As Coalizões, Redes, Entidades Sindicais, Instituições Acadêmicas, Fóruns, Movimentos Sociais, Organizações da Sociedade Civil e Associações signatárias deste documento consideram que a possível autorização e regulamentação da educação domiciliar (homeschooling) é fator de EXTREMO RISCO e constitui mais um ataque ao direito à educação como uma das garantias fundamentais da pessoa humana. Prioridade máxima do governo Bolsonaro para a educação, tal regulamentação pode aprofundar ainda mais as imensas desigualdades sociais e educacionais, estimular à desescolarização por parte de movimentos ultraconservadores e multiplicar os casos de violência e desproteção aos quais estão submetidos milhões de crianças e adolescentes.
Diante da nova ameaça de retomada da tramitação dos projetos que tratam da autorização e regulamentação, pelo governo federal e pela presidência da Câmara dos Deputados, nos manifestamos firmemente contrários aos Projetos de Lei de regulamentação e autorização da matéria presentes no Congresso Nacional, ao texto original e aos apensados, bem como à proposta de substitutivo ao PL 3.179/2012, elaborada pela deputada Luísa Canziani, texto que reforça em vários aspectos o PL 2.401/2019, apresentado pelo governo Bolsonaro ao Parlamento. O parecer apresentado pela deputada em abril de 2021 e as alterações feitas em agosto de 2021 e em abril de 2022 mantêm os pontos controvertidos e não solucionam os vários problemas da proposta.
Educação domiciliar: rejeição popular
A educação escolar (regular) necessita de mais investimentos e de efetivo regime de colaboração para superar os desafios históricos e atuais impostos pela pandemia e não da regulamentação de uma modalidade que ataca as finalidades da educação previstas no artigo 205 da Constituição Federal, amplia a desobrigação do Estado com a garantia do direito humano à educação de qualidade para todas as pessoas e fere os direitos das crianças e adolescentes. A educação domiciliar é uma pauta de baixíssima adesão popular, como mostra pesquisa realizada pelo DataFolha, que revelou que oito em cada dez pessoas são contrárias a que pais tenham o direito de tirar seus filhos da escola para ensiná-los em casa.
Manifestamos também nossa grande preocupação com a tramitação do PL 3.262/2019, que visa descriminalizar a ausência de matrícula escolar de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos para famílias que adotarem a educação domiciliar. O projeto está pronto para ir a plenário na Câmara dos Deputados e, no segundo semestre de 2021, chegou a ser objeto de um Requerimento de Urgência. Atualmente, a Lei Penal, em sintonia com preceitos constitucionais, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB e com o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, prevê o crime de abandono intelectual aos pais que não mandarem seus filhos à escola.
Ataque aos direitos das crianças e adolescentes ]
É com preocupação que diversas instituições têm acompanhado o debate sobre a regulamentação da educação domiciliar no Congresso Nacional, dada as fragilidades argumentativas em torno de sua operacionalização e dos riscos que apresenta ao direito e prioridade absoluta da criança e do adolescente. Esse debate tem ocorrido Versão atualizada em 17/05/22 não somente sobre o PL supracitado, como também e especialmente em torno do PL 3.179/2012 e seus apensados.
Também muito grave é a aprovação em casas legislativas municipais e estaduais e sanção por prefeitos e governadores de projetos que autorizam o ensino domiciliar. Esses casos mantêm a inconstitucionalidade material dos projetos de âmbito nacional, com o agravante do vício de origem, visto que é competência exclusiva da União legislar sobre diretrizes e bases da educação.
Governo Bolsonaro: a negação da dramática realidade educacional e social do país
É espantosa a prioridade dada pelo governo Bolsonaro à regulamentação da educação domiciliar. O Brasil e o mundo atravessam um momento de profunda crise social, econômica, política e educacional; a fome e o desemprego crescem de forma avassaladora; a pandemia da Covid-19 afetou toda a sociedade nas diversas instâncias, trazendo efeitos de médio e longo prazo, sem falar nos abismos emocionais que as famílias enfrentaram com as medidas restritivas. O retorno às aulas presenciais não foi acompanhado do devido investimento para melhoria da infraestrutura das escolas nem de medidas voltadas a mitigar o impacto material e emocional sofrido pelas/os estudantes e suas famílias.
No campo da educação, as secretarias estaduais, distrital e municipais estão desamparadas técnica e financeiramente para o enfrentamento da evasão escolar e o combate à violência doméstica. A inviabilização do Plano Nacional de Educação por uma absurda política econômica de austeridade fiscal e a ausência de coordenação federal, também na educação, denunciam a opção do Governo em desviar a atenção do que deveria ser prioritário na gestão de superação da pandemia. O mesmo ocorreu no período de isolamento social, em que o ensino remoto foi urgente para que crianças e adolescentes continuassem estudando e acessando a escola. Entretanto, o governo federal chegou a vetar um projeto de lei que previa ajuda financeira para estados e municípios garantirem acesso à internet para estudantes e professores de escolas públicas. O debate sobre o homeschooling se apresenta como mais uma agenda inoportuna diante das agruras vividas pelos sistemas de ensino e a sociedade em geral.
