Reunidos virtualmente há alguns dias, nós, do GT Educação Popular e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - ABRASCO tecemos algumas reflexões e expressamos nossas preocupações diante do avanço da pandemia de SARS-CoV-2, ou COVID-19. Aproveitamos para estreitar os laços que nos enlaçam há anos, nos aproximando mais durante o distanciamento físico necessário. Também nos perguntamos - o que a Educação Popular e Saúde (EPS), como campo de reflexões e práticas no qual militamos, tem a dizer sobre a atual conjuntura de saúde que o país atravessa?
Cabe aqui um breve apontamento histórico a respeito desse Grupo de Trabalho e seu campo de atuação. Nos organizamos em coletivos desde a década de 1980, nos encontros e eventos da Saúde Coletiva, que se colocava como perspectiva orientadora de novas práticas para um novo sistema de saúde que vinha sendo debatido. Em especial após o período da abertura política e da promulgação da Constituição de 1988, o sonho de estruturar um sistema universal de saúde ganhou concretude, trazendo dentro de seus princípios a participação popular. Alguns de nós também participavam do GT de Educação Popular e Saúde da ANPEd, como Eymard Vasconcelos, Maria Waldenez Oliveira, com destaque para a pessoa do nosso eterno mestre Victor Valla e suas indagações sobre as possibilidades de ampliar a compreensão dos profissionais e acadêmicos a respeito dos diversos saberes que compõem o saber popular.
A perspectiva crítica desenvolvida pela teoria da Produção Social da Saúde, de matriz latino-americana, foi uma das bases da Saúde Coletiva e da estruturação da própria ABRASCO. Rompendo com a visão estritamente tecnicista, essa perspectiva afirma que os processos de saúde-doença-cuidado se expressam de formas diferentes, de acordo com o grupo social atingido, e são determinados por dimensões macro e microestruturais. Nesse sentido, a saúde não é apenas uma questão referida às disciplinas de base biológica. É também uma questão política, na medida em que os recursos que podem ampliar a proteção para os grupos historicamente explorados e espoliados estão a mercê da atuação daqueles que têm como função fazer cumprir os deveres do Estado de proteger os cidadãos e cidadãs, respondendo às suas necessidades. No entanto o modelo biomédico segue sendo praticamente exclusivo na elaboração de campanhas e materiais de educação em saúde, na formação dos profissionais de saúde e, mesmo na atenção básica, ou seja, no atendimento oferecido nos centros de saúde e unidades que possuem equipes de saúde da família, o olhar de cuidado para os territórios da vida cotidiana dos diversos grupos populacionais vem perdendo força para um modelo assistencial reducionista, tecnicista, fragmentado e medicalizador.
Nesse contexto, a EPS se configura como um posicionamento ético-político e epistemológico para a produção de práticas educativas de caráter emancipatório, para além das prescrições a respeito de hábitos e comportamentos ditos "saudáveis", reconhecendo e partindo do ponto de vista popular para discutir o que é ter saúde. Sob um modelo de desenvolvimento e acumulação de riquezas excludente, ter saúde é, principalmente, garantir melhores condições de vida e trabalho. Com a pandemia, as desigualdades e iniquidades, reforçadas pelo capitalismo, saltam de sua paulatina invisibilização, evidenciando, entre outras tantas coisas, a importância dos sistemas públicos e universais de saúde em sua forma ampliada, abrangendo o direito à moradia, à alimentação, à renda e ao trabalho, ao saneamento, ao lazer, e segue uma longa lista negligenciada nas sociedades neoliberais.
A ocorrência do atual surto de COVID-19 não é um processo excepcional, se olharmos a questão da saúde numa perspectiva histórica. Não surpreende que estejam se produzindo mais e mais processos de adoecimento relacionados a microrganismos, com destaque para os vírus e sua capacidade de mutação rápida e recombinação genética na mesma medida em que os entornos ambientais se tornam alvos de especulação financeira e lucro. Apesar de sua surpreendente velocidade de transmissão e gravidade dos casos que requerem internação, a COVID-19 pode ser considerada uma tragédia anunciada. E certamente não será o último problema de doença transmissível a atingir vários países simultaneamente.
