O peso dos exames Enem e Gaokao na vida de estudantes em tempos de pandemia| Colaboração de texto | por Wivian Weller (GT 14 | UnB)

Wivian Weller é professora da Faculdade de Educação/UnB e membro do GT 14 – Sociologia da Educação. wivian@unb.br

Em 11/03/2020 a Organização Mundial de Saúde declarou que o mundo está passando por uma situação de pandemia decorrente do novo coronavírus1. Os impactos na vida cotidiana foram sentidos imediatamente, com alterações nas rotinas de trabalho ou estudo e limitações para o convívio social. Dentre os grupos impactados, os estudantes que estavam iniciando o último ano letivo da educação básica ou aqueles que o estavam finalizando (a exemplo dos que vivem em países ao norte do equador), foram diretamente atingidos e seus projetos de futuro colocados em suspenso. A situação da pandemia somou-se aos desafios já existentes para aqueles que conseguem chegar ao último ano da educação básica e que precisam se preparar para os exames que dão acesso à educação superior, entre outros, para o Enem no Brasil e para o Gaokao na China.

Ambos os países se viram obrigados a adiar as avaliações. Na China, o Gaokao que ocorre todos os anos entre os dias 7 e 9 de junho, teve que ser adiado em 30 dias e foi realizado nos dias 7 e 8 de julho em situações bastante adversas. Em Pequim, devido a um segundo surto do coronavírus no mês de junho, os estudantes passaram por exames de temperatura constantes, tiveram que utilizar máscaras durante as provas e contaram com uma equipe médica nos respectivos locais para atender emergências2.

No Brasil, após pressão da sociedade civil para que o Enem fosse adiado3, o governo federal definiu recentemente as datas de 17 e 24 de janeiro para a versão impressa e 31 de janeiro e 7 de fevereiro de 2021 para a versão digital do exame (formato que será implementado pela primeira vez)4. Se por um lado o adiamento do Enem trouxe um pouco de alento, sobretudo para os estudantes que se encontram no sistema público de ensino, nos deparamos agora com outra situação: algumas importantes universidades no Brasil cancelaram o ingresso por meio do Enem em 2021 ou estão avaliando se irão fazê-lo5.

Os exames em larga escala que dão acesso à educação superior ocupam boa parte das preocupações de jovens que se encontram no ensino médio e do tempo dedicado à preparação para os mesmos. O equilíbrio entre a orientação para os exames e a formação prevista para essa etapa da educação básica é bastante tênue. Nossas pesquisas têm revelado que a preparação para os testes em alguns países inicia na educação infantil, como, por exemplo, na China. Desde 2017, um grupo de pesquisadores vinculado ao projeto “Estudo comparado dos exames Enem (Brasil) e Gaokao (China) - repercussões nos currículos do ensino médio e no acesso à educação superior de jovens brasileiros e chineses”, analisa o funcionamento, adequação e os objetivos dos exames nacionais que dão acesso à educação superior, bem como as repercussões dessas avaliações nas trajetórias educacionais de estudantes brasileiros e chineses6. Até a presente data, tivemos a oportunidade de realizar três missões de trabalho para a China, durante as quais foi possível, entre outros, realizar entrevistas com especialistas e aplicar um survey para estudantes em três universidades chinesas.

A fim de avaliar os efeitos decorrentes da pandemia para os estudantes concluintes do ensino médio, torna-se importante compreender a estrutura e a repercussão dos exames em suas trajetórias escolares. O Gaokao começou a ser elaborado em 1952 e é considerado o primeiro exame educacional padronizado do mundo (MUTHANNA; SANG, 2015). Existem ainda registros que estabelecem uma ligação entre o Gaokao e os exames imperiais chineses. Nessa perspectiva, a criação de um sistema de seleção meritocrático como forma de mobilidade social seria milenar. Sua primeira implementação ocorreu entre os anos 1959 a 1966. Voltou a ser reestabelecido no sistema educacional chinês no ano de 1977, após o término da revolução cultural (LIU, 2016). Em 2020, mais de 10 milhões de estudantes realizaram as provas e, segundo informações obtidas com especialistas, 70% terão a oportunidade de ingressar em alguma instituição de educação superior. O Enem teve sua primeira versão proposta em 1998 e converte-se em exame de acesso à educação superior sob a alcunha de Novo Enem em 2009, alcançando, em número de inscritos, o posto de segundo maior exame do mundo após o Gaokao. Segundo dados do Inep, chegou a ter 9.4 milhões de inscritos em 2014 e em janeiro de 2021 cerca de 5,8 milhões de estudantes pretendem realizar a prova. Em relação aos aspectos formais, o Gaokao é utilizado apenas para o ingresso na educação superior, enquanto o Enem atende também a outros objetivos (Travitzki, 2013). Outra característica que chama a atenção é o fato do Enem se constituir em uma única prova aplicada em todo o território nacional. Na China, existe a possibilidade das províncias, ou regiões autônomas, como Beijing e Shanghai, criarem suas próprias provas ao invés de utilizarem a prova geral do Gaokao, aplicada na maioria das províncias. Tal fato não impede a utilização do resultado em nível nacional e não invalida a aceitação da nota de corte por uma universidade localizada em uma província distinta daquela em que o jovem realizou o exame.

