A Revista Brasileira de Educação (RBE), em seu volume 24, traz o artigo "Estágios supervisionados e o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência: duas faces da mesma moeda?", de autoria de Selma Garrido Pimenta (USP) e Maria Socorro Lucena Lima (UECE). Confira bate-papo com as autoras e entenda as especificidades do programa, alcances, limitações e desafios para a formação de professores.
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) foi instituído em 2007, com atividades a partir de 2009. O que a proposta trouxe de mudanças efetivas e como é possível avaliar essa década de PIBID? Quais são os principais avanços ou problemas do programa?
O artigo ora publicado na RBE se debruça sobre esses avanços e problemas. De modo geral, incluindo resultados de pesquisas, é possível observar que os professores das disciplinas específicas das licenciaturas ligados ao PIBID têm demonstrado maior interesse pela escola, por dela se aproximar e estudar as questões que envolvem o ensino nos contextos nos quais se realiza. Quanto aos alunos, o ponto alto é a oportunidade de se aproximarem do cotidiano escolar, durante o processo formativo, antes mesmo da efetivação do estágio. Quanto aos professores que atuam nas escolas de educação básica, o PIBID simbolizou a oportunidade de formação contínua e de leitura crítica do exercício profissional, o que se constitui como importante referência para o desenvolvimento profissional docente. Por outro lado, nota-se uma superposição de finalidades entre o Programa e os estágios supervisionados, sendo que para estes não há bolsas nem para os docentes que com ele se envolvem, nem para os estudantes, o que configura um grande problema, uma vez que os estágios são componentes obrigatórios do currículo. Com o PIBID foram criadas bolsas nos cursos de graduação para a Iniciação à Docência - até então as bolsas eram restritas à Iniciação Científica. No entanto, elas são numericamente muito inferiores (cerca de 90 mil) ao total de alunos que cursam Licenciatura no país (cerca de 1.600.000), segundo dados do Censo da Educação Superior, 2017, MEC/INEP. Um dado interessante que tem sido observado é uma certa tendência de aumentar o número de estudantes em licenciaturas, por efeito das bolsas oferecidas. Um sério problema que não foi resolvido nestes dez, doze anos, se refere a não consolidação do Programa como uma Política de estado; enquanto simples programa, permanece com estatuto frágil, podendo ser suprimido conforme os desatinos do(s) governante(s) de plantão. Por fim, outro problema foi a expansão do Programa, mantido exclusivamente com verbas públicas governamentais, para as instituições privadas: por que estas nào mantêm programas de bolsas com recursos próprios?
A questão que se pode colocar após estes anos decorridos é: se o programa mostrou avanços na formação teórico-prática dos estudantes futuros professores, por que não torná-lo obrigatório, com a atribuição de bolsas para os envolvidos (estudantes, docentes das universidades e docentes das escolas públicas) de todas as instituições superiores públicas do país? Por que manter as instituições privadas no Programa?
A formação de professores aparece como um dos principais gargalos da educação pública no país, envolvendo questões complexas como políticas públicas e financiamento. Vocês identificam um quadro de fragmentação, individualismo e competição no cenário atual. Quais os principais desafios da formação de professores no país?
