A ANPEd realizou entre os dias 20 e 24 de outubro sua 39ª Reunião Nacional na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. O tema “Educação Pública e Pesquisa: ataques, lutas e resistências” foi, logo na abertura, no Teatro Popular Oscar Niemeyer, esmiuçado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. O professor da Universidade de Coimbra enalteceu que a celebração que acontecia ali era “muito importante para que nos sintamos fortes, juntos. Mas o momento é muito difícil. Estamos a entrar num período que vai exigir de nós um esforço muito especial”, afirmou. Por isso, ele dedicou sua fala a estudantes, professores e funcionários da Universidade da Grande Dourados (UFGD), cuja nomeação federal para reitoria ignorou indicação de lista tríplice prévia, em sintonia com um contexto de desmonte da autonomia, recursos e valorização da pesquisa e educação pública. Em sua fala, Boaventura não poupou críticas ao neoliberalismo como estratégia consciente de afronta às diferenças e de expansão de desigualdades, e clamou por uma nova ecologia dos saberes, presente hoje em lutas de reconhecimento e empoderamento em diferentes frentes no Brasil e no mundo.
Clique aqui e acesse também discurso na íntegra da presidente da ANPEd, Andréa Gouveia Barbosa, na abertura da Reunião Nacional.
Boaventura desejou ali que a reunião da ANPEd pudesse ser um hino à educação livre, crítica, plural e independente. E foi isso que se viu ao longo de cinco dias em todas as atividades do encontro, da programação científica à cultural. Exemplo pujante disso foi a oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), que reuniu representantes de 40 movimentos de todas as partes do Brasil, de líderes indígenas e do campo à estudantes e pesquisadores, para trocas de saberes e comunhão a fim de que, como “parentes”, nas palavras de Eronilde de Sousa Fermin, do povo Omagua, possam fazer que “a minha dor seja a sua dor e a sua dor seja a minha dor”. No ato público dentro da programação da Reunião Nacional, Boaventura afirmou que essa era a tradução mais vibrante para que “o medo se transforme em esperança” - clique aqui e acesse vídeo na íntegra de transmissão do Ato Público UPMS na Reunião Nacional.
Mesmo num contexto de corte de recursos de apoio a eventos científicos e de investimentos que já afetam à própria infraestrutura das universidades, a ANPEd realizou uma de suas maiores reuniões nacionais, com atividades voltadas a manter viva essa esperança, recebidas de portas abertas pela UFF e por seu programa de pós-graduação em Educação. ”Foi uma reunião com uma potência do ponto de vista do posicionamento político da ANPEd, de reafirmar o compromisso com a Educação, e muito potente do ponto de vista acadêmico reunindo temáticas super atuais sobre os novos desafios e fronteiras de pesquisa em educação”, afirmou a presidenta da ANPEd. Para a Andréa Barbosa Gouveia (UFPR), a presença em peso de professores e estudantes nesse momento difícil “mostra o quanto as pessoas precisam estar juntas, falar sobre o que a gente pesquisa, o que a gente tem produzido, no interior de diferentes grupos, com diferentes abordagens. E isso tudo fez uma 39ª Reunião muito bonita que afirma o lugar da ANPEd como o lugar de encontro dos pesquisadores e a ANPEd como lugar de resistência”. Um importante espaço de afirmação de compromissões da ANPEd foi a Sessão Pública do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE). "A ANPEd faz parte da coordenação do Fórum e foi entidade perseguida em 2016 e tirada sumariamente do espaço democrático do FNE", relembrou o coordendor do Fórum, Heleno Araújo. "Então a ANPEd trazer essa sessão aqui pra dentro da 39ª Reunião Nacional é de fundamental importância, com participação ativa dos fóruns estaduais trazendo relatos de mobilizações", afirmou o também presidente do CNTE, que ainda ressaltou o apoio dado na sessão ao povo do Chile, que vem protestando contra a falácia da política neoliberal.
Clique aqui e acesse a Carta de Niterói, aprovada pela Assembleia Geral da ANPEd ao final da Reunião Nacional.
Uma das principais formas de resistência se deu através de debates aprofundados tendo como parâmetro a pesquisa científica em Educação. Enquanto mais de 800 trabalhos eram apresentados nos 23 GTs, mostrando a pujança das investigações em curso na área, Sessões Especiais, Sessões Conversa e Minicursos colocavam em perspectiva temas de grande relevância para as políticas públicas - outro espaço de destaque foram os Painéis Temáticos, com proposições de sessões pelos próprios associados. Participantes de todo o Brasil puderam, nesse sentido, acompanhar debates sobre temas diversos como Educação Básica, Formação de Professores, Financiamento, Educação Democrática, BNCC e Ética na Pesquisa, com convidados internacionais e de outras áreas do saber, como economia, filosofia e sociologia.
