Como tem visto os cortes em investimentos e programas de educação (alguns comprometendo o próprio cumprimento das metas do PNE)? Qual o impacto disso?
Gostaria de lembrar que quando falamos de “cortes em investimentos e programas de educação” estamos diante de uma questão bem objetiva. Vejamos alguns números. Em março de 2016, o Ministério do Planejamento divulgou uma redução dos gastos públicos que chega a 21,2 bilhões de reais. Os ministérios mais afetados foram, respectivamente, Educação (4,27 bilhões) e Saúde (2,28 bilhões). No caso do Ministério da Ciência e Tecnologia, que nos envolve diretamente enquanto associação de pesquisadoras e pesquisadores, o corte foi de 1 bilhão de reais. Estes números são, no mínimo, preocupantes.
Sabemos ainda que atravessamos uma grave crise econômica e política. Numa situação de crise, parece-me razoável que o Estado refaça suas contas e analise onde e como é possível cortar gastos. Creio que assim fazem, mas em outra escala, as famílias, as empresas e demais instituições. Em tempos difíceis, precisamos ter prioridades claras e ser criativos para reduzir os gastos. O que me preocupa é que os cortes sejam maiores em áreas que são prioritárias e que estejam relacionadas às políticas públicas que visam à garantia de direitos sociais básicos para a maioria da população, como saúde, educação e moradia. Assim, se por um lado, é necessário o corte, por outro, devemos nos perguntar onde, como e com qual profundidade ele será realizado.
Neste sentido, acredito que o Governo Dilma, que atravessa forte crise de estabilidade, não fez a escolha adequada, tendo em vista, inclusive, sua opção pelo lema “Brasil, pátria educadora”. Ora, um país que escolhe como prioridade ser uma pátria educadora, num momento de crise, não pode apresentar um corte de gastos no qual mais de 25% da redução do orçamento federal incida justamente em educação e pesquisa (Ministério da Educação e Ministério de Ciência e Tecnologia). Este quadro, por si só, é preocupante e merece nossa atenção no sentido de pressionar o Governo para que seja mais coerente com o projeto para o qual ele foi eleito.
Em que pese esta situação já complicada, é inevitável não me referir ao golpe contra a democracia, através do possível impedimento da Presidenta Dilma Rousseff e de um eventual Governo Michel Temer. Através de seus interlocutores diretos e de seus ideólogos, Temer tem falado como e pela grande mídia que “sanará” o déficit público, com cortes de 96 bilhões de reais, apontando áreas que sofrerão novos cortes e entre elas, mais uma vez, a educação. Assim, infelizmente, caso a agenda do golpe se efetive, enfrentaremos um governo ilegítimo, impopular e ainda menos comprometido com os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Ilegítimo, pois Temer chegará à Presidência da República como um conspirador que deu claros sinais – pessoalmente e institucionalmente através do seu partido (PMDB) – de que almeja o poder a qualquer custo. Impopular, pois a concepção de governo que Temer representa – de mais cortes em políticas sociais – foi o projeto rejeitado nas urnas em 2014, na candidatura de Aécio Neves (PSDB). E contra os trabalhadores, pois o seu histórico e de seus parceiros políticos não o credenciam como aquele que defenderá as demandas sociais por mais direitos de cidadania, como educação, saúde, moradia, emprego e renda.
Assim, chegamos à segunda parte da pergunta. Todo este quadro põe em alerta o cumprimento das metas do PNE. Vale aqui lembrar que o PNE foi o resultado político possível de muitos debates entre governo, sociedade civil organizada e comunidade acadêmica. Entres suas metas, quero apenas lembrar algumas: universalizar a educação infantil (meta 1); universalizar o ensino fundamental de 9 anos (meta 2); alfabetizar todas as crianças até o 3º ano (meta 4); atingir a taxa líquida de matrículas de 85% no ensino médio (meta 3); triplicar as matrículas do ensino técnico e dobrar sua oferta gratuita (meta 11); elevar em 50% a matrícula na educação superior priorizando a população entre 18 a 24 anos (meta 12); formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da educação básica (meta 16); atingir a titulação anual de 60.000 mestres e 25.000 doutores (meta 14).
São metas ousadas. Mas, necessárias para o desenvolvimento do país. Primeiro, porque visam garantir e ampliar a educação como um direito humano que deve ser universalizado e de qualidade, ainda que o termo “qualidade” seja extremamente controverso. Segundo, porque é um dos caminhos mais seguros para garantir, em médio e longo prazos, o nosso desenvolvimento enquanto nação, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista da cidadania. Ora, como cumprir metas tão ambiciosas e necessárias para o nosso futuro se há cortes profundos em recursos e programas que visam garantir o seu cumprimento?
