Notícias recentes indicam que o governo federal cogita enviar ao Congresso Nacional medida provisória que trata do ensino domiciliar. A divulgação desta proposta afirma que os pais poderão substituir a escola, que esta é uma atividade comum em outros países e que já existem no Brasil inúmeras famílias aplicando a educação domiciliar.
O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 afirma que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. A interpretação já consolidada deste artigo é de que educar as crianças é dever conjunto tanto da família quanto do Estado via escola e outros programas. As iniciativas da família não se confundem e nem substituem aquelas da escola. No artigo 206, a Constituição Federal estabelece princípios para o ensino, entre eles o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e a gestão democrática do processo educacional.
A escola é ambiente mais plural do que a família, e é, por isso, o território mais adequado à preparação para a vida adulta em sociedade, considerando todo o processo de socialização e de aprendizagem. As aprendizagens feitas em quaisquer disciplinas devem ocorrer em ambiente de ampla circulação de ideias e opiniões, onde as crianças aprendam a debater, argumentar, defender pontos de vista e conhecer outras opiniões, ler em mais de uma fonte sobre o mesmo tema. Parceiros na garantia da condição de cidadania desde a infância, família, sociedade e Estado se complementam, não se excluem, na formação cidadã, autônoma e critica.
Por lei, no país, é obrigatória a trajetória escolar dos 4 aos 17 anos, compreendendo educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Esta é uma tarefa pedagógica que carece de profissionais formados para esse fim, prédios com estrutura própria, bibliotecas, laboratórios, materiais didáticos, procedimentos de avaliação, classes onde se estuda com crianças de faixa etária próxima, excursões escolares e trabalhos de campo. Os aprendizados escolares são objeto de distribuição ao longo de um largo percurso, com conexões entre eles ao longo do tempo e, de modo paralelo, ao longo do mesmo ano letivo. Tanto a construção do pensamento científico quando seu ensino e aprendizagem necessariamente se fazem em ambiente com pluralidade de opiniões e respeito pela diversidade, em uma relação de diálogo.
A ideia de que os filhos vão estudar em casa unicamente com seus pais revela um desejo de criar filhos circunscritos à esfera familiar, limitando suas experiências e reduzindo seu potencial de aprendizagem. Estudos, realizados em diversos países, apontam não só a ameaça aos direitos de cidadania dessa criança ou jovem, como, também, a redução da eficiência de aprendizagem de conteúdos e resultados preocupantes do ponto de vista social e psicológico. Filhos se criam para viver em sociedade, e o ingresso na escola é parte dessa preparação. A escola atua de muitos modos, sendo um tipo de laboratório da vida em sociedade, e, ao longo do extenso percurso escolar. Dentre outras, uma das tarefas da escola é mostrar à criança o pluralismo próprio da vida em sociedade. E fazer isso de modo que cada criança desfrute de ampla liberdade de expressão e de um elevado grau de respeito para com os modos de ser dos demais sujeitos e grupos sociais. Aprender a divergir dos outros, discutir, debater, achar uma solução entre grupos ou indivíduos que têm posições antagônicas deveria ser um exercício cotidiano no ambiente escolar, pois é uma das condições para sociedade democrática.
A ideia de educação domiciliar traz a marca de quem deseja controlar o que seus filhos pensam, e dificilmente admite que os filhos pensem de modo diferente dos pais. Mas é
justamente essa a tarefa da escola, de ampliação dos horizontes dos jovens, em contato com o conjunto do conhecimento científico, artístico, humanístico e literário da humanidade. A escola é lugar de exercício da autonomia intelectual, e isso deve ser visto como algo positivo.
Nem a família substitui a escola, e nem a escola substitui a família, elas não são antagônicas mas complementares. A relação família escola é um aspecto importante da elevação da qualidade da educação que não pode ser minimizada. Assim, as sucessivas manifestações do atual governo, no sentido de desvalorizar a educação pública, criminalizar o trabalho dos educadores e desprestigiar a escola, desconsiderando sua importância, não condizem com a missão do Estado de assegurar a oferta de educação pública de qualidade. Pretender que as crianças tenham seus aprendizados exclusivamente no circuito família e igrejas é antirrepublicano e fere o direito constitucional da criança à educação, contrariando os anseios de ampliação da escolarização da imensa maioria das famílias brasileiras.
Generalizando a visão da escola como lugar violento e perigoso, quando, de fato, as estatísticas mostram que a violência contra crianças e jovens, e inclusive a violência sexual, é fortemente praticada no interior das famílias, e poucas vezes denunciada, e isso ocorre tanto no Brasil quanto nos demais países do mundo. Existem situações de violência escolar com certeza, mas elas são muito mais visíveis e podem ser denunciadas e providências podem ser tomadas. Situações de abuso continuado dentro dos lares são muito mais difíceis de serem denunciadas ou conhecidas, principalmente, quando a criança ou jovem não frequentam a escola.
A escola é um lugar onde as crianças ampliam suas oportunidades de aprendizagem, experimentam a interdisciplinaridade e a realização de projetos de pesquisa e de inovação em contato com profissionais preparados para isso. É onde o conhecimento se constrói no diálogo. Lugar, também da socialização, solidariedade, autoconhecimento e conhecimento da própria comunidade, valores que se aliam aos valores das muitas e diferentes famílias brasileiras, lugar onde as crianças e jovens se tornam cidadãos, onde adquirem consciência dos limites necessários à vida social e que em sociedade todos têm direitos e deveres. Por tudo isso, as entidades nacionais que subscrevem essa nota, esperam que o governo reconsidere sua posição de enviar medida provisória sobre o ensino domiciliar, uma vez que carecemos exatamente de ampliar o acesso à escolarização, de valorizar a escola pública e seus profissionais, assegurando condições adequadas de trabalho e de aprendizagem dos alunos, tendo em vista a construção de uma educação pública de qualidade para todos.
4 de fevereiro de 2019
Associação Brasileira de Currículo (ABdC)
Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio)
Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC)
Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)
Associação Nacional de Política e Administração Escolar (ANPAE)
Associação Nacional de História (ANPUH)
Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação (FINEDUCA)
Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE)
Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES)
Fórum de Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas , Letras e Artes (FCHSSALA)
Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação e equivalente das Universidades Públicas (FORUMDIR)
Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio