A defesa da política de voucher na Educação Infantil voltou a figurar no discurso do governo federal como uma alternativa à mitigação das desigualdades. Mas, a lógica que a orienta aponta em direção contrária, tendo em vista que reafirma e sustenta um discurso de qualidade, eficiência, produtividade, eficácia e competitividade do setor privado em detrimento do setor público. Há, nessa lógica, um simulacro na proposição das políticas educacionais contemporâneas que converte o ‘direito à Educação’ em oferta e escolha de ‘modelos de Educação’. Essa estratégia soma-se à tantas outras que recolocam a política neoliberal com a finalidade de ‘despublicizar’ a Educação, transferindo-a da esfera pública para a esfera do mercado. O direito à Educação Infantil se converte, portanto, em compra de vagas em creches domiciliares, filantrópicas ou privadas.
A trajetória da ampliação do acesso à Educação Infantil é marcada por arranjos, como convênios com instituições privadas e filantrópicas, que resultam em baixo investimento público. Na história recente da etapa, a obrigatoriedade da matrícula a partir dos 4 anos de idade, com prazo para os municípios se adequarem a lei até 2016, somada a necessidade de atender demais metas definidas no PNE (Lei 13.005/2014), como o atendimento de 50% da população de 0 a 3 anos em creche até 2024, fortalecem o discurso em torno dessa escolha política. De acordo com dados do "Relatório do 3º ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação – 2020" (BRASIL, 2020), o índice de matrículas na pré-escola chegou a 93,8% no Brasil, muito próximo a universalização do atendimento das crianças 4 e 5 anos prevista para ocorrer até 2016. Quanto à creche, o cenário se diferencia, em 2018 o percentual de crianças de 0 a 3 anos matriculadas era de 35,7%, distante do definido na meta 1 do PNE.
É nesse cenário que ressurge a discussão sobre voucher, estratégia já utilizada em outros países, como Inglaterra e Chile, que indicam por meio de pesquisas os problemas gerados por essa escolha. Entretanto, ignorando estudos e pesquisas, o Senador José Serra (PSDB), defensor do Estado neoliberal, apresentou um projeto de lei que altera a LDB para permitir “a compra de vagas” em instituições privadas com fins lucrativos. O que em primeiro plano parece ser uma saída rápida e eficiente é na verdade um engodo, e quem irá pagar o preço desse arranjo serão as crianças pobres. Por quê?
a) os valores dos vouchers já adotados por alguns municípios, como Distrito Federal, é de R$ 456 mensais, em Salvador o valor é de R$ 65 mensais, valores muito aquém do cobrado pelas instituições privadas no país. Assim, é possível questionar, quais instituições as famílias “escolherão”?
b) ao comprar vaga, os governadores esquecem que, mesmo sendo em uma instituição privada, a vaga daquela criança é pública, logo, por questão de direito a criança deverá receber todo atendimento que a criança em instituição pública recebe, e isso inclui, ser atendida por profissional com formação adequada, conforme preconiza a LDB; fato que as pesquisas já realizadas em instituições conveniadas revelam que nem sempre se cumpre. Dessa forma, como o município irá operar na fiscalização, na orientação pedagógica dessas instituições?
c) no Chile pesquisas indicam que essa medida resultou em precarização e desigualdade no ensino, fato que o atual projeto não prevê, isto é, o projeto proposto por Serra não se preocupa em estabelecer critérios de qualidade, de forma que questões básicas, como número de crianças por professor/a, não são previstas como critérios para a instituição poder ofertar vagas. Dito de outro modo, as famílias terão um valor muito abaixo dos cobrados por instituições privadas que atendem critérios de qualidade, como número de crianças por turma, estrutura física, formação de professores/as, dentre outros, assim deverão achar um local que seja possível pagar com seu voucher, e esse local, pelo atual projeto de lei, não precisa estar credenciado, ou seja, a qualidade dessa instituição não será avaliada/acompanhada por nenhum mecanismo;
d) no projeto de lei o senador escreve que “A título de exemplo, citamos estudo do King’s College e da Brown University, divulgado em 2018, que analisou 108 crianças, com idade entre 1 e 6 anos. Durante a pesquisa, foi possível perceber que a distribuição da mielina, substância responsável por proteger o circuito neural, fixa-se a partir dos 4 anos de idade. Assim, funções cognitivas como a memória, o raciocínio e a capacidade crítica são influenciadas de forma bastante significativa pelas experiências vivenciadas nos primeiros anos de vida”. Em que pese esses estudos, o que o senador não menciona é que, o que oportuniza essa mielinização são as vivências infantis, isto é, indispensável qualidade na mediação entre a criança e o mundo, a simples exposição da criança no mundo, ou seu ingresso em uma instituição coletiva, não garante seu aprendizado e em decorrência, seu desenvolvimento. Ou seja, esse efetivo indicado no estudo do King’s College e da Brown University precisa ser analisado considerando a qualidade da educação dessas crianças. Assim, há que se questionar equações lineares e simplistas como esta: estar na Educação Infantil = a maior desenvolvimento, pois mascara a falta de investimento público na Educação Infantil, em políticas de igualdade de gênero e o descompromisso público com as crianças;
