reportagem e vídeo: Camilla Shaw
Pesquisadores e professores de todas as regiões do país compartilham depoimentos sobre o cotidiano em meio à pandemia
“Nessa rotina que estamos tendo agora é como se o turno de trabalho nunca acabasse”, afirma Frederiko Luz Silva, associado da ANPEd, professor da rede municipal de Goiás e doutorando em educação da UFG, sobre o cotidiano adaptado por conta da pandemia do COVID-19.
Após constatar que 15% dos estudantes não possuem acesso à internet, por meio de pesquisa realizada em Goiânia sobre tecnologias digitais, a prefeitura decidiu suspender as aulas no município, reduzir o salário de professores efetivos e suspender o contrato de profissionais temporários. Apesar disso, os docentes da rede foram acionados para mediar e auxiliar o acesso de pais e alunos a uma plataforma digital, que disponibiliza atividades pedagógicas complementares para aqueles que têm acesso à internet e ferramentas digitais. Frederiko explica que o contato com os pais dos estudantes é realizado por meio de conversas em aplicativos de celular, como o WhatsApp, o que dificulta a organização de uma rotina de trabalho.
A precarização da educação, a desigualdade de acesso e a sobrecarga de trabalho têm se acentuado na pandemia de acordo com Vina Queiroz, associada da ANPEd, professora do Colégio Estadual Antônio Batista em Candiba, na Bahia.
Vina é otimista e tem tentado transmitir essa energia e esperança a seus alunos. Ela pontua, no entanto, que as diferenças sociais no Brasil são grandes. Explica, por exemplo, que a maior parte de seus estudantes não possuem dispositivos tecnológicos e uma rede de internet de qualidade, situação que inviabiliza o estudo e acesso a vídeo-aulas de forma remota.
Vídeo com depoimentos de professores
No final de maio foi divulgada a pesquisa TIC Domicílios 2019 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). Atualmente “o celular é o principal dispositivo para acessar a Internet, usado pela quase totalidade dos usuários da rede (99%). A pesquisa ainda aponta que 58% dos brasileiros acessam a rede exclusivamente pelo telefone móvel, proporção que chega a 85% na classe DE. O uso exclusivo do telefone celular também predomina entre a população preta (65%) e parda (61%), frente a 51% da população branca”.
“Apesar do aumento significativo nos últimos anos na proporção da população brasileira que usa a Internet, cerca de um quarto dos indivíduos (47 milhões de pessoas) seguem desconectados.” É o caso da região no alto Rio Solimões onde Eronilde de Sousa Fermin trabalha. A professora da escola municipal indígena Kambeba Waynambi, na comunidade São Raimundo do Universo, zona rural do Amazonas, afirma que o maior desafio atualmente é não ter acesso à internet. Os povos da região e populações indígenas “estão sofrendo muito com a pandemia”. Nesse contexto Eronilde, assim como Vina e Frederiko, defendem o adiamento e suspensão do ENEM.
Oito estudantes de uma escola profissionalizante da cidade do Juazeiro do Norte no Ceará pedem que o Enem seja adiado. Em conjunto criaram um perfil no instagram - @adia_enem2020 - para denunciar a desigualdade no acesso à educação de qualidade.
A existência de um Estado atuante e responsável se mostra mais do que nunca necessário. Solange Fedrigo, professora de escola municipal do assentamento Nossa Senhora da Glória, em Pedras Altas, perto da divisa com Uruguai, no Rio Grande do Sul, fala da importância do trabalho da Secretaria de Educação para o desenvolvimento e concretização das novas atividades realizadas neste período de isolamento. Na região a internet também é limitada ou mesmo inexistente, dessa forma apostilas estão sendo desenvolvidas e entregues nas casas de cada estudante. A Secretaria presta auxílio aos professores, quando necessário, no desenvolvimento do material, e a própria secretária faz a entrega junto aos diretores das escolas.
Os desafios que atravessam os novos cotidianos desses professores ficam ainda mais dramáticos quando a COVID-19 atinge a própria família, como é o caso de Marina Campos, professora do Colégio de Aplicação da UFRJ, no Rio de Janeiro. Com a voz baixa, ela conta que o irmão contraiu a doença e precisou ir ao hospital algumas vezes. A situação não foi fácil, nem a rede de saúde pública nem a privada aceitaram recebê-los, pois o quadro não seria grave o suficiente - a internação seria apenas àquelas pessoas “à beira da morte”.
A professora analisa sua situação a de seus alunos para afirmar que “adiar o ENEM é algo que deveria ser óbvio. [...] Nem um de nós, mesmo tendo todas as condições de trabalho em casa, ninguém está com a mente focada só no trabalho. A gente é perpassado por milhares de notícias, medo, isolamento, solidão. E os meninos e adolescentes que ainda nem tem um repertório muito grande para lidar com isso, eles terem que lidar com todo esse contexto social conturbado, terem que criar meios que muitas vezes são inviáveis para eles neste momento é aprofundar ainda mais a desigualdade que a gente tem no nosso país.”
Incerteza, estudo e "ANPEd, presente" na pandemia
Ana Paula da Paz Tavares é pedagoga doutoranda em psicologia na UEM. Atualmente está na casa da mãe idosa, que requer cuidados. Como lá não tem internet, tem acompanhado o projeto Live ANPEd: Presente na Quarentena pelo wi-fi de uma clínica veterinária vizinha. “ O sinal chega muito baixo e só consigo conexão quando coloco o computador na janela do quarto que fica na frente da casa dela.
Apesar da suspensão do calendário da UEM, atividades como orientação e encontros de grupos de pesquisa da pós-graduação continuam de forma remota. “Fui tentando manter o foco nos estudos, mas é humanamente impossível não ser impactada com um mundo todo parando. O medo do incerto e de não dar conta dos compromissos aumenta e chega a paralisar.” A discente conta que precisou recorrer ao uso de medicamentos para manter a saúde mental. “Meu exame de qualificação no doutorado foi por videoconferência, com todos os membros online, separados geograficamente em três estados. O exame por si só já eleva o nível de estresse, mas em meio a tantas incertezas e medos causados pela pandemia, este processo se tornou ainda mais intenso e penoso."
Depoimento em vídeo de Ana Paula sobre o projeto Live ANPEd: presente na quarentena
Sobre sua formação, ela ressaltar que é fruto da escola pública e das políticas públicas. "Faço parte da classe trabalhadora que luta diariamente por uma sociedade mais justa e igualitária/equitativa. Todo meu percurso escolar acadêmico foi e é no ensino público.”Neste contexto, pensar o papel da escola e da universidade é algo essencial. Ana afirma que as lives da ANPEd têm sido importantes e mesmo com dificuldades na conexão tem acompanhado semanalmente. “Embora as demandas neste período de quarentena tenham aumentado, para mim e para muitos, a forma que a ANPEd organizou as lives (uma vez por semana com duração de uma hora), tem sido um momento de unir forças, e até mesmo no sentido de lançar luz em tão tempos difíceis.”