As incertezas sanitárias se somam às incertezas quanto à capacidade do planeta diante das mudanças climáticas causadas pela mão humana, e diante de um modelo de desenvolvimento centrado na exploração de seres vivos e destruição ambiental. A COVID-19, de forma agressiva e rápida, impôs transformações nos modos de viver que se expressam de forma diferente nos grupos sociais excluídos e vulnerabilizados.
A partir dessas considerações iniciais, compartilhamos aqui reflexões e indagações, apontando para algumas possíveis respostas, ainda que provisórias, que nos permitam pensar em um futuro próximo.
Nesse cenário de incertezas globais, indagamos se chegaram a existir certezas, especialmente para essa fatia da população mais vulnerabilizada, pela falta de acesso à moradia, ao trabalho decente, à saúde, à educação, ao lazer, apartada de seus territórios, de sua relação com a terra e dos meios de produção, o que caracteriza o modo de vida da maioria da população brasileira. Em tempos de pandemia, como essas pessoas poderiam pensar, ou priorizar no cotidiano, no risco de adoecer, se a “provisão” de bens essenciais à vida não existem de forma satisfatória para um bem-viver? Como aproveitar esse momento para estabelecer novos paradigmas de saúde e de educação, que não sejam culpabilizadores e prescritivos, com orientações de proteção demasiadamente simples para uma parte da população e inalcançáveis para outra parte? Grande parte da população brasileira não tem acesso a água encanada, outros tantos vivem com trabalhos informais, vínculos precários ou inexistentes: como pensar a saúde dessa, com essa, população no contexto de confinamento e distanciamento físico, onde seria preciso lavar as mãos a cada duas horas? Existe uma racionalidade por trás de tais regras de isolamento, mas é a racionalidade da biomedicina, que se confronta com outras regras da vida e da sobrevivência, do convívio.
Como, em meio à emergência sanitária, enfatizarmos a saúde como direito, estando claramente definida no texto constitucional vigente, fruto de lutas históricas e denunciarmos os ataques que o Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo alvo? Como construir um sistema de saúde que tem a democracia e justiça social como valores quando seus principais algozes são autoridades governamentais tão bem capitaneadas pelos ditames da perversa globalização liberal, que vestem seu emblema enquanto esfacelam sua estrutura e defendem a sua redução? Entendemos que é preciso retomar os investimentos na defesa do SUS e do direito à saúde articulados com o compromisso de romper com as forças que deprimem a vida e os direitos conquistados.
No momento atual, em que estamos completamente capturados pelas informações sobre o que e como fazer diante dos riscos de adoecer e morrer pela COVID-19, e, onde tais prescrições surgem legitimadas pela ciência, pelas evidências científicas e pelas normas emitidas pelas autoridades sanitárias, gostaríamos de reforçar a importância da EPS e da Saúde Coletiva, que tem em sua essência a valorização e promoção de um trabalho territorializado, que visa fortalecer os saberes populares, a participação social e a produção do cuidado associado à transformação dos modos de vida e da relação entre os humanos e o planeta.
Os produtos do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, em raras ocasiões, resultam em políticas públicas que melhoram ou são incorporadas à vida da maioria das pessoas, demonstrando o distanciamento existente entre esta produção e a solução de problemas sociais para estabelecimento da justiça social, um dos valores motrizes do Estado Democrático de Direito. O que a ciência dita normal apresenta, e que a tecnologia faz circular não tem conseguido orientar a produção de modos de viver daqueles que a cada dia inventam o cotidiano para sobreviver. Para essas pessoas, o agir cotidiano é orientado por justificativas e explicações que a ciência, que historicamente tem se instituído como detentora da verdade, não abrange. Não é de surpreender que as evidências que recomendam lavar as mãos não façam sentido para quem carrega água na cabeça, compra água de caminhões pipa ou simplesmente não tem acesso a água.
