de Alex F. de Mello, e Toward a Global Phd? Forces & forms in doctoral education worldwide, de Maresi Nerad & Mimi Heggelund, obra esta resenhada por Celso Ferretti, na Revista Brasileira de Educação em 2011; as produções de Roger Dale, sobre a busca de uma “Agenda Globalmente estruturada para a educação”; a discussão a respeito da globalização do processo de Bolonha realizada Susan Robertson, e no caso específico do Brasil, alguns trabalhos do Professor Valdemar Sguissardi, indicando tendência rumo a uma ‘universidade mundial’, e a recente obra publicada pelo Professor João dos Reis da Silva Júnior The New Brazilian University, como mencionei anteriormente.
Na pesquisa, pude identificar que projetos e iniciativas de excelência foram implementado/as em diversos países, como Alemanha (Programa Iniciativa de Excelência), França (Operação Campus), Espanha (Campus de Excelência Internacional), Reino Unido (Estrutura de Excelência da Pesquisa), China (Projetos 985, 211 e 2011), Rússia (Projeto 5-100), entre outros. Somando-se a esses países, a própria União Europeia (UE), com o Programa Horizonte 2020, lançado em 2014 e, mais recentemente, os países que compõe o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), com a Universidade em Rede do BRICS, lançado em 2015, também passaram a desenvolver estratégias para promover a “excelência das suas universidades”, buscando o objetivo de alcançar melhores resultados nos rankings internacionais.
No Brasil, destaco o lançamento, em 2012, do Programa Top 200: Universidades de Excelência, que não avançou em seu formato original, apesar de ações e projetos em busca da ‘excelência universitária’ virem se tornando um componente marcante da política governamental brasileira, especialmente no que concerne à internacionalização. É ainda preciso mencionar que, em novembro de 2017 foi anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) a proposta da criação de um Fundo Público para universidades de excelência no Brasil, atrelado ao Programa de Excelência de Universidades e Institutos. Ao que parece, o componente fundamental do fundo e do Programa de Excelência é a tentativa de aprofundar a internacionalização da pesquisa brasileira e integrá-la mais diretamente ao setor produtivo nacional.
Tais projetos e iniciativas têm como característica comum a concentração de financiamento e esforços em algumas instituições já bem avaliadas pelos rankings e/ou com potencial para alcançar melhores posições, o que indica que a lógica operacionalizada pela concepção de UCM tem vigorado.
Entendo, desse modo, que o modelo de Universidade de Excelência é uma tendência global, ainda que os “pontos de chegada" para os diferentes estados-nação e instituições que participam dessa corrida pela excelência sejam diferentes. Se considerarmos os resultados dos rankings, por exemplo: o Brasil compete pelas primeiras posições? Certamente, não. Todavia, as tabelas classificatórias também permitem estabelecer comparações em relação a outros países de economias emergentes ou mesmo da América Latina, promovendo a competitividade não necessariamente pelas primeiras posições dos rankings, mas sim à luz dos exemplos de ‘sucesso’ das instituições que os ocupam.
Isso acontece porque a mundialização do capital permitiu ao capitalismo expandir fronteiras e unir agregados nacionais e continentais, constituindo assim relações de interdependência e aproximando seus métodos econômicos, formas sociais e níveis de desenvolvimento. Como explicita o Professor Álvaro Bianchi (2013), essas sobreposições dialéticas entre inovações tecnológicas, políticas e culturais produzidas pelos países avançados e as relações sociais nos ambientes ‘atrasados’ exprimem a essência desigual e combinada do desenvolvimento capitalista realizado pelos países retardatários. Assim, esse processo ocorre geralmente pela assimilação dos elementos mais modernos das nações avançadas e sua adaptação a suas condições materiais e culturais uma vez que o capital, em seu estágio mais desenvolvido, “é a luz universal que modifica todas as outras cores econômicas e sociais” (LÖWY, 1998, p. 74).
A longo prazo, qual tem sido o efeito no Brasil desse tipo de política, seja em nível nacional de competição entre as universidades ou visando a internacionalização?
