A 36a Reunião Nacional da ANPEd deste ano contará com Conferência de Abertura feita pelo professor Dermeval Saviani. Filósofo, pedagogo e professor emérito da Unicamp, Saviani é um dos principais pensadores da Educação no país, com diversos livros publicados e prêmios, dentre eles o Jabuti de 2008, na categoria Educação, Psicologia e Psicanálise com a obra “História das Idéias Pedagógicas no Brasil”.
Na entrevista ao Boletim da ANPEd, Dermeval fala sobre o tema que pretende abordar na conferência, sobre a importância desse encontro e analisa com o olhar crítico e lúcido que lhe é peculiar assuntos que dominam atualmente a agenda da educação, como os royalties do petróleo, o PNE e o SNE.
Boletim Anped: O senhor fará a conferência de abertura da 36a Reunião Nacional da ANPEd. Qual a importância desse encontro no contexto atual da Educação brasileira? Qual a reflexão que pretende estimular nessa conferência?
Penso ser importante essa Reunião da ANPEd porque, ao definir como tema da Reunião o eixo central da CONAE 2014, a ANPEd está possibilitando uma ampla discussão por parte dos pesquisadores e estudiosos da educação em torno não apenas do significado, alcance e implicações da instalação do sistema nacional de educação no Brasil, mas também das vias para sua efetivação, já que o enunciado do tema liga a questão do sistema nacional aos desafios postos para as políticas educativas pela participação popular.
Assim, a reflexão que pretendo estimular na conferência de abertura se inicia com a compreensão da emergência histórica dos sistemas nacionais de ensino, passa pela retomada sucinta da explicitação do conceito de sistema educacional para abordar a relação entre sistema nacional de educação e participação popular com os desafios postos para as políticas educacionais. Dando concretude à reflexão, trago á baila as lições da experiência abordando o caso da Itália para concluir evidenciando a necessidade de uma grande mobilização dos setores populares articulados pelas várias organizações dos educadores reunidas em âmbito nacional, regional e local. Para isso parece desejável retomar os Fóruns em Defesa da Escola Pública nos níveis nacional, estadual e municipal. Nessa ampla mobilização será preciso ir imprimindo cada vez maior clareza sobre o objeto de nossa luta, isto é, sobre o significado daquilo que queremos instituir.
Precisamos avançar, assim, na compreensão das características que definem o sistema nacional de educação. Minha expectativa é que no decorrer dessa 36ª Reunião Nacional da ANPEd os vários GTs, assim como os expositores nos diversos simpósios e mesas redondas, contribuam significativamente para a compreensão da base de sustentação, da forma e do conteúdo do sistema nacional de educação.
A Educação volta a estar em destaque novamente no cenário nacional, tanto na mídia quanto em debates na sociedade, a partir da discussão dos royalties do petróleo, greves e mobilizações. O que emerge dessas discussões? Os problemas centrais da Educação têm aparecido nesses debates?
De fato, a educação está em evidência. Na verdade, o discurso enaltecedor da educação tem sido recorrente desde, pelo menos, o século XIX. Tavares Bastos, em 1870, considerou que "não há sistema de instrução eficaz sem o dispêndio de muito dinheiro". Por isso propôs que cada cidadão contribuísse com a educação dos seus concidadãos definida como “o primeiro dos interesses sociais em que todos somos solidários". E Almeida Oliveira, na sessão de 18 de setembro de 1882 do Parlamento, afirmou que "na instrução pública está o segredo da multiplicação dos pães, e o ensino restitui cento por cento o que com ele se gasta". O “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, por sua vez, começava com esta frase solene: “Dentre os magnos problemas nacionais nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional”. De modo geral, podemos considerar que, especialmente no campo político, a educação tende a ser proclamada como a primeira prioridade nos discursos, mas ocupa as últimas colocações na composição do orçamento como, aliás, já havia ironizado Agassiz, em 1865, ao dizer: "nenhum país tem mais oradores nem melhores programas; a prática, entretanto, é o que falta completamente".
De qualquer modo, atualmente a valorização da educação se liga a uma conjuntura específica decorrente da Revolução Microeletrônica que popularizou a expressão “Sociedade do Conhecimento”, em verdade uma denominação imprópria que deveria ser substituída por “Sociedade da Informação”. Mas o destaque que a educação vem tendo na opinião pública está marcado por dois tipos de viés. O primeiro, poderíamos chamar de “viés mercadológico”; e o segundo, de “viés espontaneísta”. O primeiro prevalece na mídia e nas intervenções dos empresários no campo da educação com movimentos e expressões do tipo “todos pela Educação”, “universidades corporativas”, “qualidade total”, “capital humano”, “formação de recursos humanos”, ensino profissionalizante”, “administração de negócios”, “ensino por competências” e equivalentes. O segundo prevalece nos círculos pedagógicos por meio de movimentos e expressões como “educação para todos”, “educação inclusiva”, “respeito à diversidade”, “pedagogia das competências”, “teoria do professor reflexivo”, “aprender a aprender”, “liberdade e autonomia da escola e dos educandos”, “respeito aos diferentes ritmos de aprendizagem” etc. Em ambos os casos os problemas centrais da educação são elididos. E o Estado tende a embarcar nesses vieses propondo políticas educacionais marcadas por razoável grau de espontaneísmo e improvisação, ao mesmo tempo em que encampa as chamadas demandas de mercado. Nesse diapasão a educação brasileira vai seguindo um curso caracterizado por ações descontínuas e fragmentárias agravando o quadro de precariedade. Sim. É a precariedade o traço distintivo da educação em toda a história do Brasil.
