A Revista Brasileira de Educação (RBE), em seu volume 24 do mês de março, traz o artigo "A Execução Orçamentária das Políticas das Políticas de Diversidade nos Governos Lula e Dilma: Obstáculos e Desafios". A RBE adota a publicação avulsa e digital, que é uma das ênfases da produção e divulgação de conhecimentos e processos no contexto da ciência aberta. De autoria da pesquisadora Denise Carreira (USP), a pesquisa se debruça sobre o papel da Secad/Secadi de 2004 a 2016, com detalhamento sobre a arquitetura orçamentária do programa, conquistas para setores que estão na "fronteira da fronteira da garantia do direito à educação", assim como embates internos no MEC e com demais ministérios, limites, queda orçamentária e usos por parte dos governos e pressões de grupos conservadores, que levaram ao desmonte de tais políticas no atual governo. Confira entrevista com a autora:
O que representou a criação em 2004, no governo Lula, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), demanda já antiga de movimentos sociais e sujeitos diversos?
Representou uma inovação institucional comprometida não somente com a afirmação e o desenvolvimento de políticas para setores da população profundamente marcados pelas desigualdades, que estão na “fronteira da fronteira da garantia do direito à educação”, mas algo que tensionou a noção de qualidade em educação e a forma como são concebidas e implementadas as políticas universais de educação. A Secretaria foi criada com o objetivo de desenvolver políticas e ações referentes ao enfrentamento do racismo contra a população negra; a gênero e à sexualidade; à educação de jovens e adultos; à educação do campo; à educação escolar indígena; à educação escolar quilombola; à educação especial; às medidas socioeducativas; à educação de pessoas encarceradas; à educação ambiental e à população atendida por programas de renda mínima, como o Bolsa Família - agendas profundamente conflitivas no contexto brasileiro. Com o tempo, outras “diferenças vividas como desigualdades” emergiram no campo da política educacional e foram sendo assumidas pela Secretaria.
Como se deu propriamente a matriz orçamentária de tal política?
A arquitetura orçamentária, sobretudo na primeira etapa da Secretaria, quando esta era denominada Secad (2004-2011), se constituiu em dimensão estratégica para afirmação do lugar da nova Secretaria dentro do MEC. Uma das iniciativas foi a criação do programa orçamentário Educação para a Diversidade e Cidadania (programa 1377), que aglutinou ações orçamentárias dispersas no orçamento do MEC. Na época, a criação deste programa mobilizou grandes disputas internas no governo, contando com o apoio de técnicos do IPEA, mas tendo como adversários outras áreas do MEC e o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão. Defendida pela equipe da Secad, a criação do programa 1377 representou uma aposta política na sinergia entre as agendas das diferenças e desigualdades e na possibilidade de que isso gerasse um aumento da força política para a disputa das políticas educacionais. Essa disputa acontecia no sentido de contribuir para a superação de uma abordagem fragmentada e “residual” dada às várias dessas agendas, mas também como forma de fortalecer a pressão externa, o controle social e ação política articulada por parte dos movimentos sociais vinculados a essas agendas. Em alguns momentos, o Programa Orçamentário também possibilitou uma “invisibilidade estratégica” para agendas crescentemente atacadas por grupos ultraconservadores, como as de gênero e sexualidade. No Plano Plurianual 2012-2015, o Programa 1377 foi extinto.
Em 2011, com a fusão com a Secretaria de Educação Especial do MEC, a Secad vira Secadi. Em 2012 observa-se um aumento orçamentário, com retração em 2014. O que explica isso?
O aumento do orçamento executado em 2012 decorreu da entrada de novos programas e ações, destacam-se: a fusão da Secad com a Secretaria de Educação Especial, em 2011, com a incorporação dos recursos destinados à educação especial na Secretaria, renomeada como Secadi; a vinda do ProJovem Urbano da Secretaria Nacional de Juventude; o aumento de recursos investidos na produção e na distribuição de materiais didáticos e pedagógicos; a incorporação à execução orçamentária da Secadi de recursos integrantes de ações vinculadas a programas universais ou executados diretamente pelo FNDE. A queda do orçamento executado em 2014 deve ser analisada considerando vários fatores: o crescente fortalecimento do FNDE como o “braço executor” do Ministério da Educação, fazendo com que recursos que inicialmente estariam vinculados ao orçamento da Secadi e de outras Secretarias do MEC passassem à responsabilidade do Fundo. Ocorreram ainda mudanças na sistemática de repasse de recursos para universidades públicas referentes às ações de formação continuada. Por exemplo, ações de formação da Secadi tiveram os recursos disponibilizados antecipadamente para as universidades na própria elaboração do orçamento destas, evitando posteriores processos de conveniamento. Por último, também deve ser considerada a fragilização da Secadi a partir de 2010, crescentemente atacada por grupos ultraconservadores: dos fundamentalistas religiosos aos ruralistas. Desse quadro, faz parte a grande resistência nos sistemas de ensino às suas agendas.
A dificuldade para se executar orçamentos, desarticulações e disputas internas entre secretarias e ministérios é uma realidade na gestão pública. Como isso impactou a Secadi, com a particularidade de uma resistência em estados e municípios e diminuição de equipe ao longo da década?
