A Revista Brasileira de Educação (RBE), publicada em fluxo contínuo e digital desde outubro de 2017, traz em seu volume 23 no mês de fevereiro artigo sobre "Educação superior no PNE (2014-2024): apontamentos sobre as relações público-privadas". O texto, de autoria de Lalo Watanabe Minto (Unicamp), aborda o caráter privatista presente no texto final do Plano Nacional de Educação (PNE). Segundo o autor, esse tensionamento entre público e privado se expressa em metas que dão vasão ao destinamento de recursos ao setor privado através de programas como FIES e PROUNI. Confira entrevista:
Seu artigo traz a afirmação de que "A educação estatal mantém-se na esfera da contradição, porém cada vez mais distanciada daquele caráter público, pois esvaziada dos mecanismos de controle sobre o capital de outrora". De uma forma idealizada, a educação pública seria um contraponto à privada. Porém, como o senhor analisa, de que maneira o Estado e a educação estatal já estariam hoje de forma associada a questões de mercado e capital?
Há uma ideia de fundo no texto, que é a de que o caráter público da educação não se define apenas pela condição estatal. Ou seja, escola estatal não é sinônimo de escola pública, assim como o Estado e a educação privada não se excluem por princípio. Se observarmos a história da educação brasileira, não teremos nenhuma dificuldade em constatar isso. Na fase atual do capitalismo, porém, as pressões por ampliar a esfera dos negócios atingem de forma inédita o campo educacional. Nesse contexto, sim, o Estado e as esferas institucionais onde se elaboram as políticas educacionais têm de lidar cada vez mais com os interesses do mercado e, em sentido amplo, do capital. Os representantes desses interesses definem agendas, ocupam cargos estratégicos, abocanham parcela crescente de recursos públicos, sem os quais o negócio educacional não prospera. Não é à toa que o pensamento vai se adequando a essas condições, participando também das disputas. A indiferenciação entre público e privado, isto é, a noção de que um pode ser o outro, está presente no PNE e é uma noção chave na demarcação desse período que chamei de distanciamento da educação estatal em relação ao caráter público que pôde ser estabelecido em momentos anteriores.
Qual o papel da universidade, em seu projeto histórico, neste contexto?
Embora a universidade seja uma instituição com tradições e formas de organização que não mudam radicalmente da noite para o dia, ela está sempre inserida num contexto determinado. No Brasil, nesse período recente em que se elaborou o PNE 2014-2024, diria que a universidade brasileira está vivenciando uma fase avançada de reformulação, que a afasta cada vez mais de um projeto de universidade que nos foi possível almejar, especialmente, no pós-Ditadura. Aquela universidade pública/estatal, gratuita, laica, democrática e com padrão unitário, da inseparabilidade ensino/pesquisa/extensão, defendido por diversas entidades do campo educacional, hoje está mais distante. É um distanciamento duplo: de um lado, por uma política educacional que estimula a desigualdade estrutural (entre tipos de instituições e, dentro delas, entre áreas de conhecimento) e fomenta a chamada “educação terciária”, não universitária, sobretudo privada; de outro lado, pelo descompromisso ideológico que vai se propagando nas instituições universitárias, instadas a existirem e se pensarem como “de excelência”, acima das demais. A cobrança que se faz sobre as universidades e sobre o trabalho nelas desenvolvido, hoje, não é favorável a um compromisso amplo em favor de uma educação superior com caráter público. Nesse sentido, e sem esquecer que há contradições, o papel da universidade hoje é predominantemente conservador.
O PNE foi comemorado como uma vitória da defesa de uma política educacional pelo Estado. No entanto, o senhor aponta que o documento traz um profundo caráter privatista, frente aos interesses do capital e de entidades privadas presentes em sua versão final. Quais metas do plano corroboram isso e por que?