A formação de professores, como fenômeno social, sofre os reflexos do contexto em que está inserida. Dessa forma, os desafios se situam na histórica falta de reconhecimento do magistério como profissão, que implica em processos de precarização da docência e falta de condições dignas para desenvolvimento dos processos do ensinar e do aprender, deste trabalho de professorar. O financiamento é um aspecto importante a ser considerado, sobretudo com as decisões políticas postas ao orçamento e que preveem o congelamento de investimentos em gastos públicos durante 20 anos, o que afeta de maneira negativa as políticas educacionais. As tensões e contradições postas pelo contexto atual acabam por induzir instituições de educação básica e superior, assim como os profissionais que nelas atuam, a buscar estratégias de sobrevivência, incorporando ao seu fazer elementos que se relacionam às perspectivas da produtividade e performatividade, alimentando, de certo modo, a corrida por bons resultados de forma cada vez mais individual e fragmentada. Desse modo, o principal desafio ainda presente na formação de professores no Brasil é a superação do “como fazer” para o “todo fazer”, trazendo a pesquisa para o campo da formação docente, com o mesmo tratamento valorativo que é dado às outras áreas do conhecimento. As políticas que interferem nos processos de formação docente, no contexto atual são decorrência direta de um processo de mercantilização da educação como parte do elenco das novas estratégias de desenvolvimento sustentável e de crescimento econômico, defendidas pelo Banco Mundial. Essas estratégias se viabilizam por intermédio do financiamento de projetos que objetivam o combate à pobreza como foco das suas atividades, ao mesmo tempo em que determinam as diretrizes e estratégias para a educação em países de cuja lista o Brasil faz parte.As prioridades da citada política incidem negativamente sobre a formação de professores ao acentuar como foco dos cursos as práticas de ensinar em detrimento das teorias e ao implementar sistemas de avaliação e premiação que precarizam o trabalho docente ao instituir abono no lugar de aumento salariais. Essas medidas somadas a tantas outras passam pela vida profissional dos professores sem que eles compreendam com clareza os determinantes e a intencionalidade de tais ações.
O que a resolução de 2015 do CNE, que definiu Diretrizes Curriculares Nacionais, trouxe de avanços?
Alguns destaques para os avanços colocados na Resolução de 2015:
a) valoriza a formação de professores compreendendo, além da formação inicial, a formação contínua e valoriza a formação dos profissionais do Magistério, incluindo aqueles que exercem as demais atividades pedagógicas, para além da docência, como a de gestão da Educação Básica. (art. 3o. § 4o);
b) a afirmação do compromisso público do Estado com o desenvolvimento e a formação dos profissionais do Magistério, como condição essencial para assegurar o direito de crianças, jovens e adultos a uma educação de qualidade que garanta a emancipação dos grupos sociais, atenta ao reconhecimento e à valorização da diversidade;
c) o destaque para a importância de sólida base teórica e interdisciplinar, que reflete a especificidade da formação docente;
d) a valorização de uma práxis formativa. Desse modo, valoriza a promoção de espaços para reflexão crítica e desenvolvimento da criatividade no processo pedagógico, moral, social e político com uma educação emancipatória.
Com vistas a consolidar as licenciaturas, o artigo traz proposições no sentido de que o estágio curricular se constitua como eixo articulador do Projeto Político Pedagógico dos cursos. Como isso poderia se dar e qual o papel do estágio no caminho de uma "praxis formativa"?
O papel do estágio está para além dos projetos e programas que surgem temporariamente, dependendo dos objetivos e metas da política governamental. O componente curricular denominado de Estágio Supervisionado pode ser assumido como “práxis formativa” do Projeto Político Pedagógico da instituição, quando fundamentado em uma pedagogia do conhecimento, que tem a pesquisa como eixo articulador dos processos formativos e que tem a escola pública como ponto de partida do curso e ponto de chegada da formação. Mesmo de forma incompleta e em construção, ele pode se solidificar, a medida que a relação teoria e prática, desenvolvida no curso como um todo, tenha caráter de educação científica crítica, emancipatória. Enquanto oportunidade de diálogo pedagógico com as escolas de educação básica, o Estágio Supervisionado se constitui, ainda, como uma importante referência para a reflexão sobre a formação inicial e contínua de professores. Os desafios e demandas observados por ocasião do desenvolvimento das diferentes atividades de Estágio precisam se constituir como pontos de discussão sobre o que se encontra proposto nos projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura, de modo a promover uma aproximação cada vez mais crítica e dialógica com os contextos de exercício da profissão e destes com o contexto acadêmico, numa via de mão dupla de (re)construção de conhecimentos sobre a docência e (re)configuração da própria profissão.
