reportagem: João Marcos Veiga (jornalista da ANPEd), Amanda de Oliveira e Camilla Shaw (estagiárias de comunicação da ANPEd)
"O recrudescimento de ofensivas conservadoras vem buscando, dentre outras ações, impor cortes em investimentos e programas, redirecionar iniciativas para parcerias com o capital privado, desconsiderar o fluxo coletivo de produção de assertivas no campo, limitar a pluralidade de concepções presentesno trabalho educativo e cercear a autonomia das instituições e a liberdade de expressão no exercício da atividade profissional dos docentes." A afirmação de Valdete Côco (UFES), coordenadora do GT 7 da ANPEd (Educação de Crianças de 0 a 6 anos), mostra como a Educação Infantil passa por um momento delicado no atual momento político e social, a despeito de conquistas nas últimas décadas na "produção de bases legais e orientações, no investimento em melhorias nas condições de infraestrutura, na qualificação dos quadros funcionais, no aumento do atendimento e no seu reconhecimento social".
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Como forma de estimular a reflexão e trazer à tona debates importantes, a ANPEd preparou um boletim especial em parceria com o GT 7 convidando pesquisadores a refletirem sobre temáticas centrais da área, de financiamento e avaliação a leis que impactam o setor, com especial atenção para a PEC 55 (antiga 241), que traz efeitos nefastos e abrangentes sobre a Educação Infantil e o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024). "Nesse enfrentamento, o GT de Educação de Crianças de 0 a 6 anos reúne vários interlocutores, uma vez que no campo da Educação Infantil interagem participantes situados em várias esferas de atuação, tais como pesquisadores, gestores da política pública, agentes ligados a organismos públicos e privados, movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Nessa defesa, o GT07 integra as iniciativas de denunciaros riscos de retrocessos, anunciando os movimentos de resistência de modo a animar o convite para que novos interlocutores se engajem na responsabilidade coletiva pela educação das crianças, somando esforços para impedir as ameaças e avançar nas conquistas", pontua Côco.
Leia mais sobre os desafios da educação infantil na reportagem a seguir e acesse às entrevistas na íntegra.
Marco Legal da Primeira Infância e o assistencialismo do Programa Criança Feliz
Em 2016 boa parte da comunidade de pesquisadores da área comemorou a promulgação do Marco Legal da Primeira Infância (Lei N°13.257/16), reconhecido como um avanço na construção de uma legislação que oportuniza a articulação intersetorial. Entrevistada do portal ANPEd, Rosânia Campos (UNIVILLE), entretanto, considera ser mais importante discutir a lei não de forma dicotômica, contra ou a favor, mas sim analisando-a no contexto de políticas públicas em um país que ainda possui tantos desafios na efetivação de suas leis. "Seguindo essa perspectiva, considero mais urgente a definição de procedimentos para acompanhar a efetivação dos dispositivos legais que protegem e garantem os direitos das crianças já definidos no nosso país, como por exemplo, o cumprimento do preconizado na Constituição Federal, no Estatuto da criança e do Adolescente entre outros dispositivos legais", aponta a coordenadora do Grupo de Pesquisa em Políticas e Práticas para Educação e Infância - GPEI vinculado a Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE.
Como explica a pesquisadora, a educação infantil no Brasil, em sua origem, não foi engendrada como uma política de assistência social, mas compondo um arranjo social na lógica gramsciana do transformismo. É somente a partir da Constituição de 1988 que conseguimos observar claramente a tentativa de construir um sistema público de seguridade social, sistematizado no reconhecimento do papel do Estado como provedor em responder as demandas sociais. É nesse processo que a educação infantil é reconhecida num sistema de seguridade social.
Confira a entrevista na íntegra com Rosânia Campos (UNIVILLE).
Porém, o reconhecimento legal ainda não foi plenamente efetivado, fato que só será possível, segundo Campos, a partir da expansão dos gastos públicos no fomento e efetivação de políticas que garantam os direitos já reconhecidos. Nesse sentido, observa-se que a não eficiência na implementação de uma política setorial (direito à educação infantil, por exemplo), gera uma valorização das políticas intersetoriais como “saída” para consolidação desse direito. "No entanto, se por um lado parece que a integração da educação no plano da intersetorialidade pode resultar em avanços na consolidação desse direito, por outro lado pode gerar novos problemas e desafios relacionados à superação da fragmentação e a própria articulação (que é diferente de intersetorialidade) das políticas públicas, sobretudo se considerarmos o exposto anteriormente em relação a cultura clientelista e localista da administração pública nacional."
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É assim que gera grande apreensão a criação do Programa Criança Feliz, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), sob o governo de Michel Temer e coordenação da primeira-dama, Marcela Temer. "Em nenhum dos objetivos é claramente definido a Educação Infantil na perspectiva da primeira etapa da educação básica. Ainda de acordo com o documento da lei, os componentes para alcançar os objetivos concentram-se, sobretudo, na educação das famílias, e a exemplo dos objetivos, os componentes não definem nenhuma ação voltada para o incremento da educação infantil." Além desses aspectos, o apoio técnico e financeiro fica condicionado “ao atendimento de critérios definidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, ouvido o Comitê Gestor - em seu Artigo 9º pontua que para a “execução do Programa Criança Feliz poderão ser firmadas parcerias com órgãos e entidades públicas ou privadas.”
Outro ponto destacado pela pesquisadora e professora da UNIVILLE é que "podemos ainda refletir que esse programa é pensando a partir de um padrão social de família e infância considerado adequado. Dessa forma, ao se afirmar um determinado modelo de relação com a criança como o correto, se deslegitima outras formas de interação, ou seja, se deslegitima as competências das famílias pobres para educar seus filhos; bem como se configura numa boa estratégia de disciplinarização das famílias e a definição de um modelo único de família."