Um dos desafios da Secad/Secadi foi o de transversalizar suas agendas no conjunto das políticas educacionais do Ministério da Educação. Importante observar também que, dada a sua missão e características, a Secretaria foi se tornando a representante do MEC nas diversas instâncias responsáveis por programas interministeriais do governo federal. Ao longo dos anos, a complexidade e o número crescente de agendas e as resistências e conflitos, inclusive de estados e municípios, não foram acompanhados de investimento em suas condições institucionais. Pelo contrário, a equipe da Secadi foi ficando cada vez menor, parte dela com vínculos precários e temporários. Em 2004, a Secad tem início com uma equipe com 217 profissionais que, em 2014, se restringiu a 80 integrantes. Outro fator que impactou muito o trabalho da Secretaria se refere a um desafio estrutural do MEC: a cultura institucional de desarticulação – das Secretarias como pequenos Ministérios. Sobretudo, no que se refere à falta de dinâmicas e procedimentos internos que favoreçam o encontro, a negociação, a maior articulação entre as Secretaria e os órgãos associados ao Ministério, em prol de um projeto político mais afinado e atualizado regularmente. É importante destacar ainda que uma das grandes fontes de resistência a Secad/Secadi sempre esteve dentro do próprio MEC: apesar de uma crescente adesão discursiva às agendas da Secretaria, a fronteira entre as políticas universais – “as políticas duras” – e as chamadas políticas das diversidades se manteve firme, comprometendo um debate mais estrutural no campo da esquerda sobre qual a noção de qualidade em educação necessária para construir e sustentar um projeto radical de justiça social e ambiental em um país como o Brasil.
Qual balanço geral, em termos de impacto social, orçamento e política pública, é possível fazer dos 10 anos de Secad/Secadi nos governos Lula e Dilma?
É possível sim afirmar que a luta dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil que levou à conquista e à sustentação política da Secad/Secadi até o primeiro mês do governo do Presidente Bolsonaro (2019) gerou avanços importantes: legitimou politicamente agendas invisíveis ou de limitado reconhecimento público; construiu normativas e políticas e programas educacionais; contribuiu para a politização do debate sobre essas agendas no campo da educação; tensionou o debate sobre qualidade em educação e a relação da educação com outras políticas públicas; e questionou dinâmicas, arranjos e procedimentos de elaboração e implementação de políticas públicas, sobretudo para as populações da “fronteira da fronteira do direito à educação”. Mas também é necessário reconhecer que a Secad/Secadi também foi usada pelo MEC e pelo governo federal para apaziguar e esvaziar politicamente conflitos e cobranças apresentadas por parte dos movimentos sociais diante das dificuldades da política educacional em dar respostas mais ágeis e estruturais aos graves problemas decorrentes das desigualdades sociais e educacionais no país.
O avanço ultraconservador, contrário à agenda de direitos humanos, é indicado em seu artigo como uma grande barreira à implementação das políticas da Secadi. Como é possível observar as políticas para diversidade tanto nos discursos que se verificam em escolas e espaços diversos quanto nas ações do governo atual de desmonte de tal estrutura de política às minorias?
A Secadi concentrou várias agendas que desafiam o status quo brasileiro: do racismo à questão fundiária; da LGBTfobia e do sexismo ao consumismo; entre tantos conflitos e desigualdades. Agendas que funcionaram também como “moeda de troca” no complexo jogo político da governabilidade que vigorou no país no contexto de crescimento da força de grupos ultraconservadores. Crescimento que foi sendo construído ao longo dos anos 2000, ganhando intensidade a partir de 2010. Ao longo dos anos, esse campo ultraconversador foi ampliando suas alianças, entre elas, com grupos fundamentalistas religiosos – que teve como marco importante o processo que culminou na assinatura da Concordata Brasil-Santa Sé (2010) – e com grupos ruralistas, do agronegócio transnacional e ultraliberais. Alianças que tiveram um impacto muito grande no trabalho da Secadi e, sobretudo, no momento trágico em que o país se encontra. Atualmente, estamos vivendo um ataque explícito e cheio de ódio a essas agendas por parte de movimentos como o Escola Sem Partido e outros grupos fundamentalistas. A destruição de várias políticas e programas educacionais; o estímulo à perseguição a todos que abordarem essas agendas; a criminalização de movimentos sociais e de organizações da sociedade civil; as ameaças às universidades públicas; o esvaziamento político e das condições de financiamento do Plano Nacional de Educação (PNE) constituem frentes desse ataque. Apesar de tudo isso, de todas as derrotas, muitas coisas foram construídas; muitas sementes estão germinando (mesmo que longe da cena pública); muitas experiências nos territórios resistem e anunciam possibilidades; muitos sujeitos estão comprometidos em manter o debate ativado e muitos outros estão chegando motivados pela polarização da realidade brasileira. Acredito que apesar da repressão; da situação dramática do momento; da dificuldade de visualizar perspectivas; estamos em outro momento da politização do debate sobre a relação igualdade e diferenças nas políticas educacionais, da qual a Secad/Secadi teve um papel fundamental. Os conflitos estão mais explícitos e há uma pressão para que os sujeitos se posicionem. Vamos ver no que toda essa ação política individual e coletiva resulta.