A regulamentação do ensino domiciliar não se mostra solução viável para superar os problemas enfrentados pela educação. As prioridades passam pela expansão da educação integral, tal como acontece em países mais desenvolvidos em termos educacionais. As metas do Plano Nacional de Educação (e dos planos subnacionais) precisam ser cumpridas; o financiamento público requer mais aportes, inclusive com a vinculação dos recursos do Pré-sal para a educação; o Sistema Nacional de Educação carece de regulamentação para potencializar os regimes de cooperação e colaboração interfederativos, tendo o Custo Aluno Qualidade como referência, e a maior regulamentação da rede privada. ]
Para tanto, o Congresso Nacional precisa aprovar o Piso Emergencial na Lei Orçamentária Anual 2023 proposto pela Coalizão Direitos Valem Mais e assegurar a perenidade dos orçamentos da educação, sem cortes e contingenciamentos. Outra medida essencial e urgente consiste em identificar as situações mitigadoras da exclusão escolar e das violações do direito à educação e investir em novos recursos pedagógicos e na busca ativa dos estudantes excluídos da escola, assegurando o pleno direito de todos à educação de qualidade.
A escola como porta de acesso a outros direitos e os custos financeiros da educação domiciliar Versão atualizada em 17/05/22 Outras questões suscitadas na pandemia e muito sensíveis ao debate da educação domiciliar dizem respeito à insegurança alimentar de crianças e famílias que voltaram a fazer parte do Mapa da Fome da ONU, a invisibilidade dos casos de trabalho infantil e o aumento expressivo no número de agressões, violência doméstica e da violência sexual nos domicílios brasileiros, em especial contra meninas, mulheres e adolescentes LGBTI+. Casos verificados, contraditória e preocupantemente, num momento em que os registros de boletins de ocorrência despencaram! Isso revela a vulnerabilidade de nossas crianças e adolescentes sem o amparo da escola. Diferente do que muitos imaginam, a educação domiciliar não pode ser encarada como economia aos cofres públicos. As escolas, os conselhos tutelares (e o Estado) terão gastos extras com a fiscalização e adequação de suas estruturas e corpo funcional para acompanhar as matrículas e as respectivas atividades não presenciais previstas na proposta de regulamentação da educação domiciliar. Isto sem falar no acompanhamento social, físico e mental das crianças confinadas em seus domicílios - ainda que muito limitado, já que há transferência do espaço público ao privado.
Trata-se de situações não mensuradas nos projetos em debate no Congresso e sequer passíveis de solução dentro da constitucionalidade, do quadro de direitos humanos e nas normativas da educação, que certamente demandarão novas despesas nos orçamentos públicos e das escolas particulares. O Parlamento não pode aprovar projetos que elevam custos orçamentários sem a respectiva indicação de fontes de custeio e na contramão do que determina a legislação vigente.
Uma ameaça à democracia
Por outro lado, a defesa do ensino regular e presencial nas escolas se pauta em premissas que derivam de princípios constitucionais e de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A formação educacional precisa assegurar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Além disso, a escola é o local do coletivo, de oportunidades igualitárias para novas aprendizagens, de interação e respeito às diversidades, onde crianças e jovens desenvolvem habilidades socioemocionais e essenciais para poderem atuar e modificar as sociedades democráticas. É na comunidade que nos tornamos sujeitos, nos confrontamos e crescemos como pessoas; ampliamos nossa visão de mundo; compreendemos as necessidades alheias e a importância da construção de um mundo com justiça social, com empatia e solidariedade, que supere as discriminações e o racismo estrutural da sociedade brasileira.
O Parecer nº 34/2000 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE) e as decisões históricas do Supremo Tribunal Federal em julgamentos referentes a ações que tratam de leis inspiradas pelo movimento Escola sem Partido deixam evidente a importância da socialização de crianças e jovens na escola, oportunidade para viverem o diferente e o contraditório, aspectos fundamentais para o desenvolvimento. Reafirmam que as crianças e adolescentes, sujeitos de direitos em desenvolvimento, não podem ser compreendidos como propriedades de suas famílias e que devem ser garantidos a elas e a eles os direitos à convivência social e ao acesso aos conhecimentos científicos e humanísticos por meio das escolas, mesmo que esses conhecimentos entrem em confronto com as doutrinas políticas e religiosas de suas famílias.
A importância da família não é aqui desprezada, ao contrário. O processo educacional é uma ação recíproca, simultânea e de cumplicidade entre a sociedade, a comunidade educativa e o Estado. E as instituições escolares são espaços de construção de conhecimentos, experiências e vivências significativas e complementares à educação familiar. Uma não substitui a outra, elas se complementam. Ademais, as famílias e/ou responsáveis já têm a liberdade e a prerrogativa prevista em Lei para escolher a educação escolar de suas crianças e adolescentes. Versão atualizada em 17/05/22 ]
Não à educação domiciliar: um consenso entre aqueles comprometidos com o direito à educação
Em face do exposto, reiteramos nossa convicção, fundamentada em elementos históricos, nos direitos humanos e em razões pedagógicas, na formação educacional a partir da intrínseca relação família - escola - sociedade - Estado. A imposição do homeschooling, desconsiderando inúmeras realidades pedagógicas e sociais e fragilizando ainda mais a condição docente, além de seu caráter elitista e de pseudoalternativa às demandas requeridas pela educação em todo o país, especialmente advindas da pandemia da Covid-19, não o credenciam como viável para a esmagadora maioria do povo brasileiro.
Por isso, de forma contundente, nos manifestamos extremamente contrários a qualquer tentativa de regulamentação da educação domiciliar no país pelo Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Manifestação presente em cerca de 150 posicionamentos públicos de diversos interlocutores do campo educacional apresentados ao Congresso Nacional nos últimos meses: de instituições acadêmicas, associações de gestoras e gestores públicos, entidades sindicais, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, redes e fóruns nacionais às entidades que representam institutos e fundações empresariais. Neste momento, estamos sintonizados com um uníssono NÃO à regulamentação da educação domiciliar no país.
Acesso o documento completo em PDF com as mais de 400 entidades, grupos e associações e que assinam este manifesto.