Considerando a autonomia relativa que marca a profissão docente, propomos que no PPC de seus cursos de licenciatura as instituições passem a considerar 800 horas para os Estágios Curriculares; para isso pode-se somar as 400 horas definidas para esse componente nas DCN/02/2015, com as 400 horas definidas para a Prática como Componente Curricular. Também se pode considerar como estágios novidades de programas especiais que os legisladores venham a inventar, como por exemplo o PIBID e a Residência Pedagógica.
Com vistas à consolidação das licenciaturas, propomos que o Estágio Curricular se constitua como eixo articulador de todas as disciplinas e atividades (as tradicionalmente denominadas de práticas e as denominadas de teóricas) que compõem o currículo para que, de fato, nele e com ele possa assumir sua finalidade de instrumentalizar teórica e praticamente a práxis docente. Entendendo que o estágio é constituinte de todas as disciplinas, percorrendo o processo formativo desde seu início, os cursos de licenciatura devem contemplar várias modalidades de articulação direta com as escolas e demais instâncias nas quais os professores atuarão, apresentando formas de estudo, análise e problematização dos saberes nelas praticados. O estágio também pode ser realizado como espaço de projetos interdisciplinares, ampliando a compreensão e o conhecimento da realidade profissional de ensinar. As experiências docentes dos alunos que já atuam no magistério, como também daqueles que participam da formação continuada, devem ser valorizadas como referências importantes para serem discutidas e refletidas nas aulas.
Considerar a escola pública como o espaço primeiro e privilegiado para a realização dos estágios curriculares. Por quê centrar o estágio curricular na escola pública? Se não por outra razão, porque se concentra cerca de 82% das matrículas da educação básica[1], atendendo em sua maioria a população de crianças e jovens carentes, que a política privatista brasileira insiste em manter excluída do processo escolar de formação humana.
Formar professores que abracem a perspectiva transformadora das situações que fazem do ensino um instrumento da elite capitalista neoliberal dominante. Que o transforme em possibilidade de emancipação das crianças e jovens oprimidos socialmente por essas elites, que buscam mantê-los nessa condição de explorados. Por isso, explicitamos que o professor que queremos formar é o profissional crítico reflexivo, pesquisador de sua práxis docente e da práxis que ocorre nas escolas.
Por isso também, propomos que o projeto formativo dos professores nos cursos de licenciatura seja articulado às escolas públicas, de modo a que a universidade e as escolas públicas sejam parceiras na formação inicial (de seus alunos de licenciatura) e contínua (dos docentes da escola pública e dos docentes da universidade). É ali, a partir das análises que o curso lhe propicia e da imersão na realidade contraditória da escola pública, que os estudantes poderão se compreender como sujeitos identificados com sua profissão e compreender o sentido e o significado de sua docência para a formação humana dos alunos que, de um modo ou de outro, conseguem nela adentrar e permanecer. Os estágios em relação direta com as escolas públicas pode instrumentalizar teoricamente os estudantes para que abracem essa perspectiva transformadora.
A descontinuidade de políticas é um fator agravante na formação de professores. Tendo em vista discursos reacionários que ganham o poder e o avanço da mercantilização do ensino, como se configuram as perspectivas de formação de professores atualmente no país?
As perspectivas de formação docente, nesse momento histórico, se encontram na esfera das interrogações inerentes ao plano governamental que ora se configura. O nosso desejo é que a educação, os educadores e educandos sejam valorizados com mecanismos fundamentados em uma pedagogia do conhecimento, em que a pesquisa aponte caminhos para a dignidade profissional e formação contínua, formação integral e cidadã nos contextos sociais em que estão inseridos. Ou seja, é preciso explicitar cada vez com mais clareza que estamos defendendo uma formação emancipatória, crítica, reflexiva e propositora, conforme Freire, de transformações das péssimas condições das escolas e das precárias condições de trabalho dos docentes. Esperamos que importantes conquistas realizadas ao longo da história de nosso país, que dizem respeito à perspectiva da inclusão, possam ter continuidade e que a formação de professores possa trazer efetivos contributos para estratégias de materialização das mesmas, através da articulação entre as ações de ensino, pesquisa, extensão e gestão.
[1] Fonte: MEC/INEP, 2014.