ProInfância e estrutura físico-pedagógica
Criado pela Resolução n°6, de 24 de abril de 2007, o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância) foi uma iniciativa decisiva para uma colaboração entre os entes federados no campo da Política Nacional de Educação Infantil, para a melhoria da infraestrutura, para a expansão das matrículas na creche e na pré-escola e para o fortalecimento das políticas públicas municipais para a área. "Foi a primeira vez que vimos no Brasil, no âmbito do governo federal, um programa de construção e/ou reforma de escolas de Educação Infantil com base em um projeto arquitetônico, elaborado a partir de parâmetros nacionais de infraestrutura para a Educação Infantil", afirma Marlene Oliveira dos Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenadora do ProInfância Bahia MEC-UFBA.
Foto: Site FNDE
Como relembram Maria Luiza Flores e Simone Albuquerque em entrevista à ANPEd, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Educação Infantil é uma área relativamente nova no país, com seus pilares firmados apenas com a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, porém com histórica ausência do estado no suporte aos municípios, responsáveis pela oferta da educação a crianças de 0 a 6 anos. "É nesse contexto que surge o ProInfância, materializando uma política pública de cooperação entre a União e os municípios, depois de longos anos sem um investimento do Governo Federal em relação a esta etapa. Visando contribuir para a ampliação das redes municipais de educação infantil, a partir da adesão dos municípios ao Programa, a União efetiva repasse de recursos federais destinados à construção de prédios para a instalação de novas unidades e aquisição de materiais e equipamentos."
Críticas ao programa que ganharam a mídia nos últimos anos são pertinentes em parte, como a meta não alcançada de 6 mil creches até 2014. Outros fatores negativos foram apontados com relação ao projeto arquitetônico, às exigências conveniais e aos mecanismos de gestão e monitoramento. Para Marlene dos Santos, porém, o cerne do problema do Proinfância é de natureza administrativa e político-econômica. "O não cumprimento dessa meta tem relação com a fragilidade da gestão do Programa em nível federal e municipal, com as dificuldades contratuais com empreiteiras e com o desvio de recursos públicos em alguns municípios."
Confira a entrevista na íntegra com Marlene Oliveira dos Santos (UFBA).
Nesse sentido, a coordenadora do Proinfância Bahia MEC-UFBA aponta os ganhos do programa, como o estabelecimento de um novo paradigma de espaço físico escolar para as crianças, rompendo com a cultura de que qualquer espaço serve para matricular crianças de 0 a 6 anos de idade. Outro aspecto relevante do Proinfância foram as assessorias técnico-pedagógicas fomentadas pela Secretaria de Educação Básica do MEC, em articulação com o FNDE, concomitantes à construção das unidades de Educação Infantil nos municípios. O Proinfância possibilitou, também, "que crianças de 0 a 2 de anos de idade fossem matriculadas, pela primeira vez, na história da rede pública de ensino de muitos municípios. A presença dos bebês e de crianças bem pequenas em instituições de Educação Infantil representa uma conquista importante para a sociedade brasileira, que precisa ser ampliada e consolidada no campo de direito à educação."
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Como mostram Flores e Albuquerque, da UFRGS, ao longo do seu desenvolvimento o Programa foi sendo ampliado e articulado a outros programas e ações federais que qualificaram significativamente sua efetividade, aumentando seu impacto no âmbito desta oferta educacional e da inclusão social, como a ação Brasil Carinhoso, que complementou recursos para crianças vinculadas ao Programa Bolsa Família e matriculadas em creche e ampliou o valor repassado pelo Programa Nacional da Alimentação escolar para alimentação na creche e na pré-escola; a Lei 12.499/2011, que autorizou o repasse de recursos a partir da criação de novas turmas já no próprio ano de efetivação das novas matrículas; a produção de materiais de apoio para uma adequada utilização dos novos prédios, de seus espaços e recursos; a realização de convênios com universidades ou a contratação de consultores a partir de editais públicos, com o objetivo de prestar assessoria técnico-pedagógica aos municípios contemplados com novas unidades.
Confira a entrevista na íntegra com Maria Luiza Flores (UFRGS)e Simone Albuquerque (UFRGS).
As pesquisadores consideram o contexto político atual preocupante, uma vez que o Plano Nacional de Educação vigente até 2024 previu na Estratégia 1.5 a manutenção e ampliação de um programa nacional de construção e reestruturação de escolas visando à colaboração da União para com a expansão e a melhoria da rede física de escolas públicas de educação infantil. Tem-se observado que alguns municípios, pela questão da demanda por vagas, estão reduzindo o direito ao tempo integral, na contramão do que determina o PNE, oferecendo vagas para os grupos de quatroe cinco anos apenas em tempo parcial. Por outro lado, há municípios realizando contratos com instituições privadas, para a terceirização da gestão nas novas unidades, o que exige controle social e avaliação pelos órgãos de controle e acompanhamento, tendo em vista garantir o cumprimento dos padrões de qualidade. "Os valores atuais do Fundeb para manutenção da educação são insuficientes para o atendimento dos padrões de qualidade na educação infantil, especialmente para a faixa etária da creche. Sendo assim, vemos com preocupação a proposta da PEC 241 aprovada na Câmara Federal, agora transformada em PEC 55 no Senado, que pretende congelar investimentos em áreas sociais, dentre estas a educação, justamente em um momento em que o país necessita de mais e de novos recursos para efetivar o direito educacional."