A “grande ciência” não explica porque temos que manter o isolamento físico e domiciliar se grande número de brasileiros não têm uma habitação digna, apropriada para tal confinamento ou mora em locais de precárias condições de saneamento. Entretanto, a Ciência (com C Maiúsculo) tem apontado soluções para questões cruciais para a vida no Planeta Terra. O que fazer então para diminuir esta distância, como colocar em diálogo o desenvolvimento científico e a experiência de vida de cada um? Será que os problemas decorrentes dos modos de levar a vida no cotidiano não são problemas científicos? Por que esses problemas não são encarados como de interesse científico? A EPS toma como princípio os saberes da experiência feito como base do conhecimento a ser produzido de forma compartilhada no qual as pessoas se sintam presentes, como dizia Paulo Freire. Ao mesmo tempo, os saberes populares e ancestrais que orientam o cotidiano são resultados de adaptações que a população faz na busca de justificativa e explicações para seus atos, levando a que, em tempos de pandemia, observemos expressões como: - “esta doença só ataca quem foi para o exterior: eu como nunca sai de meu interior na zona rural estou livre” – e então, o que fazer das evidências científicas sobre os riscos e o comportamento do vírus?
Como trazer as evidências científicas para ser dialogada e problematizada no plano do cotidiano considerando que o encontro para o compartilhamento das reflexões sobre a situação e a construção do inédito viável hoje é feita à distância, pelas tecnologias comunicacionais que nem todos têm acesso? Como tecer este diálogo em que, entre os que têm acesso a tais tecnologias, ainda priorizam e aceitam tais informações que fazem sentido para suas vidas, mesmo sendo fake news?
Todas as interrogações ganham outro sentido quando emanadas pelas autoridades sanitárias na forma de normas e regulamentos, que também são provisórias e incertas. Ontem as máscaras artesanais não faziam parte do rol de atitudes preventivas, hoje já estão recomendadas, desde que propriamente higienizadas. E diante disso a sensação de segurança dada pelo simples fato de usar máscaras justifica o relaxamento do isolamento. – “Estou de máscara e assim posso circular”. As notícias e orientações surgem fragmentadas e são adaptadas de acordo com a necessidade individual de cada grupo, cada qual prendendo-se na prescrição ou evidência científica que lhe é mais adequada.
Além de tudo, os decretos governamentais de contenção de aglomeração não se dirigem aos empresários proprietários de serviços de transporte apontando alternativas, que simplesmente retiram os ônibus de circulação. Temos hoje a restrição de ônibus interestaduais, mas centenas de trabalhadores nordestinos que migraram para as colheitas em outras regiões estão voltando para casa em transportes clandestinos – “Ficar lá morro de fome e frio, aqui pelo menos estou perto da família, melhor arriscar...” Ao invés de viabilizar possibilidades, tais medidas verticais, que caem na cabeça da população, geram mais iniquidades e riscos para as classes populares.
Há, no contexto da pandemia, uma força motriz que nos empurra para a mudança ou para a resignação? O que a população tem construído de conhecimento nessa experiência? O que podemos construir, enquanto agentes de promoção de saúde, para promover uma outra percepção de ser saudável e de educar, de pensar riscos para além de prescrições? Como utilizar a potencialidade transformadora desse momento para promover bem viver de todas e todos? Como ressignificar os sentidos da presencialidade em tempos de isolamento social e conexão virtual?
Uma série de reflexões têm surgido nesse sentido, buscando repensar o modelo atual, não só no campo da saúde, mas também do trabalho, do consumo, da nossa relação com o meio ambiente em que nos colocamos e com o restante da humanidade. Para construir o inédito viável mediante tal situação-limite precisamos nos nutrir a partir dos instrumentos que a educação popular em saúde nos oferece. A latente crise no sistemas capitalista e biomédico de saúde nos apresenta a possibilidade de construir um projeto democrático e popular, pautado no diálogo, na emancipação, na amorosidade e no bem viver.
Diante de tantas incertezas e interrogações, a potência da Educação Popular e Saúde encontra-se na árdua tarefa de contribuir com reflexões junto às iniciativas populares, sociais e do campo da saúde no enfrentamento às situações que a pandemia traz; assim como de coletar, conhecer e sistematizar as traduções que a população faz deste cenário, refletir sobre as argumentações e reconstruir os saberes do mundo, tendo como direção e sentido a vida da população.
Conheçam o site da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, e acessem as atualidades sobre a COVID-19, discussões, vídeos e notas da ABRASCO e seus Grupos Temáticos
https://www.abrasco.org.br/site/
Sobre a participação do GT EPS no VI Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde, em Parnaíba, PI, em fevereiro de 2020.
Imagem: 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas na Saúde da ABRASCO, João Pessoa, em setembro de 2019