Documento produzido pela Associação Brasileira de Currículo (ABdC) encaminhado ao CNE no contexto das Audiências públicas sobre a BNCC /2017.
Posicionamento da Associação Brasileira de Currículo, representada nas audiências públicas por sua presidenta, Professora Inês Barbosa de Oliveira (UERJ/UNESA), sua secretária-geral, Rita de Cássia Frangella (UERJ) e pela associada Elizabeth Macedo (UERJ), presidente da International Association for Advancement of Curriculum studies (IAACS).
Sustentamos que a coerência com os princípios democráticos da Constituição e da LDB aponta para a busca, cada vez maior, de flexibilização e não para o movimento de unificação curricular, que se tem mostrado – em diferentes países e também no Brasil – favorável à manutenção de hegemonias e a consequente exclusão social e escolar de tudo o que se distancia desses padrões. A criação de um futuro melhor para nossas crianças, jovens e adultos, sobretudo os que frequentam as escolas públicas do país exige outra atitude e outra proposta. Portanto, discordamos da construção de um documento pautado em objetivos de aprendizagem, sob qualquer formato.
SOBRE A APRESENTAÇÃO QUE TEM SIDO FEITA DA BNCC
A recuperação histórica apresentada pelo representante do MEC omite elementos importantes da ruptura do processo anterior e a completa mudança da equipe responsável pela formulação da BNCC, alterando significativamente os rumos do trabalho anterior, bem como abandonando as 12 milhões de contribuições endereçadas a SEB/MEC. Entendemos que um modo de corrigir a exclusão dessa trajetória é a retomada de discussões com o Fórum Nacional de Educação, que, em sua plenitude representativa, é central para a efetiva discussão democrática do que poderia ser uma base nacional curricular inclusiva, respeitosa e plural. Não podemos nos furtar a trazer a história de inclusão da ideia de base nas legislações vigentes, já que tantas vezes isso é retomado como justificativa para que a tarefa de construção da BNCC seja imperativa: é preciso falar da história da luta democrática, mobilizada pelos profissionais da educação pela participação nas discussões acerca das propostas de formação de professores no contexto da redemocratização no Brasil na década de 1980, que desdobrou-se na criação na ANFOPE. E, se é para rememorar, não esqueçamos que o que defendíamos era que a base comum nacional – e a ordem das palavras importa aqui – era a docência, dando protagonismo aos professores, o que é negado nessa Base. Nossa posição é oposta à afirmativa de que tanto a LDB quanto o PNE explicitam o compromisso de elaboração de uma base nacional curricular comum.
Na verdade, o compromisso do PNE é com a melhoria da qualidade do ensino para o que a elaboração de uma base é apontada como uma das estratégias, dentre outras (bem se diga). Mas aceitemos que a Lei nos impele à definição de uma base. O que é uma base? Aquilo sobre o que se erige algo, uma fundação, um solo. Não nos parece que um documento que define resultados, metas e habilidades que os alunos terão ao sair da escola, possa ser considerado uma base. Ele define onde se quer chegar e não de onde se parte (essa é a lógica, por exemplo, do trabalho de Bloom citado na versão 3 da BNCC, que, abro um parêntese, foi escrito em 1956). A racionalidade que guia essa forma de fazer currículo é a de estabelecer o que se espera na saída. Dessa forma, ele não é uma base, mas um teto, um limite predeterminado.
A QUESTÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO E A BNCC
O direito à educação pública, gratuita e de qualidade, e o direito de aprender transcende direitos/deveres à aprendizagem de conteúdos definidos por autoridades educacionais. A BNCC reduz os direitos de aprender a obrigações, quando estabelece o que TODXS DEVEM aprender. Direitos e objetivos de aprendizagem são padronização centralizadora e soam a “Currículo Mínimo”, sobretudo pelo atrelamento das avaliações nacionais aos conteúdos da base.
A BNCC E ALDB
Não respeita o princípio do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, assumindo uma, e somente uma em sua formulação. Sendo conteudista e disciplinarista, fere o princípio da valorização da experiência extraescolar e a formação para o exercício da cidadania. Investe no controle externo da gestão e do fazer docente, por meio de avaliações externas (de alunos, professores e gestores) aliadas à responsabilização local pelos resultados, comprometendo o princípio da gestão democrática, a formulação participativa do Projeto Pedagógico e o princípio da valorização docente.