Foto: Creche em Brasília. Reproduzida de banco de imagens gratuitas
Para Marlene dos Santos, "nesse momento vejo que é preciso lutar pela continuidade desse Programa, especialmente na atual conjuntura político-econômica brasileira em que políticas neoliberais combinadas com políticas neoconservadoras avançam para subtrair direitos fundamentais dos brasileiros, principalmente dos mais pobres, e colocar em risco avanços e conquistas importantes para a Educação Infantil e para as demais etapas e modalidades da educação." Para a professora, o programa pode ser mais do que uma ação que constrói e/ou reforma escolas e compra mobiliários e equipamentos. "Ele, se aperfeiçoado, pode contribuir para a consolidação de um novo projeto físico-pedagógico para a Educação Infantil no Brasil, no qual as crianças possam ser crianças e viver a sua infância enquanto aprendem, constroem sua autonomia e se desenvolvem integralmente. Na escola, as crianças, com as suas múltiplas linguagens e formas de expressão e comunicação, aprendem a ser e estar no mundo. Por isso, espaço físico e proposta pedagógica e curricular estão conectados entre si."
Formação de Professores para a EI
E quando o assunto é a formação dos professores que atuam na educação infantil? "A formação inicial, nos cursos de graduação em Pedagogia, não dá conta de todas essas demandas. Além disso, quem escolhe ser professor é alguém que escolhe estudar sempre, movimentando pensamentos, ideias e ações", afirma Walburga dos Santos (UFSCar). Para a professora e pesquisadora, os cursos de Licenciatura em Pedagogia, em sua maioria no país, precisam rever que lugar a infância e as crianças ocupam em suas matrizes curriculares, uma vez que não raro apenas são oferecidas uma disciplina obrigatória e uma de estágio, às vezes contando com uma “optativa”. Essa formação inicial ainda no campo da graduação é fundamental para compreender a infância e as demandas próprias do trabalho com criança pequena, valorizando as culturas infantis, os direitos das crianças (e famílias), epistemologias, políticas e práticas da área. "A formação inicial não pode ser aligeirada. Tal proposta carece de inserção na cultura, no cotidiano das crianças e suas famílias, da base em práticas sociais e culturais e ainda responder aos desafios de educar e cuidar que englobem no trabalho pedagógico as especificidades da infância (desde bebês), as diferentes experiências (e linguagens) das crianças e suas famílias, a diversidade, o pertencimento étnico-racial, as diferentes culturas, organização de tempos, espaços, materiais, observando, como propõem as Diretrizes Nacionais Curriculares para Educação Infantil, o brincar e as interações como eixo da proposta pedagógica dessas instituições."
Confira a entrevista na íntegra com Walburga dos Santos (UFSCar).
Nesse sentido, a formação deve ser constante após a graduação para aquelas pessoas que se inserem nas instituições de Educação Infantil. Para tanto, há a urgência de oferta de programas que contemplem essa demanda via Políticas Públicas efetivas e permanentes de formação. A professora da UFSCar destaca um programa da atualidade, mas que, infelizmente já em fase de conclusão, sem previsão de nova oferta: os cursos de formação do Programa de Educação Infantil (PROEI) do governo federal. O MEC implementou programa de formação continuada, com duas frentes, o "Curso de Especialização Docência em Educação Infantil” e o “Curso de Aperfeiçoamento em Educação Infantil”. Tais iniciativas proporcionaram aos participantes ampliar sua visão e compreensão da amplitude do trabalho que desenvolvem, "marcando o lugar da relevância dessa profissionalidade, que nem sempre é reconhecida como tal por outros docentes e pela sociedade em geral, considerando como 'menor' o trabalho pedagógico com crianças pequenas. Ao mesmo tempo, além da atenção às práticas com as crianças e comunidade que as envolvem, houve a intencionalidade de aprofundar olhar para a gestão, políticas públicas e valorização da carreira, muitos desses assuntos sendo tratados nas monografias solicitadas como conclusão de curso", relembra Walburga, lamentando que tais cursos tenham sido retirados das ofertas do MEC em 2015, após terem beneficiado professores, crianças e suas famílias em diversos municípios e estados brasileiros.
Foto: EducaçãoSP/Flickr
Analisando de um ponto de vista histórico, Patrícia Corsino (UFRJ) relembra que a formação de professores para a Educação Infantil passou a receber alguma atenção apenas a partir de 1993, quando a Coordenação Geral de Educação Infantil-COEDI atuou de forma mais significativa na Secretaria de Educação Básica do MEC. Depois disso, em 1997 com a publicação e distribuição do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil-RCNEI, a área foi incluída timidamente na ação de formação denominada “Parâmetros em Ação”. Segundo ela, pode-se dizer que foi a partir de 2003 com o Proinfantil – programa de formação inicial em nível médio modalidade Normal direcionado aos professores que atuavam na Educação Infantil sem a formação mínima exigida pela LDB - que houve uma ação de formação de professores mais abrangente nacionalmente. O Proinfantil contou com a parceria do MEC e universidades de todas as regiões do país, desde a elaboração do material até a implementação e acompanhamento nos municípios. Esta parceria envolveu também estados e municípios e criou uma importante rede de formação de professores de Educação Infantil que até então não existia. O programa terminou em 2012.
Corsino aponta que, com o encerramento dos Cursos de Especialização em Docência na Educação Infantil, neste momento não existem programas ou projetos de formação de professores da área desenvolvidos pelo MEC. "Até o momento, a formação de professores de Educação Infantil não entrou na pauta das ações do MEC do atual governo federal", constata a pesquisadora, que integra desde 2013 o projeto “Leitura e escrita na Educação Infantil”, uma parceria entre o MEC, UFMG, UFRJ e UNIRIO, que tem como um de suas ações a proposta de um curso de aperfeiçoamento com o objetivo de formar professores de Educação Infantil para desenvolver o trabalho com a linguagem oral e escrita, em creches e pré-escolas. O projeto foi finalizado no início deste mês de novembro com um Seminário em Belo Horizonte que apresentou os resultados das pesquisas e lançou a proposta do curso com o seu material pedagógico.
