No período recente, de redemocratização, vivenciamos as especificidades de um país que saiu de uma ditadura e estava dando os primeiros passos na conquista por direitos materializados em políticas, quando vivenciou os processos de naturalização da perda de direitos no período de ajuste fiscal e de implementação das estratégias de superação da crise do capital de neoliberalismo, reestruturação produtiva, financeirização e Terceira Via, que redefiniam o papel do Estado como principal garantidor dos direitos sociais materializados em políticas. Assim, verificamos que, se por um lado o Brasil avançou na materialização de direitos em políticas, por outro avançou também no processo de privatização do público, tanto através da execução como direção das políticas educacionais.
Assim sendo, se as redefinições no papel do Estado, em âmbito internacional, apresentam importantes implicações para o processo de democratização e a minimização de direitos universais e de qualidade para todos, esse processo é ainda mais problemático em países que viveram ditaduras e estão em um processo recente de luta por direitos materializados em políticas.
Ressaltamos que, no Brasil, a garantia do acesso à educação pública foi ampliada, o que consideramos um avanço nesse processo. No entanto, também verificamos a presença cada vez maior do privado mercantil definindo a educação pública. O Estado continua sendo o responsável pelo acesso, e inclusive amplia as vagas públicas, principalmente no ensino fundamental e médio, mas o “conteúdo” pedagógico e de gestão da escola é cada vez mais determinado por instituições que introduzem a lógica mercantil, com a justificativa de que, ao agir assim, estão contribuindo para a qualidade da escola pública. Em nossas pesquisas, analisamos as várias formas de relação entre o público e o privado na educação básica. E, mais especificamente, como o privado interfere no público através de parcerias, trazendo uma lógica individualista e competitiva empresarial. A ênfase passa a ser no produto e não mais no processo, o foco passa a ser a gestão e não mais o pedagógico, ocorre a concentração em algumas disciplinas (português e matemática), pois serão avaliadas, a aprendizagem assim passa a ser um produto mensurável. As pesquisas demonstram, ainda, que o processo de privatização do público ocorre tanto na direção quanto na execução das políticas educativas. Na direção, como é o caso Movimento Todos pela Educação, em que os empresários acabam influenciando o governo federal na agenda educacional, inclusive através da venda de produtos via Guia de tecnologias do Plano de Ações Articuladas (PAR). Na execução direta, que ocorre principalmente para as classes populares, na Educação de Jovens e Adultos, creches, educação especial e educação profissional. Mas também acontece, ao mesmo tempo, na execução e direção, como verificamos nos estudos sobre as parcerias, em que instituições privadas definem o conteúdo da educação e também executam sua proposta através da formação, avaliação do monitoramento, premiação e sanções que permitem um controle de que seu produto será executado.
Ressaltamos que a lógica mercantil tem participado ativamente da direção e execução das políticas educacionais, deixando as responsabilidades cada vez mais diluídas quanto aos direitos materializados em políticas sociais, e também esvaziando das instituições públicas o poder decisório, com graves consequências para o processo de democratização.
Vivemos a contradição de que, ao mesmo tempo em que a privatização do público é cada vez maior, também, em um processo de correlação de forças, estamos avançando lentamente em alguns direitos materializados em políticas educacionais. Trata-se de direitos que foram reivindicados no processo de democratização, nos anos 1980, e materializados em parte na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, como a gestão democrática da educação, a educação básica entendida como educação infantil, fundamental e média, a gratuidade da educação pública, entre outros. Assim, ao mesmo tempo em que, ocorre a ampliação de direitos e, em um processo de correlação de forças políticas e econômicas, o setor privado pressiona para assumir a direção das políticas educacionais que considera mais adequadas, instrumentais, a este período particular do capitalismo. Entendemos que no próximo período as forças vinculadas ao setor privado mercantil estarão muito mais fortalecidas e que ocorrerão ainda mais perdas para o processo de democratização. É um processo de correlação de forças que não ocorre por acaso e que está cada vez mais dando direção para a política pública. Lutamos por processos democráticos e de justiça social na educação e, quanto mais avançamos neste caminho, mais o capital se organiza para retomar o seu papel na educação. Retomamos a ideia de que são distintos projetos societários de classe em relação.