Os cortes em programas como FIES, Ciências Sem Fronteiras, PRONATEC foram públicos e amplamente noticiados. Em 2015, por exemplo, vivemos um ano caótico, pois os recursos da CAPES para o PIBID (destinado a formação de professores) e para o PROAP e o PROEX (destinados à manutenção das pós-graduações) foram, sistematicamente, atrasados, ameaçados ou diminuídos. Assim, temos uma conjuntura difícil que se caracteriza, principalmente, pelo não cumprimento do projeto de nação que saiu vencedor das urnas de 2014 – a pátria educadora – e, ainda, enfrentamos sérias possibilidades de agravamento da situação com um possível novo governo, que é ilegítimo, impopular e contra os trabalhadores.
No entanto, procuramos entender a conjuntura para melhor atuar nela. Nesta perspectiva, cabe à sociedade civil organizada denunciar e tentar reverter este quadro. Por um lado, confio que a ANPEd joga um papel importante neste cenário, promovendo o debate entre as/os pesquisadoras/es do campo e atuando, fortemente, como a nossa associação junto aos órgãos governamentais responsáveis pela educação e pela pesquisa, especialmente o Ministério da Educação e o Ministério de Ciência e Tecnologia. Por outro lado, considero que cada um de nós, pesquisadores comprometidos com a educação, deveríamos nos posicionar pessoal e institucionalmente contra esta situação e exigir o cumprimento dos programas que visam o cumprimento das metas do PNE.
Ao mesmo tempo, percebem-se ofensivas de discursos que visam "salvar a educação", como propostas de privatização de escolas públicas, "escola sem partido", militarização de escolas públicas. Como você analisa esse contexto?
Há análises que indicam o crescimento de uma “onda conservadora” no Brasil. Tenho dificuldade em compreender tais análises, pois, às vezes, elas parecem indicar que já fomos uma sociedade mais progressista ou que teríamos, em algum momento da história, uma “massa crítica” mais substantiva e/ou predominante. Entendo que o Brasil sempre foi, predominantemente, um país classista, racista, patriarcal, homofóbico e com elites dirigentes conservadoras. Assim, tenho sérias dúvidas se há uma “onda conservadora” ou se não seria o caso de considerar que o conservadorismo, que sempre esteve entre nós, ganhou mais visibilidade, o que seria diferente de afirmar que ele esteja crescendo.
Quando afirmo que o conservadorismo tem mais visibilidade, refiro-me a expressões e representatividade. Quanto às expressões conservadoras, parece que elas estão potencializadas pelas mídias sociais. Talvez as mídias sociais tenham dado mais repercussão às posições conservadoras que sempre estiveram entre nós. Quanto à representação, concordaria que temos um dos congressos mais conservadores desde o período da redemocratização. Nesta maior representatividade da onda conservadora, estão setores religiosos cristãos intolerantes; grandes proprietários de terra; grandes grupos empresariais e grupos fascistas que se opõem ao avanço dos direitos humanos. Apelidada no congresso de bancada BBB (boi, bíblia e bala), ela vai ganhando espaço.
Sempre tivemos grupos conservadores, mas hoje eles são mais visíveis e, de uma forma estranha, sentem-se mais a vontade para se expressar publicamente, seja através do cidadão anônimo numa mídia social, seja através de seus representantes políticos no congresso nacional, seja através da grande mídia com seu jornalismo pouco profissional e posicionado à direita. Costumo dizer que se alguém está impressionado ou surpreso com o discurso de ódio e de intolerância que circula nas redes sociais, nos meios de comunicação social e entre alguns políticos que converse com a população negra ou LGBT, com as mulheres, os indígenas, os nordestinos e com a classe trabalhadora. O discurso de ódio sempre esteve presente para determinados segmentos da sociedade e, talvez, estes grupos possam nos lembrar bem disso. Provavelmente, a novidade é que agora outros setores sociais escutem com mais regularidade o discurso de ódio e com ele se indignem. Por um lado, é bom que tenhamos mais consciência da intolerância representada por esta “onda conservadora”. Por outro lado, não podemos esquecer que talvez tenhamos uma indignação seletiva porque estamos mais expostos e incomodados com o fenômeno.
Esta “onda conservadora” – que sempre esteve ou que tem crescido, me darei o direito da dúvida – chega também à escola. Vale lembrar que a escola é e sempre foi um espaço muito disputado para os projetos sociais. A escola, como instituição social, joga um papel importante na construção, desconstrução e reconstrução de mentalidades, sejam elas novas ou velhas maneiras de ver o mundo. Assim, estamos percebendo uma intensa disputa pela escola e pelo seu entorno (currículo, produção de material didático, formação de professores, avaliações, políticas públicas, etc.).