Confira a entrevista na íntegra com Patrícia Corsino (UFRJ).
No trabalho cotidiano, Walburga dos Santos acredita que é preciso continuar a reconhecer que antes dos objetivos e resultados escolarizados, essas crianças precisam viver a infância também no espaço da Educação Infantil, em sintonia com sua imaginação, indagações a respeito do mundo, invenções, experimentos, culturas, construções. Assim, ao invés de buscar culpados para um suposto fracasso na educação pública, para ela a missão deveria ser uma real imersão nas chamadas "linguagens da infância". Ao invés do controle e do ensino precoce de conteúdos e letras, em visão reducionista da própria alfabetização, devemos chegar mais perto das crianças e suas mensagens. "'Criança feliz' frequenta uma instituição não caseira onde as especificidades da infância são reconhecidas e o trabalho pedagógico é realizado por profissionais bem formados, reconhecidos e cientes da complexidade e seriedade do trabalho que desenvolvem e capazes, por outro de se maravilhar no trabalho cotidiano com as crianças pequenas", defende. Nesta mesma linha, Patrícia Corsino considera que "o sujeito da linguagem é o sujeito do conhecimento. Não se pode pensar a linguagem escrita, sem discutir sua complexidade, sua estreita relação com a oralidade, com as imagens, com as práticas sociais e seus significados, suas especificidades, regras e convenções".
Financiamento
Em 2012 foi promulgada a lei 12.722, que trata da obrigatoriedade de transferência de recursos da União aos municípios e ao Distrito Federal com a finalidade de prestar apoio financeiro suplementar à manutenção e ao desenvolvimento da educação infantil para o atendimento em creches de crianças de 0 a 48 meses que atendam a determinados critérios. Uma Medida Provisória de 2016, porém, alterou as regras desse processo, com impactos que merecem atenção.
Com a MP 729/2016 editada pelo atual governo amplia-se o atendimento às crianças com deficiência e às beneficiárias do BPC (Benefício de Prestação Continuada), de maneira não cumulativa, uma vez que até a vigência da lei anterior o único critério de elegibilidade era o atendimento às crianças cujas famílias eram beneficiárias do programa Bolsa-Família. Apesar desta ampliação, os professores Vania Carvalho de Araújo (UFES) e Edson Maciel Peixoto (IFES) apontam que, se a lei 2012 estabelecia que o apoio suplementar correspondia a 50% do valor anual mínimo por aluno definido no FUNDEB, a MP de 2016 retira a vinculação a tal fundo e estranhamente indica que ato do Ministério de Estado do Desenvolvimento Social e Agrário é quem definirá o valor do apoio financeiro suplementar - a votação na Câmara dos Deputados incluiu o MEC como parte nessa definição.
"Vale aqui ressaltar que delegar a ministros a edição de ato sobre o valor criança/ano não garante recurso algum, podendo, inclusive, implicar a não busca ativa dessas crianças para matrícula nas creches. Assim, perde-se a garantia e a previsibilidade da utilização do Fundeb, ou seja, não há vinculação a uma base de cálculo claramente definida", afirmam os pesquisadores em entrevista ao portal da ANPEd.
Confira a entrevista na íntegra com Vania Carvalho de Araújo (UFES) e Edson Maciel Peixoto (IFES).
Outro ponto crítico mostra que, a partir da edição da Medida Provisória e sanção da atual Lei 13.348/2016, os municípios e o DF, além de não saberem previamente o valor/criança/ano, só receberão recursos se tiverem ampliado nos dois anos imediatamente anteriores, o quantitativo de crianças beneficiárias do BPC, de crianças das famílias beneficiárias do PBF e de crianças com deficiências. "O efeito dessas medidas meritocráticas pode, a médio prazo, auxiliar na META 1 do PNE (sobretudo no que diz respeito à ampliação da oferta de creches), mas a curto prazo pode impactar negativamente no já defasado orçamento educacional da maioria dos municípios brasileiros e, dessa forma, provocar efeito reverso, ou seja, não entrar na agenda prioritária do ente federado e com isso postergar a universalização da educação infantil prevista no atual Plano Nacional de Educação", alertam Araújo e Peixoto.
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Soma-se a isso a criação pela MP de 2016 de percentuais máximos para a transferência desses recursos. A proposta era destinar 25% do valor/criança/ano aos entes federados que não cumprissem a meta anual de atendimento dessa política e 50% àqueles que a cumprissem. Apesar do PL de Conversão na Câmara dos Deputados ter alterado a previsão de percentuais máximos para percentuais mínimos, tal mudança foi vetada pelo Presidente. "Esse veto demonstra claramente a intencionalidade do atual governo de reduzir as transferências obrigatórias para o atendimento ao apoio suplementar aos Municípios e DF, pois o que passa a valer na prática é a ampliação do quantitativo de crianças atendidas, sem a qual os entes federados não terão acesso ao apoio financeiro suplementar, mesmo se contemplem a elegibilidade dos critérios."
Um outro veto do atual governo diz respeito à proposta aprovada na Câmara e no Senado que trata de uma medida que buscava garantir, excepcionalmente, para os anos de 2016 e 2017, aos municípios com até 20 mil habitantes, os recursos previstos na lei 12.722/2016, qual seja, 50% do valor/criança/ano do Fundeb. Esse mecanismo poderia ser o indutor da política de ampliação da oferta de creches, uma vez que garantiria uma transição temporal sem a perda de recursos. "Se a atual Lei 13. 348/2016 altera os critérios de elegibilidade, ampliando-os às crianças com deficiência e beneficiárias do BPC, apresenta retrocesso na garantia de financiamento e do direito das crianças às creches."