O meu enfoque foi sobre as metas e estratégias que estimulam e fortalecem o setor privado no ensino superior. Mas estas abrangem toda a educação, sobretudo, na forma das transferências de recursos estatais para o setor privado (Prouni e Fies, no nível superior, Pronatec, no ensino técnico-profissionalizante, parcerias público-privadas, na educação básica de maneira geral). Não discordo de que tenha havido conquistas importantes no PNE, mas é preciso avalia-las em função do antes, durante e depois do Plano. Setores que estavam vinculados ao governo avaliaram de forma positiva os ganhos do plano e a forma como foi conduzida a Conferência Nacional que o definiu. Já a oposição, não comemorou tanto assim. Um bom termômetro, ademais, é verificar a posição do setor privado, que, pelo menos, no caso do ensino superior comemorou bastante a versão final do PNE. Ao meu ver, um dos motivos da celebração do governo em relação ao PNE foi justamente o fato de ter conseguido instituir uma política de Estado favorável ao ensino privado.
O artigo afirma que "se há dúvidas quanto à distribuição dos recursos públicos que o PNE permitirá realizar, está claro que dois mecanismos de transferência de recursos para o setor privado serão favorecidos e ampliados na próxima década — PROUNI e FIES —, o que vem sendo demandado, sistematicamente, pelas entidades representativas do setor". Qual seria o caminho para não se repetir essa expansão da educação via financiamento de instituições privadas?
O caminho é velho conhecido: ampliar a rede estatal de ensino superior. Já está comprovado, por exemplo, que o montante de recursos que foi destinado nos últimos anos para programas como o Fies e o Prouni poderiam ter sido usados na rede federal. Provavelmente, com maior eficácia e, certamente, resultando em educação de maior qualidade. Aqui, poderíamos retornar à primeira pergunta: a apropriação de recursos públicos pelo setor privado institui uma dinâmica de rentabilidade nos negócios que depois é difícil de ser retirada. Há pessoas envolvidas, estruturas montadas, profissionais contratados (ainda que precariamente, na sua maioria). Do ponto de vista do capital, forma-se uma rede de produtos, serviços e circulação que aumenta o seu poder de barganha em relação ao poder público. Seus representantes formam bancadas no Congresso Nacional, enfim, um setor de classe com capacidade de impor demandas para o Estado. Por isso, a reversão dessa política também é um processo e não uma mera decisão pontual. Uma política de longo prazo é fundamental para isso, razão pela qual um PNE de cunho privatista deve ser motivo de crítica e oposição. Discursos positivos não alteram essa realidade.
Nas considerações finais, o senhor concluir que "não há razões para supor que o PNE contribuirá para modificar a educação superior que temos hoje: multifacetada, fragmentada, destituída de uma organização sistêmica e amplamente privatizada". A implementação do Plano Nacional de Educação, mesmo com tais contradições, encontra-se sob forte ameaça devido a cortes orçamentários (vide Lei do Teto) e mesmo pela visão de estado do governo atual. Como o senhor avalia esse contexto atual, caso o PNE deixe de ser implementado?
Essa pergunta é essencial porque ajuda a problematizar a visão que se construiu sobre o PNE e suas conquistas. Chega a ser curioso que, em razão das prioridades políticas que se fortaleceram depois do Golpe de 2016, até mesmo os benefícios ao setor privado podem estar ameaçados. Aí se inicia uma nova rodada de disputas. Naquelas que foram travadas durante a tramitação do PNE, predominou a visão conservadora de que os gastos com educação privada poderiam ser incluídos na contabilização dos 10% do PIB para a educação (meta 20 do plano); hoje essa demanda ficou um pouco deslocada dada a limitação imposta pela EC 95/2016. Agora, do ponto de vista das conquistas possíveis que a educação superior pública teria, em termos de expansão e financiamento, caso o PNE fosse implementado, podemos afirmar que estão abandonadas. Os cortes da EC 95/2016 radicalizaram iniciativas anteriores como a DRU e a Lei de responsabilidade fiscal, que ao seu modo buscavam burlar as obrigações legais em termos de financiamento à educação. A não implementação do PNE, portanto, abre precedente nefasto, cujas consequências ultrapassam as metas do plano. Uma delas é o esvaziamento de espaços tradicionais de disputa por recursos, fortalecendo as negociações fechadas entre governos e setor privado, sem qualquer tipo de participação. O novo FIES, mais permeado pelos interesses do setor bancário e financeiro do que nas versões anteriores, e a reforma do ensino médio, negociada diretamente com o empresariado, são exemplos disso.
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