e) outro aspecto que revela a não preocupação com a qualidade do atendimento pode ser identificado em outro momento do projeto que defende o voucher como “(...) Dessa forma, pensamos que, com a aprovação de nossa proposta, será possível às prefeituras, sem prejudicar as crianças que ora demandam serviços educacionais de qualidade, envidar esforços, a fim de sanar o terrível déficit não somente de prédios adequados e acessíveis, mas também de equipamentos necessários para bem efetivar as propostas educativas dessa etapa da educação básica”. Pela própria escrita da lei, o voucher aparece como “arremedo” para as prefeituras efetivarem atendimento com qualidade, que como diz o texto implica desde condições físicas até equipamentos, e claro formação. Essa provisoriedade indicada no projeto, reforça a ideia de “qualquer lugar serve”, e propaga a idea de que depois irá melhorar. Promessa realizada há muito tempo na Educação Infantil, e sentida agora na obrigatoriedade da matrícula aos 4 anos, quando muitos municípios definiram como provisório o atendimento em período parcial, o conveniamento e que agora observamos como sendo a política pública do município;
f) outro aspecto que torna esse projeto de lei uma falácia é a definição do público, isto é, para quem serão os vouchers? Segundo PL serão destinados às famílias mais pobres. Retomamos a máxima proferida por Franco na década de 1980, é mais um artifício para “lidar pobremente com a pobreza”. Ou seja, a exemplo do já observado na Inglaterra estamos frente à mercantilização da Educação Infantil, e esses tipos de atendimentos resultam sempre em prejuízos para quem já está em desvantagem econômica, social e educacional.
Esse movimento de conversão do direito à mercadoria é apenas a expressão de algo mais nefasto no campo da educação. Trata-se dos processos de financeirização da educação, ou seja, nega-se a Educação como direito social, transformando-a em uma possibilidade de consumo individual, segundo os méritos e as capacidades de seus consumidores. A lógica da privatização reconfigura-se pela ‘apropriação do fundo público pelo setor privado’: “uma operação mediante a qual o público se privatiza à condição de que o privado não apenas se exponha à publicidade, mas se transforme pelos critérios públicos” (SILVA JR.; SGUISSARDI, 1999, p. 10). A financeirização é um movimento de ‘desobrigação’: desobrigação do Estado com o setor social e comprometimento com os interesses do mercado representado por grandes grupos econômicos. A financeirização é, portanto, resultado de ações sistêmicas pelas quais, por critérios públicos, o setor privado se apresenta como legítimo para concorrência.
Pelo exposto, no GT07 – Educação de Crianças de 0 a 6 anos, consensuamos enquanto posicionamento:
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Que a Educação Infantil é um direito da criança. Esse direito deve ser resguardado pelo Estado, uma vez que instituição educacional deve contribuir para a redução das desigualdades sociais.
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É na instituição educacional pública, e não em espaços domiciliares ou privados, que o princípio da socialização deve permear o ideal republicano no qual a criança deve aprender em uma sociedade cada vez mais plural e diversa. Retirar as crianças dos espaços públicos de convivência educacional é limitá-las no convívio com a diferença e com a diversidade.
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Que a Educação Infantil deve se constituir a partir de referenciais que se atentem para uma educação de qualidade socialmente referenciada. Portanto, não pode ser para poucos ou regulada pelo mercado. Implica efetividade social e compromisso com uma gestão pública que atenda aos princípios do direito à Educação para todos. Considerá-la como um direito social requer luta permanente pela sua proposição e materialização.
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A proposta de voucher na Educação Infantil se contrapõe a uma agenda de ‘democratização do acesso’ e cumprimento das metas do PNE, haja vista que a luta para o cumprimento das metas e estratégias para essa etapa educacional deve garantir o controle social dos processos de matrículas e vagas na Educação Infantil, a fim de coibir práticas clientelistas e antidemocráticas.
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A política de voucher não contempla a necessidade de uma agenda intersetorial que tome como referência as políticas públicas de saúde, assistência, educação, cultura etc.
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Os vouchers na Educação Infantil retomam e retrocedem a luta pelo direito à Educação que, ao mesmo tempo em que a transformam em mercadoria, também reeditam ações e programas não-formais, ditos “alternativos”.
A Educação Infantil como direito significa, nos espaços públicos de Educação, a base para a formação integral e cidadã de nossas crianças. Portanto, a política de voucher restringe-se ao âmbito privado e se põe como inconciliável com uma agenda republicana em que a Educação é uma das políticas sociais centrais.
*Clique aqui e acesse o texto em PDF com notas de rodapé.
GT 07 Educação de Crianças de 0 a 6 anos - Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação
Angela Scalabrin Coutinho – UFPR/ Coodernação GT07
Romilson Martins Siqueira – PUC Goiás/ Coordenação GT07
Rosânia Campos – UNIVILLE/Comitê Científico GT07