Financiamento, desigualdade e a perversidade da PEC 55/241
Professora titular do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) na área de Didática e Currículo: sub-área Infância, Anete Abramowicz chama atenção para pesquisas que mostram que pequenos/médios/grandes municípios têm demonstrado que se por um lado as crianças de 4 e 5 anos estão sendo incorporadas na escola fundamental (a partir da lei 12.796/2013 que tornou obrigatória a matrícula das crianças em idade pré-escolar), por outro isto vem se fazendo com a gradativa tendência de transferência da educação e cuidado dos “mais pequenos”, das crianças que estão nas creches, às unidades escolares filantrópicas e conveniadas, caracterizando uma “filantropização” das creches (Canella Henriques, Oliveira e Abramowicz, OBEDUC, 2016), resultado de uma adequação do poder público municipal à política pública voltada à universalização do atendimento das crianças em idade pré-escolar. Esta forma de convênio com as unidades conveniadas, em muitos municípios é gerida por entidades religiosas, e muitas vezes não atendem aos critérios de qualidade consubstanciado no documento "Indicadores de Qualidade na Educação Infantil" ( Brasília: MEC/SEB, 2009). Em muitos destes convênios o atendimento a demanda, por exemplo, vem sendo feito em detrimento da relação adulto/criança prescrita pelas resoluções dos conselhos municipais.
Com relação ao acesso à creche, o PNE estabelecia a meta de 30% para 2006 e de 50% até 2010. Mas no período de 1995-2009 o crescimento de matrículas nas creches foi de 10,8%, ao passo que na pré-escola esse percentual foi mais do que o dobro: 27,8%. Também na creche encontramos as taxas mais elevadas de atendimento em instituições privadas".
Dados do Anuário Brasileiro de Educação de 2016 demostram que de 2001 pra cá, a taxa de atendimento em creches aumentou 15,8 pontos percentuais e chegou, em 2014, a 29,6%. "Ou seja, há apenas 29,6% das crianças brasileiras nas creches e como a pobreza brasileira tem cor e classe social, as crianças mais pobres e pretas estão fora destas instituições, além das desigualdades regionais ou seja, a Região Norte, seguida da Nordeste são as que têm menos crianças nas creches", afirma Anete Abramowicz (UFSCar). A professora e pesquisadora aponta que, no entanto, no entanto, o que torna dramática a situação da Educação Infantil no Brasil é em relação ao investimento público nesta etapa de ensino. Se em todos os níveis de ensino foi aplicado 4,6% do PIB em 2000, na Educação Infantil aplicou-se 0,4% e 13 anos depois este investimento cresceu à taxa de 0,2% chegando-se a 0,6% em 2013 (Fonte: Inep/MEC – Tabela elaborada pela DEED/Inep. Atualizada em 22/06/2015). Com um crescimento exponencial das crianças em idade de Educação Infantil e um aumento de 0,2% de investimento, a aplicação chega a ser negativa. "Deste modo, há que se destacar que permanece a visão de que para crianças menores merecem políticas menores, pois um aumento em 10 anos de 0,2% do PIB, mostra o lugar que a EI ocupa na política pública brasileira, um lugar menor e insuficiente de modo que não atende nem a 30% das crianças brasileiras, e o pior deste cenário é que jamais irá atender a demanda das crianças brasileiras com este percentual de financiamento."
Confira a entrevista na íntegra com Anete Abramowicz (UFSCar).
Para Jaqueline Pasuch, professora do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação e Linguagem, Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), há que se considerar o processo histórico de lutas e de conquistas pela efetivação dos direitos fundamentais das crianças expressos na Constituição Federal, ECA, LDB, DCNEI, onde a Educação Infantil é um direito das crianças e das famílias e um dever do Estado.
Entretanto, a insuficiência de recursos, vinculados e regulamentos sobretudo pelo Fundeb, e os cortes no financiamento significam a não possibilidade de superarmos a visão assistencialista, desigual e excludente, centrada nos adultos, assim como, os desafios em relação ao acesso restrito, sobretudo, por crianças de 0 a 3 anos, para população preta ou parda, para os mais pobres, conforme a região do país, o local de residência urbana e rural, a formação inadequada dos docentes, a fragilidade institucional de muitos municípios com infraestrutura deficiente e a necessidade de recursos para criar novas vagas (construção, ampliação, equipamento). "Para afirmarmos o direito à Educação Infantil democrática, pública, gratuita, laica, inclusiva, de qualidade, para todas e cada uma das crianças brasileiras, precisamos de ampliação do investimento público da União, dos Estados e dos Municípios, garantindo a oferta com qualidade, considerando a Política de financiamento do Custo Aluno-Qualidade (CAQI e CAQ), conforme prevê o Plano Nacional de Educação (BRASIL, Lei 13.005) para a década de 2014 a 2024, em suas 20 metas e 257 estratégias, sendo os Eixos 1, 4 e 7 diretamente vinculados à Educação Infantil."
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O contexto já pouco satisfatório ainda tende a se agravar seriamente com a PEC 55 (antiga 241), que se contrapõe sobretudo a meta 1 do PNE 2014-2024, que visa universalização da pré-escola e atendimento de 50% da demanda por creche.Anete alerta que o congelamento dos investimentos ocasionará também uma estagnação no aumento de vagas e identifica uma perversidade da referida PEC ao cruzar dados de perfis socioeconômico, racial e regional."Identifica-se que enquanto a meta do PNE para a creche foi atendida para os 25% mais ricos (51,2%), para os 25% mais pobres o indicador é de 22,4%, ou seja, bem inferior ao indicador nacional e com a estagnação dos investimentos esta situação não tem previsão de melhora. Mesmo para as crianças em idade de pré-escola as famílias mais pobres também serão as mais prejudicadas."