A parceria estabelecida entre o MEC e fundações privadas, para a formulação e legitimação da BNCC, precisa ser discutida, principalmente em se tratando da contratação dessas empresas para a produção de material didático e implantação da base, antes mesmo de sua aprovação.
A BNCC E A QUESTÃO CURRICULAR
Chama atenção nessa terceira versão do documento a insistência em demarcar que a Base não é currículo, como numa resposta às críticas que vem recebendo ao longo de seu processo de construção, já apresentadas pela ABdC anteriormente, na produção de um texto em co-autoria com a Anped, publicizado e entregue ao CNE. Paradoxalmente, a Base se intitula Comum e Curricular. Ao negar sua condição de currículo o faz reduzindo- o a uma questão de ordenamento e sequenciação de conteúdos, o que traz ao conceito de currículo feições de arranjos materiais/procedimentais que se coadunam com uma lógica tecnicista. Se não é currículo, é o que? Somente listagem de conteúdos definidos como essenciais?
Assim é nominado. Essa linha reduz também a própria discussão em torno do conhecimento, coisificando-o, tal como faz ao indicar e defender certa concepção de currículo, que enfatiza a centralidade da dimensão instrucional, onde a definição do conhecimento a ser ensinado se sobrepõe a outras dimensões do processo pedagógico, ignorando a vasta produção do campo de pesquisas em currículo. Não é currículo, mas será obrigatória. Afirma-se que a intenção é estabelecer uma pactuação interfederativa, mas a BNCC, como norma, tem uma incidência muito mais regulativa que colaborativa. Ou seja, não se trata de apresentar indicativos com os quais cada ente federativo possa dialogar, se trata de adequações, adaptações que mantêm uma estrutura fixa que deve ser reproduzida, encolhendo os espaços deliberativos para produções que considerem outras questões que não as já previamente definidas.
A proposta de BNCC busca se apresentar como precisa e clara, considerando essas adjetivações positivas. No entanto, ao fazê-lo, evidencia seu compromisso com uma compreensão tecnicista e ultrapassada de currículo, bem como uma concepção equivocada da linguagem. As pesquisas no campo do Currículo, em sua imensa maioria, consideram indesejáveis e impossíveis essas características. A polissemia inerente à linguagem, que é conotativa e não denotativa, interdita a compreensão clara e precisa de textos. Os significados das palavras não são intrínsecos a elas, são estabelecidos por meio de processos de negociação de sentidos, o que significa que não há precisão ou clareza, desejável ou possível. As escolhas sobre como usar uma palavra não são de natureza individual e nos confrontamos com decisões sobre como interpretar as escolhas feitas. A ênfase na qualificação de que o que é proposto na BNCC prima pela clareza, precisão e explicitação das aprendizagens que se espera que todos façam, cria um contraponto com o que se visa a superar e indica um caminho único, sem ramificações/atalhos/outros caminhos e oportunidades também possíveis.
SOBRE RESPEITO À PLURALIDADE E À DIVERSIDADE NACIONAIS
Defendemos que a pluralidade nacional não aparece reconhecida na proposta da Base Nacional em questão, uma vez que esta se reduz a uma listagem de conteúdos e habilidades, ignorando todo o processo social de aglutinação permitido pelas Diretrizes existentes. O mesmo podemos dizer do trabalho dos professores já em curso, dos currículos em andamento nas escolas e de tudo o que acontece nas relações de professores e estudantes, em suas múltiplas ações. A valorização da localidade, da diversidade, das negociações de sentidos, autonomamente, em cada escola, em cada rede, é o modo como entendemos qualquer criação de “currículo” e uma necessidade no respeito às escolas, professores e suas ações. É, ainda, fruto da luta política pela democracia no Brasil e pelo reconhecimento do direito à diversidade que foi garantido pela LDB no 9394/96.
A QUESTÃO DOS CONTEÚDOS ESCOLARES
Do ponto de vista dos conteúdos, entendemos que, quando escolhemos o que entra nos currículos, escolhemos o que sai. Esta decisão é política, e está sendo tomada em prejuízo de questões sociais como a inclusão e a luta contra preconceitos diversos, da formação crítica e da cidadania. Entendemos, também, que oferecer os mesmos conteúdos a estudantes/alunos com diferentes experiências sociais e de conhecimento não promoverá a equalização almejada e anunciada pela Base.
