A necessidade de distanciamento social em decorrência da pandemia do Covid-19 levou à suspensão das atividades presenciais nas instituições educacionais. Algumas redes de ensino público e escolas privadas implementaram a Educação a Distância (EaD) ou a proposição de atividades remotas mediadas pelas tecnologias como forma de dar continuidade ao cômputo dos dias previstos no calendário escolar. Este posicionamento da Anped é feito para alertar aos profissionais da educação e às famílias sobre a impropriedade da modalidade EaD na Educação Infantil, etapa inicial da Educação Básica, na qual a sua utilização não está prevista na legislação educacional por ser, sobretudo, inadequada. Ainda, neste documento, ratificamos a defesa incondicional dos direitos das crianças, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo responsabilidade do Poder Público, da família, da comunidade e da sociedade em geral, assegurar, com prioridade absoluta, a proteção das crianças, principalmente dos seus direitos à vida, à saúde, à alimentação e à educação.
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Uma modalidade que não se aplica à Educação Infantil
Primordialmente, destacamos a ilegalidade da proposta de implementação de atividades escolares remotas para crianças pequenas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) não prevê a utilização da EaD na Educação Infantil, nem em casos emergenciais, como faz para com o Ensino Fundamental. Ainda que a LDB estabeleça o mínimo de 200 dias letivos e a Medida Provisória nº 934/2020, em caráter de excepcionalidade, dispense a obrigatoriedade de observância a esse mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumpridas as 800 horas anuais, não há razão para que sejam implementadas de maneira precipitada iniciativas visando atender esse preceito, tendo em vista que o objetivo principal da Educação Infantil, o desenvolvimento integral das crianças, em todos os seus aspectos, de maneira complementar à ação das famílias e da comunidade, conforme a mesma LDB, depende de condições mínimas de qualidade que não podem ser asseguradas por meio da transposição do que deve ser realizado presencialmente, para atividades remotas delegadas às famílias. Outrossim, os princípios que orientam o uso da EaD ou o uso de quaisquer dispositivos de ensino remoto implicam, entre outros, planejamento e gestão compartilhada, domínio, formação e autonomia dos sujeitos, acesso aos recursos disponíveis, acompanhamento e avaliação.
Uma experiência formativa que não se instrumentaliza
Outros dois pontos a serem considerados são o currículo e a avaliação. A especificidade do trabalho pedagógico com as crianças pequenas tem como marca uma experiência educativa eminentemente interativa, sem listagem de conteúdos previamente definidos. Assim, “o currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico [...]” (BRASIL, 2009). Com efeito, a dinâmica da educação infantil ocorre mediante a organização de vivências e experiências que extrapolam atividades ou sequências correntemente denominadas didáticas e perpassam as brincadeiras e as relações de cuidado. Quanto à avaliação do processo educativo nas instituições de educação infantil, esta não tem – e não deve ter - o objetivo de promoção ou retenção, sendo assim, não há condição para o acesso ao Ensino Fundamental.
Educação Infantil não se faz com arranjos emergenciais
A consideração da educação infantil em tempos de pandemia da Covid-19 não pode negligenciar a necessidade de planejamento governamental (em regime de colaboração federativa) e intragovernamental (diferentes setores de políticas públicas) nos estados, Distrito Federal e, sobretudo, nos municípios. O que se nota é a ausência de políticas intragovernamentais que revelem, de fato, preocupação com a proteção da infância, o que requer das secretarias municipais (educação, serviço ou ação social, cultura, saúde e outras) o estabelecimento de planos de ação estratégicos que superem as ações desarticuladas e esporádicas. Não se pode estabelecer qualquer estratégia sem a escuta e a participação ativa dos e das profissionais da educação e das famílias. Neste sentido, no contexto atual de isolamento social, o próprio diálogo com as famílias é em si uma estratégia, que permite o estreitamento das relações por meio da interlocução sobre as dúvidas em torno da educação e cuidado com as crianças, do manejo de determinadas situações ou, ainda, da oferta de alguma orientação sobre o acesso a recursos de programas sociais que permitam a manutenção da vida.
É fundamental identificar onde estão as crianças, em que situação se encontram, se seus familiares possuem suficiente renda, se as crianças estão em situação de risco - de vida, com ausência de garantia alimentar ou atendimento de saúde, interrupção de atendimento educacional especializado e suas consequências, abalos quanto ao equilíbrio emocional, dentre outras questões emergentes. Ou seja, a maior preocupação nesse momento não pode ser com uma possível perda do ano letivo! Precisamos pensar com outra lógica: precisamos pensar no tempo das crianças e nos seus modos próprios de vivenciar as consequências de uma situação tão adversa, como essa de uma pandemia. Neste sentido, vale, cada vez mais, a retomada de posicionamentos em favor do investimento na ciência e tecnologia, do papel da pesquisa e da valorização dos conhecimentos já acumulados, pois é esse arcabouço que, diante de uma situação inesperada e complexa como a que estamos vivendo, nos permitirá elaborar um posicionamento fundamentado acerca dos possíveis caminhos a serem tomados. É nessa perspectiva de valorização da pesquisa articulada à prática que o campo da educação infantil tem se posicionado na compreensão dos fenômenos que afetam as crianças e a sua educação.
Pela defesa das crianças e suas infâncias
Estes argumentos fundamentam a inadequação da proposição da EaD ou de prescrição de atividades remotas para crianças de 0 a 5 anos de idade e permitem avançar na reflexão sobre as crianças de até 10 anos de idade, incorporando aqui a preocupação com o que se tem proposto para os anos iniciais do Ensino Fundamental. O cumprimento de carga horária escolar não pode ser prioritário nem uniformizado em um contexto de pandemia, em que o que está em jogo é a sobrevivência das pessoas, sobretudo, da população em condições precárias de vida, grupo social no qual se encontra grande parte das crianças brasileiras que frequentam as redes públicas de ensino ou as instituições privadas que estabelecem parcerias com o poder público.
O cenário requer ampla discussão e proposição de políticas que não podem ser improvisadas ou reduzidas a meras atividades conteudistas mediadas pela tecnologia, sob uma máscara de inovação. Cabe ao setor público atuar com responsabilidade frente a estas questões, incluindo-se aqui os Conselhos Municipais e Estaduais de Educação, os Conselhos Tutelares e de Direito, o Ministério Público e os Tribunais de Contas, órgãos e instâncias aos quais cabe contribuir para o controle social das instituições privadas e públicas visando à garantia dos preceitos legais referentes aos direitos das crianças e de suas famílias.
É momento de reafirmar e defender um projeto formativo com qualidade social desde uma concepção ampliada de educação, que considere todas as crianças como sujeitos de direitos, sem esquecer aquelas que não residem em meio urbano, como as do campo, as quilombolas, as indígenas, com um olhar particular àquelas que recebem Educação Especial, sob o riscos de, neste adverso contexto de pandemia, efetivarmos a exclusão de parcela importante da população e ampliarmos as desigualdades sociais já existentes.
Posicionamento ANPEd, elaborado com o apoio da coordenação do GT07 - Educação de Crianças de 0 a 6 anos, Angela Scalabrin Coutinho e Romilson Martins Siqueira e com a colaboração de Bianca Cristina Corrêa e Maria Luiza Rodrigues Flores, pesquisadoras do GT07, e dos pesquisadores Luiz Fernandes Dourado e Salomão Barros Ximenes do GT05 – Estado e Política Educacional.
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