Em sessão sobre o FUNDEb, José Marcelino, do PPGEd da USP-Ribeirão Preto, chamou atenção para o desabamento dos investimentos na Educação Básica, da ordem de 20 bilhões de reais nos últimos cinco anos, comprometendo de institutos federais a creches. Por isso a importância do projeto de lei de tornar permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), com ampliação de 9% para 40% da participação do governo federal em até 10 anos. “Será uma participação ainda tímida, mas essencial. Outro conceito importante trazido na lei é o de Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi)”, defende o professor. Na mesma sessão, o economista Pedro Rossi (Unicamp) atacou a falácia da necessidade de cortes de gastos em momento de crise. “O problema do Brasil não é um excesso de gastos, mas sim uma virada na política econômica que tende a desfinanciar as áreas sociais, incluindo a educação, com retrocesso através das novas regras, como o Teto de Gastos, que já se mostra insustentável”, explicou.
Em outras sessões, a prática docente e a realidade da educação na rede básica foram tema de análises, a exemplo de mesa sobre precarização do trabalho docente através das políticas de formação de professores, com a presença de Luiz Fernandes Dourado (UFG), Gisele Masson (UEPG), Acácia Zeneida Kuenzer (UFPR) e Iria Brzezinski (UNB/PUC Goiás). Outra mesa concorrida tratou de políticas, instituições e sujeitos na Avaliação na Educação Básica, com a italiana Elena Mignosi (Università degli Studi di Palermo/Itália) e os pesquisadores brasileiros Maria Teresa Esteban (UFF), Luiz Carlos de Freitas (UNICAMP) e Silvia Márcia Ferreira Meletti (UEL), assim como a sessão sobre Processos de exclusão na/da Educação Básica. “Até pouco tempo atrás os autores traziam a noção de exclusão desvinculada de qualquer relação com o Estado. Ou seja, excluído era aquele que o Estado não tomava conhecimento da existência. E hoje nós não podemos fazer isso. As estatísticas mostram que hoje no Brasil a exclusão tem identidade, tem raça, tem gênero. E é fácil perceber no mundo de hoje o quanto essa exclusão é silenciada”, afirma Ângela Maria Scalabrin Coutinho (UFPR). Já Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (UFMS) trouxe à mesa, a partir de sua vivência no GT15, de Educação Especial, a preocupação sobre o aumento de diagnósticos de crianças com deficiência intelectual. “Hoje nós temos nas escolas brasileiras uma estimativa que supera qualquer média internacional. Isso implica na necessidade de análise da própria educação brasileira, de rever não a educação especial, mas conceitos e estruturas”, defendeu.
Essa pluralidade de espaços foi bem aproveitada por Thiago Rodrigo, doutorando em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Depois de acompanhar a Reunião Nacional de 2017, em São Luís do Maranhão, e a ANPEd Nordeste 2018, em João Pessoa (PE), ele participou ativamente de debates no GT de Educação Superior e dos Simpósios promovidos pela WERA (World Education Research Association) e AERN (American Education Research Association) . “É importante considerar o papel da ANPEd em problematizar as políticas educacionais tanto no Brasil quanto na América Latina. Isso é fundamental pra formação do pós-graduando em Educação no Brasil, com essa interlocução que é possível com os pesquisadores do campo”, enalteceu.
A problematização das questões sociais e educacionais também perpassou toda a programação cultural da ANPEd, trazendo apresentações que não se limitaram ao entretenimento artístico, mas sim como resultado de coletivos que provocam e estimulam novas vivências e percepções. Exemplos disso foram a poética do Islam das Minas na abertura da Reunião Nacional, as Danças Circulares e o Encontro de Saraus, que possibilitaram uma comunhão de novos saberes entre artistas, professores e estudantes da UFF e de universidades de todo o país.
A 39ª Reunião Nacional foi realizada em meio às comemorações dos 40 anos de fundação da ANPEd - uma celebração que valoriza os esforços de defesa da educação pública empreendidos nas últimas 40 anos como principal estímulo ao enfrentamento dos novos desafios. Nesse sentido, no encerramento do encontro, a Associação prestou reconhecimento a todas as diretorias, com representantes de cada uma das gestões que estiveram à frente da ANPEd nesse período recebendo a Homenagem Paulo Freire. Um dos depoimentos mais emocionantes foi o de Célia Frazão Soares Linhares (UFF), que integrou a primeira diretoria da ANPEd, em 1978 e tem viva na memória o que significa lutar pela liberdade e pela educação pública num país que de tempos em tempos flerta com o autoritarismo.