A Revista Brasileira de Educação (RBE), publicada em fluxo contínuo e digital desde outubro de 2017, trará em seu volume 23 no mês de julho de 2018 o artigo "Escola sem partido - elementos totalitários em uma democracia moderna: uma reflexão a partir de Arendt". Na pesquisa, os autores Alexandre Anselmo Guilherme e Bruno Antonio Picoli buscam mostrar como os Projetos de Lei n. 867/2015 e n. 193/2016 que estão em tramitação na Câmara e no Senado carregam um viés totalitário no sentido de uma separação entre ensino e educação e da negação da pluralidade e da ação política. "É emergente a necessidade de refletir sobre tais propostas, sobretudo em razão da alta carga emocional que carregam consigo no contexto atual, marcado por ruptura da ordem democrática vigente desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988."
Alexandre Anselmo Guilherme - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS
Bruno Antonio Picoli - Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, SC
Confira a entrevista:
As formulações que sustentam o Escola sem Partido partem de uma ideia de que o ambiente escolar tem sido instrumentalizado com viés ideológico, o que necessitaria de uma higienização para que a escola se limite a transmitir conhecimento, deixando a educação de valores ao ambiente familiar. De que forma isso vai de encontro à própria noção de educação?
É importante antes de responder ao ponto levantado, e para conseguir fazê-lo da devida forma, reconhecer que um dos grandes acertos do movimento foi a escolha do nome, afinal, não é do interesse de ninguém uma escola “com Partido”, da forma como o senso comum entende. Por outro lado, e agora atacando a questão levantada, precisamos de uma Educação que tome partido, ou seja, que se posicione frente às demandas que emergem, que tome parte pela democracia, pelos direitos humanos, pela dignidade da pessoa humana, princípios que não são estranhos à nossa legislação e atribuições da Educação. A grande falácia do movimento ESP é de procurar higienizar a escola de visões do mundo, mas ao fazer isso, tenta impor a sua própria visão de mundo de uma escola destituída de discussões. A proposição de que a escola apenas instrua e não debata valores implica em uma reificação da opinião porque nada do que um indivíduo pensa ou acredita pode ser discutido e questionado. No limite disso, e se seguirmos Hannah Arendt, não há educação, porque educar é questionar valores, é formar o cidadão de amanhã, e isso é uma atribuição da família, da sociedade e do Estado.
O artigo coloca que ao tentar banir a reflexão, a pluralidade e o agir e pensa político diante do mundo, o ESP estaria incorrendo numa postura totalitária. O que o pensamento de autoras como de Hannah Arendt tem a nos alertar sobre essa relação entre educação, liberdade e risco de totalitarismo na democracia?
Hannah Arendt, como tantos outros que viveram os horrores do totalitarismo no século XX, estava preocupada com as formas como o totalitarismo se reproduz mesmo em sociedades democráticas. Na leitura da autora, uma das formas é o crescente impedimento – deliberado ou não – de se pensar o sentido das coisas que estamos fazendo, ou seja, o divórcio entre o pensamento e o conhecimento. De forma mais simples, a instrução mensurável e o suporte tecnológico recebendo maior valor do que a educação e o pensamento. Banir a reflexão e a discussão de temas que geram desconforto é impedir que se passe a pensar, a tentar ver o mundo, a partir da perspectiva do “outro”, daquele que não sou eu, que não acredita nas coisas que eu acredito, que não vive a sua vida como eu vivo a minha e, a partir disso, buscar novas formas de entendimento e conviver com o outro, de estar aberto a outras possibilidades e visões de mundo. O banimento do caráter educativo da escola reforça barreiras entre eu e o “outro”, potencialmente gera conflitos entre indivíduos e setores da sociedade, e impede a possibilidade de desenvolvimentos societários baseados no diálogo com o outro, no respeito às diferenças. Assim sendo, o ESP assume uma postura totalitária, e que vai na contramão de muitos teóricos que trabalham com pedagogias que focam na importância do encontro com o outro, com o diferente, para a formação do indivíduo - como Gert Biesta, Sharon Todd e Hanan Alexander.
Tais ações colocam a produção acadêmica e ações afirmativas num mesmo rol de inimigos a serem combatidos no ambiente escolar. O que isso diz sobre os pilares do movimento num contexto de mudança do perfil e valorização da educação a partir dos anos 2000, assim como de retrocessos atuais?
Mostra em primeiro lugar uma concepção de ciência muito simplista e relacionada com a ideia de que conhecimento válido é aquele que produz algo mensurável, tecnológico. Da produção científica, só tem valor aquilo com o que o movimento concorda, o que é algo completamente arbitrário e não-acadêmico. É evidente que alguns dos avanços nas políticas públicas para a educação das últimas duas décadas não agradaram alguns setores da sociedade brasileira (o que não é algo ruim, porque não é papel da educação ratificar valores de um ou outro grupo social, mas coloca-los em questão) e estes setores se organizaram de diversas maneiras para estancar avanços e promover mudanças legais que impedem que grupos antes não valorizados conquistem espaços que tem por direito na sociedade. Uma dos principais pilares, talvez o principal pilar, é a recusa de reconhecer o “outro” como digno de respeito e portador de direitos, o que faz do ESP um movimento totalitário, e de fato muito perigoso para o amadurecimento da democracia brasileira.
O Escola sem Partido, mesmo que não venha a ser implantado enquanto Projeto de Lei, já é um movimento com capilaridade em diferentes espectros da sociedade e política. Como vocês percebem o tema no contexto das eleições que se aproximam, tendo em vista outras proposições que igualmente visam a padronização e instrumentalização da educação, como a Reforma do Ensino Médio e a BNCC?
Enquanto Projeto de Lei ele já é uma realidade nas esferas federal, estaduais e municipais. Em alguns casos já aprovado pelas Câmaras municipais e Assembleias Legislativas, embora com questões pendentes no judiciário que tem, seguindo a Constituição, se posicionado contrário ao ESP. A Reforma do Ensino Médio e a BNCC seguem a linha do divórcio temido por Arendt entre o conhecimento e o pensamento. Na melhor das hipóteses teremos jovens altamente instruídos em tecnologia e incapazes de conviver em um mundo complexo e plural. Ambas partem de uma ideia torpe de que é preciso enfatizar em cálculo e ciência dura e parar de perder tempo com reflexão (ignorando os exemplos de Pitágoras, Aristóteles, Descartes etc.). E parece já bastante óbvio que a pauta do ESP será utilizada por candidatos de setores conservadores para angariar votos, o que escancara outra característica do movimento: o fato de que tem partido, embora se recuse à reconhecer isso abertamente.