Entendo que o aprofundamento das transformações da educação superior, que estão em processo há pelo menos três décadas, aparecem agora, no Brasil, sob nova roupagem, ainda mais elitista. Trata-se, pois, de um alinhamento de um núcleo de universidades brasileiras aos preceitos do modelo de UCM – modelo este já consolidado nos países que compõe o eixo dinâmico do capital.
Agudizou-se, então, a diferenciação na oferta da educação superior, tanto entre as IES públicas (via Reuni, expansão dos Institutos Federais) quanto em relação às IES privadas (Fies e ProUni). Assim, se por um lado a mercadorização da educação superior atinge níveis exponenciais, com a concentração das IES privadas nas mãos de grupos financeiros nacionais e internacionais, as iniciativas em direção à promoção do status de ‘Classe Mundial’, especialmente no âmbito da internacionalização e indução de áreas estratégicas, demonstram que o país também está inscrito na ‘corrida para a excelência’.
Neste contexto, ações e projetos em busca da ‘excelência universitária’ têm se tornado um componente marcante da política governamental brasileira, como se constatou com os programas de internacionalização CsF e PSDE, dentre outros, e também nos editais de financiamento de pesquisa temáticos.
Considerando o levantamento de dados atuais sobre a educação superior brasileira, tornou-se explicito que, no polo mais ‘alto’ desta diversificação/diferenciação, a expansão da PG ocorre de modo cada vez mais atrelado à tecnologia e à inovação.
Isso pode ser verificado a partir da concentração do número de bolsas de internacionalização (CsF), recursos do Proex, acordos de cooperação, programas de indução/financiamento, dentre outros, em um conjunto de áreas consideradas estratégicas. Também vão sendo criadas modalidades de PG mais articuladas ao mercado, como os Mestrados e Doutorados Profissionais e também Doutorados Industriais. Outra constatação foi a concentração dos programas de financiamento/indução em algumas universidades, e não apenas nas áreas estratégicas.
De acordo com o cruzamento de dados elaborado, na maioria das vezes, há convergência nas seguintes informações sobre um mesmo Grupo de IES: concentram recursos de projetos e bolsas focando a internacionalização; concentram PPGs considerados de excelência; são citadas nos principais rankings internacionais; ocupam as primeiras colocações dos ranqueamentos nacionais; faziam parte do Programa Top 200; compõem o Programa BRICS NU.
A lista de IES gerada a partir deste cruzamento fundamentou a seleção dos PDIs analisados, a partir dos quais se identificaram IES que apresentam como horizonte estar entre as melhores do país e/ou do mundo, tornando-se ou consolidando-se como Universidades de Excelência ou de Classe Mundial. Nestes planejamentos também se verificaram estratégias de promoção de internacionalização, interação com o setor produtivo, bem como são indicadas a necessidade de novas formas de gestão (líderes que compreendam o processo acadêmico e administrativo), reorganização dos currículos, acompanhamento/adequação/organização de dados e estratégias de divulgação e marketing a partir dos resultados dos rankings. Como sustentação de todos esses objetivos e estratégias apresentadas, foi possível localizar, assim como nos documentos dos OIs, o argumento que afirma o caráter fundamental destas IES para o avanço científico e econômico do país.
De forma geral, apesar de algumas instituições estarem mais avançadas em termos de organização e direcionamentos aos padrões de classe mundial, a excelência está posta como um horizonte, ainda que essas instituições citadas possuam nítidas diferenças em vários aspectos. É justamente este o papel da ideologia da excelência: normatizar, em âmbito global, um conjunto de critérios para determinar a excelência e operar de modo a promover a competitividade e a constante comparação entre as universidades.
Igualmente, o mapeamento e análise de eventos que ocorreram no Brasil no recorte temporal da pesquisa, permitiu compreender que esta ideologia também vem tornando-se componente cada vez mais indicativo de uma nova cultura acadêmica, e tende a ser perpetuada/naturalizada à medida que cresce o número de docentes que se adequam aos padrões de excelência estabelecidos, uma vez que a universidade continua sendo um espaço importante para produção de consenso e para o questionamento dele.