No que diz respeito ao perfil racial, os pardos e pretos são aqueles com o menor percentual de atendimento. O congelamento dos investimentos no mínimo também manterá as diferenças regionais –- enquanto o Sudeste tem 35,8% das crianças de creche matriculadas, na região Norte o indicador é de 13,3%, cenário que demandaria maior investimento para atendimento da meta do PNE. "Se em 10 anos o percentual de aumento do investimento foi de 0,2% na Educação Infantil atingindo a 29,6% de crianças em creches isto significa que o percentual de atendimento será menor já que aumentará o número de crianças com o investimento estagnado. O que resulta aqui é o aprofundamento da desigualdade brasileira, a qual atinge de maneira contundente as crianças mais pobres e pretas", analisam Anete Abramowicz (UFSCar) e Afonso Canella Henriques em entrevista ao portal da ANPEd.
Confira a entrevista na íntegra com Jaqueline Pasuch (UNEMAT).
Segundo Jaqueline Pasuch, os questionamentos sobre a PEC 241 são objetivos. "Como garantir, por exemplo, o cumprimento da meta 20 do PNE se o Estado brasileiro estará impedido de aplicar 'dinheiro novo' em políticas sociais, inclusive na educação? E a meta 17 do Plano decenal, como alcançá-la se o piso nacional do magistério terá seu valor real congelado por 20 anos? E como superar as limitações orçamentárias do Fundeb, sobretudo com o compromisso de incluir mais estudantes nas escolas, se a vinculação constitucional de impostos será suspensa por prazo que supera a vigência do atual PNE? Aliás, pelo novo formato fiscal da PEC 241, não há mais garantias de renovação do Fundeb, muito menos de instituição do CAQi e CAQ, podendo a educação sofrer enorme retrocesso." Nesse sentido, para a pesquisadora " podemos afirmar que a PEC 241, atualmente tramitando no Senado sob a identificação de PEC 55, inviabiliza as metas que dão condição de possibilidade de ampliação da oferta de vagas, seja quantitativa quanto qualitativamente, observando os locais da oferta, as demandas, a infraestrutura adequada. A PEC 55 inviabiliza as Políticas de Educação Infantil do Brasil! Ela significa um grande retrocesso na concepção de crianças, infâncias e educação infantil que vinha sendo construída ao longo dos últimos anos."
Avaliação
Entre 2013 e 2015, a Diretoria de Avaliação da Educação Básica (DAEB), do INEP, assumiu uma demanda da área de contribuir com proposições para implementação de uma avaliação nacional para a primeira etapa da Educação Básica, levando em consideração as especificidades da Educação Infantil. O processo, que contou com comissão de especialistas e grupo de trabalho formado por diversas entidades, foi finalizado em maio de 2015 com a apresentação de uma Minuta de Portaria para instituição da ANEI - Avaliação Nacional da Educação Infantil, cuja finalidade é o monitoramento da qualidade da oferta.
Segundo Catarina Moro (UFPR), "a tarefa complexa e desafiadora assumida pela DAEB foi muito bem trabalhada e de extrema relevância para a política pública nacional e para a área por considerar e assegurar uma perspectiva de avaliação que focalize a oferta dos serviços, priorizando um conjunto de informações já disponíveis nas bases de dados existentes (Censo Escolar, PNAD, outras), focalizando-se na coleta exclusivamente daquelas inexistentes".
Confira a entrevista na íntegra com Catarina Moro (UFPR).
Em 2016, já sob o governo Michel Temer, no entanto, a comunidade acadêmica foi surpreendida com a revogação (em texto de apenas 18 linhas do ministro da Educação, Mendonça Filho) da portaria que instituiu o SINAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica. Como avalia a integrante do NEPIE-UFPR (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil), a ação desconsidera não apenas o trabalho e envolvimento de mais de quatro anos de especialistas, gestores, professores, pesquisadores e entidades relacionadas à Educação Infantil; o longo processo de debate acerca de metas decenais para educação brasileira que culminou na promulgação da lei referente ao PNE para o decênio 2014-2024, mas também provoca uma estagnação ao manter a área fora da política nacional de avaliação da educação, uma vez que os sistemas de avaliação e índices de qualidade criados pelo MEC e gerenciados pelo INEP (SAEB e IDEB) não contemplam esta etapa. "E ainda pior, deslegitima uma das metas do PNE atual por inviabilizar o seu cumprimento. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) ampliaria a possibilidade de análise da qualidade da oferta da qualidade da educação infantil ao incluir indicadores educacionais relacionados a gestão, infraestrutura do espaço físico, quadro de pessoal, recursos pedagógicos, acessibilidade e outros indicadores contextuais importantes." Esta medida, assim como várias outras do atual governo, na visão de Moro, "é extremamente preocupante, pois indica que além de termos estagnado em conquistas importantes, corremos o risco de retroceder na concepção da educação infantil brasileira, notoriamente definida e defendida nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI)."
