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A ANPEd, ciente de seu compromisso histórico com “o desenvolvimento da ciência, da educação e da cultura, dentro dos princípios da participação democrática, da liberdade e da justiça social” interroga a Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio tornada pública e entregue ao CNE em 03 de abril.
O primeiro problema é a legitimidade da proposta. Causa grande estranhamento a ideia de que esta BNCC é fruto de debate coletivo ao longo de 4 anos.
Caberia perguntar: com quem foi este debate? Se falamos do debate que estava em curso, até o golpe de 2016, podemos afirmar categoricamente que não há nenhuma continuidade nesse processo, ao contrário, o texto em debate foi totalmente transformado, mutilado. Por exemplo, apenas português e matemática obtém detalhamento nesta versão, contrariando o percurso anterior e menosprezando o conjunto de áreas que compõem o currículo do ensino médio. Esvaziando de significados, com isso, o debate que havia sido feito.
A retirada do ensino médio da proposta da BNCC da Educação Básica já aprovada para a educação infantil e para o ensino médio, foi um fato simbólico, com um significado fundamental para a compreensão da atual reforma por meio da MP746/16 que resultou na Lei 13.415/17. Esta etapa da educação escolar brasileira foi, na prática, desvinculada da Educação Básica, contrariando a LDB/ 1996, que considera o ensino médio, no interior de uma concepção educacional avançada de educação básica, uma das suas três etapas, indissociável das demais. A cisão da educação básica, com o envio pelo MEC da proposta de BNCC da educação infantil e do ensino fundamental sem o ensino médio, cabe perguntar, foi dialogada com quem? A única versão pública que o MEC apresentou para a BNCC do ensino médio é a que foi entregue ao CNE. Quem tornou público o debate foi o CNE e por isso podemos afirmar que a atual BNCC para o Ensino Médio é uma versão piorada, reducionista e autoritária.
E essa não é uma questão menor, uma vez que, sendo o ensino médio o último patamar da educação básica, OBRIGATÓRIA, esse não pode ser tratado como um problema em separado ou de menor importância. Essa é uma questão para TODA a sociedade (incluídas aí as comunidades escolares, associações e sindicatos de professores, Universidades, pesquisadores, organizações de jovens e estudantes...). Perguntas como: o que, como sociedade, esperamos da educação básica e do ensino médio? Que conjuntos de conhecimentos entendemos (como sociedade) que devem ser acumulados ao longo dos anos de escolaridade básica, e em especial, da educação média? Qual a FUNÇÃO e o SENTIDO da educação média num país que arrasta atrás de si um longo e profundo histórico de desigualdades educacionais não resolvidas?
O segundo ponto que queremos interrogar é a interpretação da legislação que sustenta a BNCC.
Frente à ideia presente na LDB de que a União, em colaboração com os Estados, DF, e Municípios define competências e diretrizes, o documento afirma categoricamente na sua introdução, que “as competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos” (Proposta de BNCC, p.11).
A interpretação da LDB é adequada a todo o ordenamento jurídico brasileiro e à vigência das diretrizes curriculares, portanto não faz sentido que uma BNCC eleja apenas português e matemática como disciplinas obrigatórias, uma vez que a LDB indica um conjunto muito mais amplo de conteúdos essenciais para o pleno desenvolvimento humano. Se a BNCC se propõe a ser “um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver” (BNCC, p. 7), essa redução a português e matemática representa um esvaziamento do currículo do Ensino Médio, que atingirá especialmente a população mais pobre desse país atendida pelas escolas públicas, que convivem majoritariamente com o descaso governamental, com a falta de professores e condições efetivas para a oferta do ensino. Reconhecer apenas a matemática e a língua portuguesa como disciplinas curriculares e transformar as demais disciplinas do atual currículo em componentes e temas transversais, traz certamente um enorme prejuízo do ponto de vista da formação humana e técnico-científica para os estudantes. Tudo o que não é português e matemática é delegado aos estados. Isso quebra a unidade do ensino médio no Brasil, porque, por mais que esse documento esteja sendo chamado de base comum, o que ele efetivamente propicia é a quebra de uma unidade mínima entre os currículos estaduais do ensino médio no Brasil. Não podemos aceitar esta determinação
O terceiro ponto é a noção de competências dissociada do conteúdo.
Reiterar que cabe à escola desenvolver competências em relação ao “saber fazer” esvaziando seu conteúdo é uma forma de negar o que há de mais avançado no campo da ciência, da cultura e da arte para a maioria da população brasileira. É negar a escola como lugar de democratização do saber, do conhecimento. A ênfase na aprendizagem para desenvolver competências, sabemos, está articulada com as políticas que o Banco Mundial e outros organismos internacionais vêm desenvolvendo nos últimos tempos, e tem a ver com pensar a escola como se fosse uma empresa. Se o produto da empresa escolar são estas aprendizagens, ela tem que ser medida e avaliada principalmente pelos seus resultados. Não há uma preocupação com a formação integral do estudante, com um desenvolvimento omnilateral dessas novas gerações. Pelo contrário: se trata de um desenvolvimento estreitamente ligado à inserção produtiva das novas gerações. Queremos uma educação que forneça ao conjunto das pessoas das classes trabalhadoras condições de compreender e transformar suas vidas e com acesso amplo e democrático aos conhecimentos historicamente acumulados pela sociedade. Portanto, manifestamos nossa insatisfação com uma base nacional comum curricular que retira a centralidade do conhecimento escolar em favor de um saber-fazer que desarticula teoria e prática, tomando esta última no sentido mais imediato e restritivo de um suposto saber-fazer.