Em suma, o que se constata na pesquisa é que o modelo de World Class University vem sendo utilizado como um arquétipo indutor de condições para expansão do capital, no Brasil e no mundo, a partir da promoção de uma nova cultura institucional pautada pelos fundamentos empresariais, pela seleção de áreas estratégicas para inovação e, especialmente, pela promoção da internacionalização. Tendo isso em consideração, o horizonte da universidade brasileira parece-nos bastante complexo, uma vez que a ideia de universidade como espaço de ciência ‘não diretamente interessada em preceitos de mercado’ e formação humana ampla e crítica torna-se uma realidade/possibilidade cada vez mais distante.
A que conclusões sua pesquisa chegou? Você pretende expandir tal pesquisa?
Considerando a complexidade, atualidade e dinamicidade do tema é, no mínimo, ousado falar em conclusões. Exatamente por isso, a parte final da tese é intitulada “À guisa de conclusão – da universitas à Universidade de Classe Mundial: submissão aos desígnios do capital à luz da ideologia da excelência”. Irei concentrar-me em algumas dessas “considerações finais” então.
A análise dos documentos dos OIs (BM, Unesco e OCDE); as métricas e resultados de dois principais rankings internacionais (Times Higher Education (THE) e Academic Ranking of World Universities (AWRU); os documentos de orientação e normatização dos Programas H2020 e BRICS NU; os documentos da política educacional e científica brasileira e os PDIs de um grupo de universidades possibilitaram o cotejo entre os contextos de constituição das tendências e manifestações do consenso da excelência nas políticas educacionais ‘globais’, indicando para um núcleo comum de características fundantes para a edificação de uma UCM. Essas características são: internacionalização e atração de talentos; centralidade na pesquisa; inovação e transferência de tecnologia e formas mais flexíveis de gestão.
A internacionalização refere-se, em linhas gerais, à capacidade das universidades em atrair os mais capacitados discentes e docentes – os ‘talentos’ – considerando o cenário nacional e internacional. Assim, estas instituições necessitam contar com infraestrutura, laboratórios e condições de pesquisa de ponta, bem como ter flexibilidade para oferecer salários competitivos em um ‘mercado global de cérebros’.
Prescreve-se que a língua inglesa deve ser o idioma destas instituições, garantindo que as aulas e publicações científicas possuam caráter internacional. Uma nova cultura internacionalizada também deve ser requerida dos docentes destas instituições, os quais devem estar alinhados a redes internacionais e grupos de pesquisa que possibilitem publicações em coautoria. No que tange ao financiamento, afirma-se a necessidade de que as universidades de pesquisa internacionalmente competitivas devem contar especialmente com programas governamentais de financiamentos diferenciados, para além de outras estratégias de captação de recursos, como os fundos de endowment ou mediante articulações com o setor privado. O modelo de UCM também exige gestão que incentive visão estratégica, inovação, flexibilidade e autonomia. Todavia, a autonomia universitária é reduzida à gestão de receitas e despesas, enfatizando-se a diminuição de burocracias a fim cumprir as metas e alcançar os indicadores e a captação de recursos.
Ainda sobre esse aspecto, salienta-se, nos documentos, a relevância dos gestores profissionais, uma vez que a liderança e o compromisso com valores como a meritocracia são considerados como basilares para a constituição de universidades deste modelo. Assim, o modelo de gestão em voga consiste na separação entre a administração institucional e a finalidade da universidade (o processo de formação de profissionais, pesquisadores e de produção da pesquisa).
Tais alterações de âmbito administrativo e organizacional expressam a elaboração de uma espécie de ‘cultura de excelência’ ou de ‘classe mundial’, que se materializa, naturaliza e fortalece à medida que mais instituições, docentes e discentes passam a fazer parte dessa nova lógica, baseada no estímulo e no apoio ao desenvolvimento de uma cultura empreendedora; em novos padrões de produtividade e organização do trabalho; em novas formas de remuneração, dentre outras características.
A inovação e a transferência de tecnologia também são pontos. Este discurso está fundamentado pela lógica de que há um gargalo a ser resolvido no que tange à interação da universidade e o setor produtivo, considerando que a inovação é apresentada como o motor crucial da produtividade e da prosperidade econômica.