Corte Etário e o direito à brincadeira
A questão do Corte Etário aparece logo de início como um desafio para as garantias necessárias a cada etapa escolar. Com as Emendas Constitucionais 53 (2006) e 59 (2009) - determinação de idade entre 4 e 5 anos para a Pré-Escola e ampliação de 8 para 9 de Ensino Fundamental, respectivamente - gerou-se uma disputa sobre a qual etapa deveriam ingressar crianças de 6 anos incompletos. Nesse sentido, resoluções da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2010, determinam que somente aqueles que completarem 6 anos até 31 de março devem se matricular no Ensino Fundamental. "Se, por um lado, conquistar um ano a mais de escolaridade, num país como o nosso, pode ter significado algo positivo, insisto que a saída não tinha que ser necessariamente com o ingresso mais cedo no ensino fundamental", defende a pesquisadora Bianca Cristina Correa (USP - Ribeirão Preto). Apesar de ser um órgão normativo e deliberativo, por não ter força de lei a resolução do CNE acabou sendo judicializada, levando a interpretações divergentes e contestações, ficando à critério das famílias e sistemas de ensino a definição. Ainda assim, levantamentos da Undime (2014) e Todos Pela Educação (2015) mostram que a maioria das capitais e municípios seguem a orientação do Conselho.
Foto: Reproduzida de banco de imagens gratuitas
No entanto, a disputa traz à tona questões mais amplas, como a compreensão do que vem a ser a Pré-Escola e a estrutura adequada para receber crianças "mais novas" no Ensino Fundamental. O objetivo da educação infantil é o desenvolvimento integral da criança, e o trabalho pedagógico em creches e pré-escolas deve ser organizado por meio da brincadeira e das interações, conforme preconizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Segundo Correa, "os estudos no campo do desenvolvimento, em diferentes abordagens, informam sobre a necessidade da brincadeira, que deveria estar presente também no ensino fundamental, mas é imprescindível para crianças até os seis anos de idade. Assim, entendemos que todas as crianças deveriam permanecer na educação infantil ao menos até completar seis anos, conforme definição do CNE".
Confira a entrevista na íntegra com Bianca Cristina Correa (USP - Ribeirão Preto).
Assim, a pesquisadora de Políticas e Práticas de Educação Infantil considera que a definição pelo CNE de uma data para garantir que as crianças sejam matriculadas no ensino fundamental com seis anos completos é de suma importância para minimizar problemas enfrentados na organização da maioria de nossas escolas. Dentre esses problemas estariam a rotina rígida, com longos períodos em sala de aula; a falta de brinquedos e espaços adequados para brincadeira, incluindo a compreensão disto na formação dos profissionais; a sistemática da reprovação mesmo para crianças de 6 anos, sem a instituição de ciclos de aprendizagem; e a pressão sobre professoras e professores quanto ao desempenho em avaliações externas.
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Logo a partir de 2007, pesquisas sobre o ingresso aos seis anos e o ensino fundamental de nove anos de duração informam sobre a não adaptação das escolas, dos currículos, da formação docente, sobre como as crianças têm sentido negativamente os reflexos da rigidez das rotinas, da falta de espaço, tempo e materiais para brincar, além do adoecimento de professoras e professores diante das condições precárias e da dificuldade de lidar com crianças de 5 e 6 anos neste contexto. Ver Correa (2010).
"As alterações legais que instituíram o ingresso obrigatório aos seis anos de idade no ensino fundamental, infelizmente, não foram seguidas de alterações na organização e funcionamento da escola."
Transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental
A transição de uma etapa de ensino para outra é um processo que envolve questões problemáticas, tanto relacionadas à criança quanto ao modo com que o assunto é tratado nas escolas. Essa problemática, de acordo com pesquisadores, surge quando o projeto educacional ignora o simples fato de que as crianças que frequentam a Educação Infantil são as mesmas que são atendidas no Ensino Fundamental - logo, a sua trajetória é contínua. “Oprojeto educacional deveria reconhecer as especificidades de cada etapa e, ao mesmo tempo, levar em conta as semelhanças que fazem com que todas as três etapas educativas constituam um mesmo nível de ensino”, afirmam as professoras e pesquisadoras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Vanessa Ferraz e Mônica Baptista.
A nova organização instituída ao Ensino Fundamental brasileiro, com sua ampliação para nove anos, a partir da promulgação da Lei Federal 11.274 (Brasil, 2006) e a discussão acerca da obrigatoriedade escolar para pessoas de 4 a 17 anos (PL 414/2008; PL 06755/2010), trazem, entre outros, questionamentos relacionados à articulação entre as etapas educativas.
Foto: Reproduzida de banco de imagens gratuitas
Para Ferraz e Baptista, os impasses começam a surgir a partir da falta de diálogo entre as duas primeiras etapas da educação básica, que reflete em um processo de desencontros vivenciados pelas crianças. As pesquisadoras consideram que em razão disso ficou evidente “a necessidade de uma maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, ambas dimensões fundamentais da infância contemporânea”.O principal desafio identificado, portanto, é a integração de algumas práticas pedagógicas que envolvem as duas esferas educacionais: o lúdico, a leitura, a escrita e, sobretudo, a formação de professores (as) e gestores (as) que atuam com crianças de zero a dez anos de idade.
Confira a entrevista na íntegra com Vanessa Ferraz e Mônica Baptista (UFMG).
O autor Peter Moss, ao analisar em seu livro “Research in Comparative and International Education” a situação de países integrantes da União Europeia, reafirma que ambos os níveis de ensino recusam um diálogo entre si e se negam de forma recíproca. O autor ainda sugere que a Educação Infantil e o Ensino Fundamental são integrados a partir do reconhecimento de suas diferentes histórias, valores e concepções.Ferraz e Baptista acreditam que “a consolidação da identidade da Educação Infantil necessita dialogar com a continuidade do processo de escolarização”. Sendo assim, também sinalizam que, a partir da consideração de que o sujeito e a sua relação com a cultura é o foco principal das práticas educativas, é possível construir uma continuidade educativa no processo de escolarização das crianças.