Aristóteles já alertava para a necessidade de tratar igualmente apenas os iguais, tratando desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Reconhecer a necessidade de oferecer possibilidades DIVERSAS/PLURAIS de proposta e experiência curricular a alunos diferentes/desiguais é necessário para promover a equalização social e a redução das desigualdades. Tratar igualmente os desiguais é aprofundar a desigualdade! Oferecer os mesmos conteúdos e materiais a alunos com diferentes experiências, conhecimentos e possibilidades de aprendizagem perpetua as desigualdades entre eles.
Insistimos, ainda, na necessidade de respeito aos currículos existentes e a seus criadores: professores, alunos e escolas. A multiplicidade de realidades exige valorizar o local e suas produções, os processos de negociação de sentidos que ocorrem nas escolas, nas redes. Entendemos que qualquer proposta curricular precisa respeitar essas existências, reconhecendo que as escolas não são um campo vazio, mas realidades nas quais já estão acontecendo, cotidianamente, invenções, práticas e inovações curriculares, onde existe, portanto, produção de saberes.
A FALÁCIA DA MELHORIA DO ENSINO
As experiências internacionais com currículos unificados evidenciam mais problemas do que vantagens. As unificações evidenciam inadequações às necessidades e possibilidades locais, escolares e dos estudantes, gerando exclusão social e ausência das aprendizagens preconizadas. Entender a melhoria do ensino como melhoria de índices compromete a escolarização na medida em que esses tenderão a se sobrepor ao compromisso com os estudantes e suas aprendizagens. A definição de qualidade da educação pública pela avaliação em larga escala traz riscos imensos de transformação da Base em totalidade.
Equalização social requer respeito a percursos e especificidades locais na construção da qualidade da educação. São diferentes os pontos de partida, e, portanto, as trajetórias para que cheguemos aos pontos de chegada equalizadores.
Em linhas gerais, defendemos o que estudos sobre currículo vêm demonstrando no mundo: que currículos centralizados em nível nacional NÃO são a melhor alternativa para uma educação de qualidade, se por qualidade se entende a redução das desigualdades. Citamos dois autores de matriz liberal para demonstrar essa posição. Evitamos autores críticos de propósito. Diane Ravich trabalhou, por anos, em defesa e na formulação de currículos nacionais nos EUA, com uma agenda bastante conservadora. Em publicações, assim como em seu blog, tem documentado fartamente que, nos estados americanos em que se optou pelos currículos centralizados, NÃO houve diminuição das desigualdades entre brancos e negros, entre meninos e meninas, entre pobres e classe média/ricos. Ao contrário, as desigualdades foram acentuadas. O outro é Pasi Salhberg, autoridade internacional em reformas educacionais, que ficou conhecido depois que a Finlândia passou a ocupar os primeiros lugares em testagens educacionais, nomeadamente o PISA. A reforma da Finlândia, capitaneada por Pasi, inovou ao rejeitar a centralização curricular e ao apostar na escola, nos professores e nas Universidades que os formam. Ficamos nesses dois exemplos, destacando que, há quase 50 anos, diferentes estudos em currículo têm defendido que separar elaboração de implementação é a receita do fracasso nas políticas curriculares.
RESSALTAMOS AINDA...
A realização da audiência Sul na FIESC, e não em um espaço de Educação, e a concordância com a Base, expressa apenas por representantes da iniciativa privada, católica ou não, e do atual governo, são claros indícios da direção privatista e empresarial que ela assume, que, evidentemente, não visa a atender e não atenderá as populações trabalhadoras, que frequentam a escola pública no Brasil.
A ABdC considera que as políticas de educação em geral, e as de currículo em particular, precisam assegurar, em sua plenitude, o direito à igualdade quando a diferença inferioriza e o direito à diferença quando a igualdade descaracteriza.
FINALIZAMOS REITERANDO...
O que a ABdC e boa parte da sociedade brasileira esperam deste Conselho é que ele mantenha, em relação à BNCC, o posicionamento que teve à época dos PCN, com os quais, aliás, esta base está cada vez mais parecida. O que esperamos é que este Conselho estabeleça que as diretrizes curriculares nacionais para a Educação Básica, por ele já definidas, são a base para os currículos nacionais. E que o limite seja a criatividade e a capacidade dos professores, limite este — que se não está do agrado — está pronto para ser ampliado por políticas públicas responsáveis.
Assinam o documento: Inês Barbosa de Oliveira (presidenta da ABdC)
Rita de Cássia Frangella (Secretária-geral da ABdC)
Elizabeth Macedo (presidente da IAACS/associada ABdC)
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