Como foi enunciado na pergunta, a coqueluche do momento são os royalties do petróleo, em especial do pré-sal, para a educação. Mas há, aqui, um grande equívoco e um risco. O equívoco consiste no fato de se tratar de recursos que: a) não sabemos quando estarão disponíveis; b) também não sabemos qual será seu montante; c) trata-se de recursos que provirão de uma fonte não renovável. O risco vem se manifestando no fato de que, antes mesmo que esses recursos apareçam, já está sendo proposta para eles uma destinação que os desvia da manutenção da educação propriamente dita. Um exemplo gritante desse desvio é a proposta do Presidente do Senado, Senador Renan Calheiros, de utilizar os recursos do pré-sal destinados à educação para conceder passe livre nos meios de transporte a todos os estudantes do país.
O debate em torno do Sistema Nacional de Educação tem amadurecido desde a Conae 2010? É possível apontar avanços concretos? Qual a expectativa para a Conae 2014 nesse sentido?
O debate em torno do Sistema Nacional de Educação avançou razoavelmente desde a Conferência Nacional de Educação Básica, em 2008, até a I CONAE, em 2010. No entanto, de lá para cá parece que não houve avanço significativo, ou seja, estamos, ainda, no nível atingido pela CONAE 2010. Mas essa impressão deverá ser aferida na própria CONAE 2014 que poderá, ou não, avançar para além do patamar atingido em 2010. De 2008 para cá houve algum avanço na legislação, mas ainda de forma imprecisa e oscilante. Assim, a Emenda Constitucional deu a seguinte redação para o Art. 214: “A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração...”. Esse dispositivo inseriu na Constituição Federal o conceito de Sistema Nacional de Educação. Com isso, ficam definitivamente afastadas as recorrentes objeções que alegavam inconstitucionalidade à proposta de instituição do sistema nacional de educação. Além disso, esse mesmo dispositivo impõe ao Congresso Nacional a aprovação de uma lei criando o sistema nacional de educação. E o projeto de Plano Nacional de Educação, ora em tramitação no Senado, reitera essa exigência definindo o prazo de dois anos da entrada em vigor do novo PNE para dar cumprimento a essa exigência constitucional. Portanto, o risco hoje não é que o sistema não venha a ser aprovado, mas que seja aprovado sem que isso signifique uma mudança efetiva nas condições que hoje vigoram na educação brasileira.
Com efeito, a própria nova redação dada ao Art. 214 pela Emenda 59 contém uma impropriedade ao atribuir ao Plano Nacional de Educação o objetivo de articular o sistema nacional de educação. Isso porque o sistema precede o plano, pois tem caráter permanente enquanto o plano tem duração transitória fixada, no caso, em 10 anos. Assim, se o plano vai se propor a articular o sistema nacional de educação, isto supõe que já estaria existindo um sistema desarticulado que caberia, então, articular. E isto traz um agravante adicional, pois a articulação é inerente ao sistema. Logo, se o que existe carece de articulação, então não se trata de sistema. O projeto de lei que institui o plano nacional de educação atende àquele mandato constitucional, mas não o cumpre, uma vez que não fixa o objetivo de articulação do sistema nacional de educação em regime de colaboração. Em vez disso, de certo modo restabelece a prioridade do sistema sobre o plano ao devolver o problema ao governo federal e, daí, ao próprio Congresso estabelecendo no Art. 13: “O poder público deverá instituir, em Lei específica, contados dois anos da publicação desta Lei, o Sistema Nacional de Educação, responsável pela articulação entre os sistemas de ensino, em regime de colaboração, para efetivação das diretrizes, metas e estratégias do Plano Nacional de Educação”. Assim, caberá a uma nova lei a instituição do sistema nacional de educação. E, ao contrário do que está na Emenda 59, será o sistema instituído pela nova lei que terá a incumbência de articular os sistemas de ensino para efetivação do PNE.
Vê-se, pois, que não se pode mais alegar qualquer impedimento jurídico para a criação do sistema nacional de educação. Agora, no plano legal, as dificuldades que poderão emergir são de duas ordens. A primeira diz respeito a que, em função de disputas em torno do tipo e da forma que deve assumir o sistema a ser instituído, os debates possam se estender indefinidamente inviabilizando sua efetivação; a segunda consiste no seguinte: aprova-se com facilidade a lei que cria o sistema, mas de forma genérica, o que o converte apenas num novo nome para aquilo que já está posto sem nenhum influxo transformador nos rumos da educação.