A Revista Brasileira de Educação (RBE), publicada em fluxo contínuo e digital, traz em seu volume 23 no mês de outubro de 2018 o artigo "Caminhos da liberdade: os significados da educação dos escravizados" (clique aqui para acessar o texto na íntegra). De autoria de Alexandra Lima da Silva, professora da Faculdade de Educação da UERJ, a pesquisa procura mapear a produção acadêmica existente acerca da temática e indicar a existência de muitos caminhos e possibilidades envolvendo tal educação, compreendida como uma brecha para a conquista da mobilidade, ascensão social, resistência e liberdade em tempos de escravidão. A autora também desenvolve, enquanto docente e pesquisadora da UERJ, o projeto Flores de ébano: escritas de si e História da Educação.
O tema de educação de escravos perpassa fontes diversas como autobiografias, legislações, filmes, periódicos. Qual a importância de entender tal processo a partir destas diferentes perspectivas?
A partir de uma investigação que procurava mapear a presença de escravizados letrados na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, tornou-se fundamental compreender como e onde tais sujeitos aprendiam a ler, escrever, contar, tocar instrumentos músicas, dentre outras habilidades. Investigar os caminhos da educação dos escravizados é um desafio, e levou-me a realizar um diálogo com os estudos sobre a temática, além de uma detalhada cartografia em fontes de tipologias variadas, tais como periódicos, filmes, autobiografias, memórias, relatos de viajantes, cartas, legislação, dentre outras, o que torna possível reunir indícios que permitem subsidiar a argumentação de que sim, muitas foram as possibilidades e perspectivas em torno da educação dos cativos, o que não diminui a violência da escravidão, apenas complexifica ainda mais nosso olhar sobre a questão e nos leva a refletir que sim, a dimensão intelectual e cognitiva era parte da existência daqueles sujeitos, que não eram coisas, apesar de pertencerem a alguém.
O mapeamento feito por sua pesquisa mostra um contexto multifacetado dessa educação de escravizados, com a atuação de sujeitos e entidades muitas vezes com posições opostas, como Estado, grupos religiosos, associações de abolicionistas. O que isso nos permite observar deste quadro complexo do século XIX?
Defendo que os significados da educação dos escravizados eram distintos para os sujeitos e instituições. Desta maneira, a iniciativa dos senhores em promover a instrução de seus escravos poderia relacionar-se a religiosidade do senhor, porém acredito que a principal motivação neste caso fosse a de obter maior lucro com a posse de um escravo letrado, que valeria mais no mercado. Por sua vez, se consideramos a ótica do escravizado, investir na própria instrução poderia ser uma maneira de melhorar as condições de vida, ou ainda, lutar pela conquista da liberdade. As intenções da Igreja (Católica e também Protestante) e do Estado também não foram as mesmas dos centros abolicionistas e das associações e irmandades de homens pretos, por exemplo. É preciso considerar que tais práticas coexistiram, e que os próprios escravizados poderiam apropriar-se dos códigos da cultura escrita para emancipar-se de alguma maneira, mesmo não sento esta a intenção de muitos daqueles que educavam os escravizados.
O artigo também cita escolas fundadas por escravos e mesmo autodidatismo. Como se dava a atuação e casos de protagonismo destes sujeitos?
Alguns casos me chamaram bastante atenção e merecem mais aprofundamentos em estudos futuros. Cito a escola fundada pelo escravo Zózimo, que em 1871 abriu uma escola para libertos e cativos na fazenda de seu senhor, ou ainda, a escola fundada por Israel Soares, nascido cativo e que criou um curso noturno na casa de quitanda da falecida mãe “e o pouco que eu sabia distribuí com aqueles que nada sabiam”. A escola era frequentada por libertos e escravizados. A partir do diálogo com a historiografia da educação, tais experiências, a princípio isoladas, se conectam com um processo mais amplo, de luta pela instrução e pela conquista da liberdade e da cidadania, a partir das ações dos sujeitos, em movimentos de negociação e embates constantes. Tal processo permite que sim, vejamos a história a partir de diferentes ângulos, conferindo visibilidade a sujeitos historicamente silenciados.
A partir disso, como se equilibravam os diferentes interesses dos proprietários de escravos ao propiciar ou não a instrução a filhos de escravos nas fazendas?
A partir da década de 1870, a educação dos “ingênuos” foi pauta constante nos debates acirrados dos políticos e intelectuais. Afinal, “quando o filho da escrava deixa de ser criança? A partir da análise de anúncios de jornais do período, é possível observar as distinções entre crianças e “negrinhos”, “menino”, “filho da escrava”, em anúncios que diziam: “precisa-se de uma negrinha de 8 a 9 anos para brincar com criança”. Se antes o “filho da escrava” era tratado como mercadoria, com a lei do Ventre Livre a relação precisou mudar. Do ponto de vista da lei, “o menor” passava a ser responsabilidade do senhor ou do Estado. “Caridade e benevolência” passam a ser as alegações de muitos, a partir da oferta de trabalho em troca de roupa, educação e comida. Não há, neste tipo de relação, o reconhecimento da igualdade ou remuneração pelo trabalho prestado pelo dito “menor de cor”. O tema “A educação dos ingênuos” e dos filhos dos libertos vem sendo explorado por diferentes pesquisadores no campo da História da Educação (Barros, 2013; Martinez & Pessanha, 2012; Silva, 2014; Ribeiro Neto, 2017), evidenciando a complexidade em torno do problema e as tensões em torno da lei de 1871.
Apesar da proibição de educação a escravos em escolas públicas, de que forma estes diferentes cenários de instrução abriam brechas para a conquista de mobilidade e ascensão social em tempos de escravidão no contexto do século XIX?
É importante salientar que apesar de impedimentos legais em relação à presença de cativos nas escolas em diferentes períodos e regiões, pesquisas desenvolvidas no campo da História da Educação vêm contrariando a premissa de uma exclusão absoluta de escravos no que tange ao acesso à instrução e à educação no período imperial. É preciso considerar o processo educativo de forma ampla, para além dos bancos escolares. O aprendizado da língua, muitas vezes, pela escuta e pela oralidade, o aprendizado de instrumentos musicais e de diferentes ofícios, em diferentes espaços e meios, o autodidatismo, são algumas das possibilidades de ações importantes na compreensão dos caminhos empreendidos pelos sujeitos escravizados no sentido de inserção no universo da cultura escrita. Se por um lado, a educação dos escravizados poderia ser compreendida como um investimento rentável para alguns senhores e senhoras, o poder emancipador das palavras também ameaçava, pois foram muitos os cativos e cativas que fizeram uso da palavra para conquistar a liberdade e demandar direitos. Educar-se foi uma forma de luta e sobrevivência em uma sociedade que perseguia, estigmatizava e procurava demarcar - no corpo, no gesto e na fala - o lugar do escravizado. A educação foi uma brecha para a mobilidade e ascensão social de muitos, em uma economia escravista fortemente hierarquizada. Foi marca de distinção para inserção no mundo dos libertos e livres. A instrução, o aprendizado da leitura, da escrita e de tantos outros saberes e habilidades, poderiam permitir melhorias nas condições de vida e de trabalho dos escravizados, possibilitando maior dignidade, mobilidade e negociação pela ampliação de direitos de cidadania. Por fim, defendo que os escravizados eram sujeitos em trânsito, pois se deslocavam em diferentes localidades e culturas. Apesar da hierarquia, havia mobilidade. Os próprios sujeitos procuravam se instruir, de diferentes maneiras. Aprendiam saberes variados. Para fugir, sobreviver, resistir, lutar. Porque sim, palavras perseguem, mas também, libertam.