Em outubro de 2015, após assembleia geral da 37ª Reunião Nacional, a ANPEd enviou uma moção "em defesa da escola pública brasileira" à Procuradoria-Geral da República. Naquele momento, o Superior Tribunal Federal (STF) fazia audiências preliminares visando o julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439) da própria PGR sobre o tema. Para a ANPEd, como a moção indicava, era "uma oportunidade sem precedentes para o enfrentamento dos diversos problemas que decorrem da presença do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras, como a imposição de valores religiosos e a manutenção de um ambiente desfavorável à diversidade e à tolerância religiosa nas escolas públicas, bem como à implementação de conteúdos curriculares essenciais, como a educação para as relações raciais, a diversidade e a educação em direitos humanos". No entanto, em julgamento realizado em setembro de 2017 o Ensino Religioso foi considerado constitucional pela corte, apesar do parecer contrário do relator. Assim, em março de 2018 a Presidência da ANPEd recebeu ofício da PGR sobre arquivamento da moção enviada pela Associação em 2015.
Convidamos o professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF José Antonio Sepulveda para retomar e atualizar as questões relacionadas à defesa da laicidade na escola pública brasileira, com um debate que remonta à década de 1930 e que se agrava não só com o posicionamento do STF em prol do proselitismo religioso nas escolas, mas também com a presença do tema na Base Nacional Comum Curricular.
Laicidade em Destaque - por Por José Antonio Sepulveda (Professor do PPG – Educação da UFF)
A laicidade é um dos pilares do Estado Moderno. O argumento laico está no cerne do pensamento iluminista, e consequentemente, em todos os processos que caracterizaram as revoluções liberais que marcaram o final do século XVIII e início do século XIX. Nesse sentido, a laicidade não é uma plataforma política de esquerda, mas uma proposta do Estado Burguês proclamada para retirar o monopólio da verdade das instituições religiosas no processo de construção da sociedade democrática moderna. A laicidade então torna-se um princípio da construção da democracia.
Enquanto um princípio democrático, um Estado laico não se associa com nenhuma religião e também não presta privilégio. Portanto, não a financia com recursos públicos e nem estabelece convênios de qualquer ordem, pois tem a obrigação de assegurar a liberdade religiosa para todos os sujeitos. O Estado laico é neutro perante as disputas do campo religioso, não se intromete nelas, nem apoiando e nem criando qualquer empecilho para nenhuma religião, assim como as instituições religiosas não podem fazer uso do Estado para desenvolver suas atividades.
O princípio da laicidade, descrito no parágrafo acima, se referencia no Artigo 19 da atual Constituição Federal Brasileira (CF). Tal princípio é que se encontra ameaçado na atual conjuntura do país. Dois fatos, com explicações que se misturam, exemplificam essa situação: o primeiro refere-se à Ação de Inconstitucionalidade (ADI n. 4439, julgada em 27 de setembro de 2017) sobre a constitucionalidade do Ensino Religioso (ER) confessional nas escolas públicas, que apesar do parecer contrário do relator, o Ministro Luís Roberto Barroso, foi considerado legal por seis ministros da Suprema Corte. O segundo fato refere-se à presença do Ensino Religioso na Base Nacional Comum Curricular, que depois de muita indecisão acabou entrando como um elemento importante da formação básica do cidadão brasileiro, o que possibilita a ampliação da presença da religião na escola carregada de proselitismo, colocando-se assim em contradição com o artigo 210 da Constituição Federal e do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que afirmam que o ER é obrigatório para escola e facultativo para os estudantes, sendo vedada qualquer forma de proselitismo.
Vale ressaltar que ambos os fatos mencionados apontam para o debate acerca da existência do Ensino Religioso nas escolas públicas como uma afronta a laicidade do Estado. Estou plenamente convencido de que a escola pública brasileira nunca foi laica. Todavia, durante a Primeira República, não havia a indicação legal para a existência desse ensino nas instituições públicas de educação, mesmo assim a religião ainda era um elemento importante nesses estabelecimentos. Foi com a ascensão de Francisco Campos, na década de 1930, ao cargo de Ministro da Educação que o ER retornou ao patamar de obrigatoriedade. O famoso Manifesto Pioneiro da Educação Nova, de 1932, era, entre outras coisas, uma resposta às reformas de Francisco Campos, inclusive, mas não somente, à obrigatoriedade do Ensino Religioso nas escolas públicas. Tal inserção curricular tornou-se regra em todas as constituições a partir de 1934. Ou seja, apesar de todos os esforços de educadores laicos da década de 1930 o ER entrou nas escolas para ficar. Depois disso, em todos os momentos da nossa história da educação, os defensores da laicidade nas escolas públicas tentaram retirar esse dispositivo legal e fracassaram. O motivo do fracasso esteve sempre relacionado à redação da lei que dizia que o Ensino Religioso era obrigatório para escola e facultativo para os alunos. Tal redação passava a impressão de que o ensino religioso era uma opção para os estudantes, dando um “ar democrático” (vide o voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI) para as escolas. Nós sabemos que isso não é verdade, centenas de trabalhos acadêmicos demonstram o contrário: a existência desse ensino nas escolas públicas é uma imposição violenta que incomoda (para não dizer persegue) os seguidores das religiões minoritárias, principalmente aquelas que não possuem matriz cristã. As derrotas são consecutivas em cada legislatura. Mesmo assim, a partir de 1946, e mais especificamente na primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961, a inserção de um complemento final no texto sobre a obrigatoriedade da oferta do ensino religioso e a facultatividade deste ensino para os alunos das escolas, “sem ônus para os cofres públicos”, feita pelo deputado Aurélio Viana, mantinha uma esperança para a laicidade. Todavia, a Constituição de 1988 e a LDBEN de 1996, que tentavam reeditar a redação de 1961, teve um inimigo mortal: o veto do Presidente Fernando Henrique Cardoso à redação “sem ônus para os cofres públicos”. De lá para cá, o último texto da LDBEN que inseriu a “vedação do proselitismo religioso” era uma forma de garantir um respiro laico. Seguindo esse raciocínio, tendo em vista o caráter conservador do nosso congresso nacional, não posso concordar com alguns colegas que acham que a derrota no judiciário nos coloca de volta na luta dentro do legislativo. Essa análise me parece completamente equivocada, pois estamos sendo derrotados no Congresso desde 1934. Afinal, o que tem de novo no atual congresso que pode nos dar esperança? O que existe no atual executivo que possa nos dar esperança? Nesse contexto, e a partir desse histórico, entendo que estamos ainda muito longe de termos um Estado laico e, consequentemente, uma escola laica no Brasil e isso se confirma com a efetivação do Ensino Religioso na Base Nacional Comum Curricular. Isso tudo sem contar com o crescimento numérico de prefeitos fisiologicamente ligados a diferentes confissões religiosas nas últimas eleições municipais.
Outro ponto que gostaria de elaborar é a derrota da ADI no Supremo Tribunal Federal (STF). Vejamos, o que legaliza o ER são os artigos 210 da CF e o 33 da LDBEN 9394/96. Ambos os artigos repetem a histórica redação já mencionada anteriormente. Todavia, a existência da redação que veda o proselitismo era o que garantia que este ensino não fosse confessional, inclusive esse é um dos argumentos da ADI. Bom, como o STF entendeu que era improcedente a ADI, na minha modesta opinião, ele passou a permitir dissimuladamente o proselitismo religioso nas escolas.
Em suma, apesar de tudo o que foi analisado, considero que a defesa da laicidade é fundamental para que tenhamos uma verdadeira sociedade democrática na luta contra todas as opressões conservadoras da sociedade contemporânea.