Nesta mesma direção, às UCMs é atribuído o papel de atuar na vanguarda do desenvolvimento intelectual e científico, tornando-se cada vez mais pontos focais de financiamento específico, especialmente no que tange a pós-graduação.
Como referido anteriormente, é interessante frisar que os principais indicadores dos rankings internacionais estão em consonância com essas características centrais do modelo de UCM, sendo estas tabelas cada vez mais importantes no âmbito da governança global da educação superior.
No que se refere às iniciativas de excelência analisadas, o H2020, dado o aspecto avançado em termos de integração dos sistemas de educação superior dos diferentes países do Bloco, garantido pelo Processo de Bolonha, potencializa a organização de redes de pesquisa e centros de excelência internacionais, além de possibilitar que a dinâmica de mobilidade internacional intra-bloco concentre os ‘cérebros europeus’ com maior facilidade. Cabe ressaltar que, apesar de a internacionalização se configurar como uma frente histórica da universidade europeia e também do Bloco, a ampliação dos programas direcionados para este fim no âmbito do H2020 expressa, principalmente e apesar das contradições, as premissas da UCM.
O Programa BRICS NU, por sua vez, também pode ser considerado uma iniciativa de promoção de excelência. Tendo em vista a recente criação do BRICS e a sua condição de agrupamento na geopolítica global, o lugar da educação na consolidação/fortalecimento do BRICS, especialmente o da educação superior, dá-se a partir de algumas características centrais: criação de uma ‘identidade’ para um Grupo formado por países tão distintos; constituição/ampliação de um mercado organizado de mobilidade acadêmica entre os países membros; possibilidade de ampliar as relações com outros países e blocos, considerando as condições de formação de parcerias e redes de cooperação; promoção da adequação/qualificação da força de trabalho para o atual estágio de desenvolvimento das relações capitalistas, tendo em vista que este é um grupo de países para os quais mais é direcionado o Investimento Externo Direto na atual conjuntura, o que exige a criação de infraestrutura e plataformas adequadas, tais como portos, aeroportos e também força de trabalho qualificada (educação).
A despeito das grandes diferenças em termos políticos, econômicos e culturais existentes entre os países do Grupo, o Programa BRICS NU indica o alinhamento do BRICS aos preceitos da ideologia da excelência, identificando o modelo de UCM como padrão máximo de ‘qualidade’, capaz de aumentar a reputação de seus centros de educação e pesquisa, para, no médio e longo prazo, alcançar uma posição de destaque na comunidade acadêmica mundial.
Considerando as aproximações, divergências e os avanços que, na contradição, essas iniciativas podem promover, programas como o H2020 e o BRICS NU também reforçam a tendência de aprofundamento da diferenciação da educação superior. Na medida em que ratificam a necessidade do modelo de UCM para competitividade dos países, reafirmam o direcionamento de recursos e esforços para algumas instituições e áreas, em detrimento das demais.
Em relação à análise desses programas, cumpre apontar as limitações desta pesquisa, uma vez que ambas as iniciativas foram lançadas recentemente e ainda estão em pleno processo de amadurecimento.
Do mesmo modo, como indiquei na pergunta anterior especificamente sobre o Brasil, os delineamentos da ‘excelência’ na política para educação superior brasileira, principalmente a partir da década de 2000. Os PDIs de um conjunto de universidades também possibilitou perceber que a tendência da excelência ganha cada vez mais força no âmbito das relações institucionais.
Sendo assim, a análise empreendida a partir das orientações dos OIs, os programas H2020 e NU BRICS e também o contexto brasileiro permitiu confirmar a hipótese central que norteou a pesquisa. Isto é: que o modelo/concepção de UCM é utilizado pelos agentes sociais de decisão como um arquétipo com o qual se induz a competitividade internacional e eleva-se ao paroxismo a diferenciação/hierarquização entre as universidades – bem como entre áreas estratégicas no interior destas – em diferentes escalas. Nessa corrida pela excelência, da qual participam países, blocos, grupos e universidades, está a necessidade de o capital garantir que o trabalho tradicionalmente realizado nos países mais avançados seja feito de forma qualificada e flexível também nos países considerados ‘emergentes’.
Contudo essa compreensão é obnubilada pelo discurso da excelência, a qual, a partir do referencial gramsciano, apreendemos como uma ideologia.
Essa Ideologia da excelência manifesta-se a partir: a) da construção de símbolos de identificação positiva e da adoção de um referencial de padrão partilhado (o ‘selo’ da excelência); b) da utilização de representações parciais como se fossem de interesse geral; c) da recorrência de narrativas que buscam ratificar a importância da universidade de excelência (‘os casos de sucesso’); d) da sustentação de relações de dominação por meio de sua negação ou ofuscação; e) da segmentação dos indivíduos em grupos, a partir de argumentos meritocráticos f) da diferenciação da educação superior, embora nominada como diversificação; g) do ocultamento do caráter sócio-histórico das ações, ao pretender fazer com que estas iniciativas, apesar de seu caráter transitório, sejam apresentadas como permanentes, necessárias e ‘salvadoras’; h) da compreensão da ciência e, especialmente, da inovação como solucionadoras dos problemas sociais, mascarando as relações capital-trabalho.
Essa ‘Ideologia da Excelência’ vem induzindo o aprofundamento da diferenciação institucional ao tentar naturalizar a concentração de recursos em algumas áreas e/ou IES, garantindo alguns estabelecimentos ‘de excelência’ como loci de produção científica ‘de ponta’, de produção de ‘inovação’ em áreas estratégicas, reservando às demais instituições à função de transmissoras do conhecimento e da formação técnica, cada vez mais concentradas no setor privado. Não por outro motivo uma das epígrafes da Tese foi o adágio bíblico segundo o qual: “Ao que tem muito, mais lhe será dado e ele terá em abundância. Mas ao que pouco tem, até mesmo o pouco lhe será tirado.”
O modelo de UCM, fundamentado pela Ideologia da Excelência, é, então, uma tendência global em termos de políticas para a educação superior e vem sendo utilizada como um arquétipo com o qual se induz à competitividade internacional e eleva-se ao paroxismo a diferenciação/hierarquização entre as universidades em diferentes escalas; entre os diversos departamentos no interior destas, a partir de áreas estratégicas, bem como incita transformações na própria concepção de universidade.
Assim, apesar da promoção de algumas instituições de ponta serem apresentadas como iniciativas progressistas, que remetem à soberania nacional em termos de avanço científico e tecnológico em áreas estratégicas, ela não revela as características da relação capital-trabalho que subjazem a um projeto histórico da classe dominante.
A análise empreendida, então, permitiu constatar a emergência e a propagação do modelo de UCM, como expressão do aprofundamento da diferenciação da/na educação superior e da rendição ao mercado, em patamares impensáveis até há pouco, sendo esta uma tendência que ganha força em detrimento da concepção de universidade enquanto universitas.
No que se refere às minhas pretensões de pesquisa, destaco que tenho como objetivo ampliar a investigação sobre a ‘ideologia da excelência acadêmica e científica’ buscando compreender suas implicações no âmbito de universidades brasileiras a fim de identificar os impactos, convergências, divergências e resistências ao modelo de UCM, bem como as articulações provocadas pelos rankings internacionais, o que almejo realizar durante o pós-doutorado.
Muitas são as questões que saltam aos olhos a partir das considerações desta pesquisa, por isso, entendo que este tema merece a atenção dos pesquisadores da educação superior de modo mais amplo e também a preocupação de todos que lutam pela universidade pública brasileira.
Termino, então, esta entrevista com uma das epígrafes que iniciaram a Tese: Ao que tem muito, mais lhe será dado e ele terá em abundância. Mas ao que quase não tem, até mesmo o pouco que tem lhe será tirado. (BÍBLIA. EVANGELHO DE SÃO MATEUS, CAP. 25, VERS. 29)
LÖWY, M. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Revista Outubro, [S.l], 1. ed., p. 73-80, 1998.
SILVA JÚNIOR, J. R. The new brazillian university. A busca de resultados comercializáveis: para quem? Bauru: Canal 5, 2017.