O quarto ponto é a indefinição do que seja educação integral.
Apresentam-nos a ideia de uma educação integral tão indefinida e abstrata que o documento afirma ser “independente da duração da jornada” (Proposta de BNCC, p.14). Sem a perspectiva da formação humana integral definida e apoiando-se na ideia de flexibilização curricular que retira áreas importantes do conhecimento do currículo obrigatório. A determinação de fazer escolas de ensino médio de tempo integral, traz a interrogação: Ampliar o tempo sob que condições? Com que objetivos? Percebemos que o fator “condições de oferta” está ausente da proposta de BNCC, quando sabemos que não há escola de qualidade independente das condições de organização de tempo, de número de alunos por turma, de professores qualificados, com remuneração adequada, com tempo para estudar e preparar suas aulas. A omissão na definição das condições de oferta está reiterada quando o documento contextualiza os problemas do ensino médio apenas no que se relaciona ao desempenho insuficiente dos estudantes nos anos finais do ensino fundamental (BNCC p.461). Na contramão das políticas de democratização do acesso e da permanência o documento acaba atribuindo a culpa pelos problemas no ensino médio aos sujeitos que chegam ao ensino médio. A culpa é dos estudantes? A culpa é dos professores do ensino fundamental?
A política de educação em tempo integral, uma das principais âncoras da reforma do ensino médio, não vai contrariar a lógica. O custo de uma escola de tempo integral é elevado, os estados não terão condição de mantê-las. E, mesmo que tenhamos 500 unidades no País, será pouco relevante diante das 280 mil unidades que atendem essa faixa. É uma política que, se não objetiva, tenderá a criar ilhas de excelência e provocar distorções na própria noção de qualidade do ensino.
Na mesma direção, como quinto questionamento, a BNCC aponta para a redução de componentes curriculares exacerbando na simplificação do que são os “problemas” desse segmento, seus currículos, as escolas de ensino médio e as juventudes no Brasil. Ao afirmar que as noções fundantes da BNCC se apoiam na intencionalidade dos conteúdos, seja quanto ao desenvolvimento de competências ou da definição das chamadas aprendizagens essenciais[1], mais uma vez reificam o currículo tornando-o um documento escriturístico que age como instrumento de controle e desvalorização do trabalho docente, que desconsidera o chão das escolas e inviabiliza a própria afirmação de que os currículos seriam diversos (p.11) e as juventudes autônomas e que “criem novas formas de existir” (p. 14). Um documento que é “referência nacional comum e obrigatória” (p. 5) fixa habilidades, competências articulando-as às aprendizagens configurando-se, portanto, como um currículo unificado e, que, nesse sentido atua contra a diversidade e o protagonismo das juventudes que defende. E, mais grave, como “substituir o modelo único de currículo do Ensino Médio por um modelo diversificado e flexível” (p. 466) se o que se apresenta é um modelo reduzido ao mínimo? E se acompanhamos o ensino médio nos estados brasileiros nos últimos anos, podemos afirmar que as redes públicas estaduais tenderão a implementar o mínimo, o que afetará, conforme o Censo Escolar de 2016, 84,8% dos adolescentes e jovens brasileiros que estão matriculados nessa etapa.
A este diagnóstico simplista segue uma boa definição da complexidade das juventudes e da necessidade de que a escola de ensino médio possa ser espaço de formação autônoma de uma juventude plural e com diversidade de experiências culturais embora aponte para a desvalorização da origem do estudante e predominantemente a ideia de mercado de trabalho substitua a de trabalho[2]. Nada parece mais distante da perspectiva de pluralidade e diversidade que uma escola que defina pragmaticamente que a inserção no mundo do trabalho exige apenas os conhecimentos das linguagens de português e matemática e toda a complexidade do conhecimento social, político, estético e artístico produzido até aqui seja parcelarizado em trajetórias desiguais à escolha dos sistemas de ensino.
Cabe reforçar: não há base material que sustente as alterações feitas na LDB ou na BNCC para escolha de trajetórias pelos estudantes. Quem definirá as trajetórias são as condições de oferta dos sistemas, como ficou, de fato, estabelecido na Lei 13.415/17, e isto marcará profundamente o ensino médio como o campo da desigualdade oficial para a juventude brasileira. Não há garantias de que os sistemas educacionais consigam cumprir com a parte diversificada. A oferta de todos os itinerários formativos certamente não vai acontecer, os alunos não terão a possibilidade da escolha como tem sido anunciado, ficarão restritos às possibilidades de oferta das escolas.
Por estas razões a ANPED entende que o CNE precisa reafirmar a existência e vigência das Diretrizes Curriculares para Educação Básica e as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, já aprovadas por este egrégio Conselho, e que orientam de maneira adequada a formulação das propostas pedagógicas das escolas brasileiras considerando a diversidade e a autonomia necessárias à construção de uma escola que respeite e valorize as juventudes e garanta na escola as possibilidades de pleno desenvolvimento humano contribuindo para a redução das desigualdades em nosso país.
[1] “os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências, a LDB orienta a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a ser ensinados. Essas são duas noções fundantes da BNCC” p. 11
[2] “o exercício de deslocamento para outros pontos de vista é central para a formação das juventudes no Ensino Médio, na medida em que ajuda a superar posturas baseadas na reiteração das referências de seu próprio grupo para avaliar os demais.” 554