Neste sentido, gostaria de dar aqui apenas três exemplos. O primeiro diz respeito à presença da religião no espaço escolar, envolvendo especialmente o ensino religioso. Considero que o ensino religioso nas escolas públicas fere frontalmente a concepção de escola pública e laica. Há inúmeros relatos de intolerância religiosa nas escolas, com denúncias de proselitismo e de práticas fundamentalistas. Este é um tema muito controvertido, tanto entre os pesquisadores quanto no cotidiano da escola. O segundo tema diz respeito às discussões de gêneros e sexualidades nas escolas. Vale lembrar que o tema foi retirado do PNE por pressão de grupos refratários a qualquer debate que considere outras expressões de gênero e sexualidade. Por um lado, reafirma-se que os gêneros são binários, ou seja, homem/macho e mulher/fêmea e, por outro, defende-se a heterossexualidade como único padrão aceito para a sexualidade. Há, ainda, uma forte crítica à história de lutas dos movimentos feministas e da população LGBT. O terceiro tema diz respeito à inclusão das temáticas de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar e na formação de professores. Por um lado, há uma forte defesa de que a sociedade brasileira é uma “democracia racial” e que valorizar ou empoderar a identidade negra seria um “racismo às avessas”; e, por outro lado, há uma demonização da cultura afro-brasileira e uma negação de sua importância na formação da identidade nacional.
Nesta perspectiva, creio que temos, ao mesmo tempo, avanços e retrocessos. Há avanços, como a Lei 10639 e as políticas de ação afirmativas de corte racial. Há, certamente, retrocessos, como a retirada das questões de gênero e sexualidade do PNE e o veto presidencial que proibiu a distribuição do kit educativo anti-homofobia. Considero que há muito que avançar na discussão sobre a escola que queremos e quais sujeitos podem e/ou devem estar presentes, representados e valorizados no cotidiano das escolas. Aposto em uma escola que acolha todos e todas, considerando a diferença uma riqueza e afastando todo e qualquer tipo de discurso de preconceito e de discriminação.
Como esses dois pontos se relacionam com as pesquisas que você desenvolve?
Estas questões se relacionam diretamente aos temas de pesquisa que venho trabalhando. Na PUC-Rio, no âmbito do Grupo de Estudos sobre Cotidiano Escolar e Culturas (GECEC), tenho me deparado com algumas questões relacionadas, principalmente, à problemática das reivindicações pelo direito à diferença e aos conflitos aí inerentes, envolvendo pesquisas sobre questões de raça, de gênero e sexualidade, identidades religiosas e deficiências físicas. Assim, temos tentado entender as possíveis interações entre os estudos sobre multiculturalismo e o campo do ensino-aprendizagem, a partir de distintas perspectivas para uma prática pedagógica mais sensível às diferenças.
Atualmente coordeno uma pesquisa interinstitucional que visa entender como o preconceito e a discriminação impactam o cotidiano escolar através de um estudo longitudinal (2015-2018), junto a 800 adolescentes do ensino fundamental do Rio de Janeiro. Nosso planejamento é, num segundo momento (2018-2020), concluir o estudo longitudinal, acompanhando os sujeitos amostrais durante o ensino médio. Desta forma, a pesquisa visa mapear e entender a interação entre o nosso contexto plural, as situações de preconceito e discriminação no cotidiano escolar e seus impactos nos processos de ensino-aprendizagem.
Gostaria de ressaltar que o GECEC, fundado em 1996 pela Profª Vera Maria Candau, tem se configurado como um grupo interdisciplinar e interinstitucional. Destaco, principalmente, a participação da Profª Claudia Miranda (UNIRIO), que tem pesquisado o tema das relações étnico-raciais no cotidiano escolar; da Profª Helena Araújo (CAp/UERJ ) que tem pesquisado os processos de construção de memórias e de identidades culturais em ambientes escolares; do Prof. Luís Fernando Dorvillé (UERJ/FFP) que tem investido em estudos sobre a intolerância religiosa em contextos de forte presença pentecostal; da Profª Maria Cristina Ferreira (UERJ/FFP) que tem iniciado, no grupo, uma nova perspectiva de investigação sobre diferença, preconceito e deficiências; da Profª Cinthia Araújo (UFRJ) que tem trabalho na perspectiva da interculturalidade e da educação em direitos humanos; da Profª Pâmela Esteves (UERJ/FFP) que tem pesquisado o bullying, relacionando-o como expressão da intolerância e da Profª Monique Longo (UERJ/IEFD) que tem pesquisado o fenômeno da violência escolar e suas relações com as diferenças culturais e a educação moral. Contamos, ainda, com graduandos, mestrandos, doutorandos e voluntários que realizam suas pesquisas no âmbito da pesquisa interinstitucional.
Os campos de estudos desses sete professores associados à pesquisa se articulam com as pesquisas sobre a fundamentação ético-filosófica para uma educação intercultural que tem marcado o meu esforço investigativo. Considero, assim, que a articulação de pesquisadores, com diferentes formações e trajetórias, mas associados pelo eixo comum de se entender as tensões entre igualdade e diferença no cotidiano escolar potencializam um círculo virtuoso para o desenvolvimento de investigações de maior porte e de longa duração, o que, talvez, não seria possível sem esta organização interinstitucional e marcada pelo diálogo interdisciplinar.
Marcelo Andrade é Professor do Programa de Pós-Graduação da PUC-Rio