Justino (2019), analisou a repercussão dos exames na trajetória escolar de estudantes brasileiros e chineses, tendo como base as respostas de estudantes calouros que ingressaram na Universidade de Brasília (UnB) e Beijing Normal University (BNU) nos anos de 2019 e 2018 respectivamente. Sob a perspectiva comparada, constatou-se que a preparação para os exames durante o ensino médio é importante em ambos os países e que o tema adquire centralidade no ambiente escolar, conforme atestado pelos estudantes (Gráfico 01).

Gráfico 01 – Dentro do ambiente escolar, durante o ensino médio, o tema Gaokao/Enem tinha importância?

Fonte: Justino (2019).

Observa-se no gráfico acima que as respostas dos estudantes chineses são mais intensas e assertivas, enquanto as dos brasileiros, mesmo que afirmativas, são mais brandas. Perfil de resposta semelhante também foi observado ao serem questionados se o principal objetivo durante o ensino médio seria o alcance de excelentes resultados nos exames (Gráfico 02).

Gráfico 02 - O seu principal objetivo no ensino médio era alcançar excelentes resultados no Gaokao/Enem?

Fonte: Justino (2019).

Na questão acima observa-se novamente que os estudantes chineses são mais assertivos quanto ao principal objetivo atribuído por eles ao ensino médio, enquanto os estudantes brasileiros indicam maior dispersão em suas respostas sobre a centralidade do Enem durante o ensino médio7. Esse padrão se repete nos demais itens analisados por Justino (2019), indicando que para os estudantes chineses a preparação para o Gaokao encontra-se no cerne da organização da vida estudantil e se expande para além do tempo estritamente escolar, moldando a vida cotidiana e seus projetos de vida. Entre os estudantes brasileiros, a percepção é de uma adesão parcial à preparação para o exame. Mesmo sendo visto como importante, a ocupação com a prova durante o ensino médio obteve um peso menor em suas trajetórias escolares, se comparado com os jovens chineses.

Com base nos dados apresentados, observa-se que o Gaokao está presente por mais tempo e com maior intensidade na trajetória escolar dos estudantes do que o Enem. Os efeitos da suspenção dos exames nacionais de ingresso à educação superior também são percebidos de forma distinta nos dois países. Enquanto a prorrogação do prazo para a realização do Enem resultou de movimentações encabeçadas pelos próprios estudantes, o adiamento do Gaokao foi interpretado como uma extensão do sofrimento e da ansiedade por concluir essa etapa de suas vidas: “Parecia que nunca iria acabar […] Estou finalmente relaxado”, foram as palavras utilizadas por um estudante após a realização das provas no mês de julho8. Os estudantes chineses que tiveram sucesso no Gaokao iniciarão a trajetória acadêmica de forma bastante distinta daqueles que ingressaram em outros anos. Contudo, já passaram pela etapa que ainda está à frente dos estudantes brasileiros. Ainda não sabemos em que condições o Enem será realizado.

1 UOL. Coronavírus: OMS decreta pandemia; o que muda nos cuidados com a saúde? Disponível em <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/03/11/coronavirus-oms-decreta-pandemia-mas-o-que-isso-muda.htm>. Acesso em 17 jul. 2020.

2 CGTN. Gaokao 2020 ends with over 10 million taking apart. 10 ju. 2020. Disponível em <https://news.cgtn.com/news/2020-07-10/Gaokao-2020-ends-with-over-10-mill... . Acesso em 24 jul. 2020.

3 El País. Governo adia Enem após pressão que trouxe à tona o fosso entre ensino público e privado. Disponível em <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-20/governo-adia-enem-apos-pr.... Acesso em 24 jul. 2020.

4 Agência Brasil. MEC anuncia que Enem será em 17 e 24 de janeiro de 2021. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-07/mec-anuncia-no.... Acesso em 24 jul. 2020.

5 UOL. Unicamp cancela ingresso para universidade por meio do Enem. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/07/unicamp-cancela-ingresso-.... Acesso em 24 jul. 2020.

6 Pesquisa coordenada por Wivian Weller com apoio financeiro da FAPDF e do CNPq.

7 Vale lembrar que o Enem é apenas uma das formas de ingresso na UnB que recebe 25% do total das vagas. Durante o ensino médio os estudantes também são preparados para a realização do Programa de Avaliação Seriada (PAS), para o qual a UnB destina 50% das vagas.\

8 Idem (nota de rodapé 2).

Referências:

JUSTINO, Rogério. Estudantes Universitários Brasileiros e Chineses: Um Estudo Comparado dos Exames Enem e Gaokao. Tese (Doutorado em Educação) – Orientadora: Wivian Weller. Brasília: Universidade de Brasília, 2019.

LIU, Ye. Higher education, meritocracy and inequality in China. Singapore: Springer, 2016.

MUTHANNA, Abdulghani; SANG, Guoyuan. Undergraduate Chinese students’ perspectives on Gaokao examination: Strengths, weaknesses, and implications. International Journal of Research Studies in Education, v. 5, n. 2, p. 3-12, 2015.

TRAVITZKI, Rodrigo. ENEM: limites e possibilidades do Exame Nacional do Ensino Médio enquanto indicador de qualidade escolar. Tese (Doutorado em Educação) – Orientadora: Carlota Boto. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.