Creches Universitárias: entre pesquisa, ensino, extensão e desvalorização
As Unidades Universitárias de Educação Infantil, conhecidas como Creches Universitárias, se organizam a partir do tripé ensino, pesquisa e extensão. Dessa forma estimulam não apenas a guarda e formação de crianças, como a produção científica das universidades.
Esses espaços foram formados no Brasil na década de 1970 e se intensificaram a partir de 1980. Inicialmente esse setor era vinculado ao direito dos trabalhadores e amparado na ideia de guarda e acolhimento de crianças com idade anterior à escolaridade obrigatória, principalmente a etapa dos bebês. “A criação dessas unidades vem de demandas dos trabalhadores e principalmente das trabalhadoras, quer dizer, movimentos feministas muito marcados pela questão do debate sobre a condição da mulher na sociedade, as condições de trabalho e a mulher que faz a opção de ter filhos. Então ela também tem direito a ter filho, mas também tem direito a investir numa vida profissional”, relata Ligia Aquino, professora do departamento de Educação da UERJ, onde coordena o grupo de pesquisa Infância e Saber Docente.
Foto: Creche UFF. Reproduzida de site institucional.
Com a intensificação do debate sobre os direitos da criança em meados dos anos 1980, estruturados na Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, as creches se associam não apenas na perspectiva do direito da mulher ou da família, mas também “ao direito da criança de ter um lugar de convivência, de compartilhar e de produzir a sua educação e o seu cuidado, se dando de forma qualificada e com suporte profissional”, explica a professora.
“As creches/pré-escolas tem acumulado, ao longo dos anos de sua existência, uma extensa produção acadêmico-científica”, relata Bianca Cristina e Débora Piotto, professoras do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Pretoda USP.
De acordo com Cristina e Piotto, as creches uspianas contribuem, desde 2009, como campo de pesquisa para teses de doutorado, dissertações de mestrado e iniciações científicas. Além disso, 182 trabalhos foram apresentados por profissionais dessas unidades e 681 estagiários já passaram por elas - vale ressaltar que são dos mais diversos cursos, como Pedagogia, Educação Física, Enfermagem, Terapia Funcional, Nutrição, Odontologia, Música.
Confira depoimento na íntegra com Bianca Cristina Correa (USP) e Débora Piotto (USP).
Contudo, desde 2015 não estão mais sendo aceitas novas matrículas. “Em 2015, a USP colocou em prática um Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV) que acarretou na perda de profissionais que atuavam nas creches. E, embora a própria Universidade tenha induzido a saída dos profissionais, passou a alegar este fato como justificativa para não matricular novas crianças em suas creches. ”
A justificativa da administração da USP alega que as Unidades Universitárias de Educação Infantil não se caracterizam como atividade-fim da Universidade. Para Bianca e Débora “sustentar tal alegação diante dos dados e dos números é algo quase impossível”.
Formação Infantil e Moralidade
Autoritarismo, preconceito, discriminação, manutenção e acirramento das desigualdades sociais são características frequentemente vinculadas ao projeto Escola Sem Partido, um movimento grupo surgido em 2004 e que tem influenciado projetos de lei em âmbito municipal, estadual e federal. Idealizado pelo advogado Miguel Nagib, o projeto propõe uma educação descolada da sociedade. Baseado na ideia de que o professor é responsável por ensinar e não educar, este deixaria de debater temas delicados e se presta apenas a transmitir o conteúdo didático de forma mecânica e automatizada, sem trazer reflexão e análise destes para formação dos alunos como cidadãos.
- Confira reportagem da ANPEd sobre o Projeto Escola Sem Partido e sobre a audiência pública sobre a instituição do Dia Nacional da defesa da liberdade na educação
Tais termos têm sido vinculados ao grupo, que defende uma suposta “neutralidade” política e prevê que temas como gênero, política, homofobia, machismo, raça, religião e notícias de jornal sejam proibidas em sala de aula. A professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Raquel Gonçalves Salgado afirma que "por ter como um de seus lemas a preservação da inocência das crianças, esses sujeitos, cidadãos e cidadãs de pouca idade, passam a ser um dos alvos privilegiados dos discursos moralistas do programa, sobretudo no que diz respeito aos seus corpos, às suas relações com os/as outros/as, às suas sexualidades e gêneros. "
Foto: Reproduzida de banco de imagens gratuitas
Para Raquel, esse programa se estrutura no discurso de uma moralidade "que tem estreitos compromissos com a preservação e a perpetuação de uma ordem social, econômica e política excludente", porém se esconde sob essa máscara da apolítica". Ela ainda afirma que não é possível assumir-se como cidadão sem viver e engajar-se em ações políticas, e os defensores do programa omitem, intencionalmente, o fato de que o exercício da cidadania não acontece fora da vida política. “Não tenho dúvidas de que um dos papéis da educação escolar seja a formação política para a cidadania, desde a Educação Infantil, posto que não há conhecimento que não tenha inserção na vida social e não nos permita, quando, de fato, é assimilado, modificar nossas visões de mundo e nossas ações nas relações com as outras pessoas.”
Confira a entrevista na íntegra com Raquel Gonçalves Salgado (UFMT).
A Educação Infantil, de acordo com Salgado, pode atuar na forma como as crianças se relacionam com o outro, percebendo como ideias, atos e identidades afetam as pessoas ao seu redor. Para ela o debate sobre gênero também deve ser feito nessa etapa da formação, porque "atos de gênero são ensinados e aprendidos na mais tenra infância e aí está uma das responsabilidades da Educação Infantil: a de não reiterá-los e perpetuá-los como se fossem a “natureza” de uma feminilidade ou masculinidade".