Bom dia, parente!
Katurité asemu yta. A palavra escolhida para nos nomear foi apresentada a nós pela nossa parente indígena, cacique de uma pequena aldeia do alto Solimões. Ela carrega em seu corpo de palavra o sentido de ser parente da cosmovisão indígena brasileira. Omagua nos ensina: somos parentes porque a sua dor é a minha dor; e a minha dor é a sua dor. O seu problema é o meu problema; e o meu problema é o seu problema. É de uma simplicidade gigante, porque palavras como solidariedade, empatia, #tamojunto, parecem pequenas perto desta noção de que estamos todos, inevitavelmente e belamente, interligados. Na dor e na ação pela dor. Somos juntos.
A oficina propiciou o diálogo intercultural, onde todos nós tivemos que largar nossas certezas absolutas na porta e nos abrir para ouvir, para buscar pontos de contato e aproximações possíveis. Uma riqueza, tantas vozes distintas colocando seus lugares, seus olhares, suas dores e seus anseios. Uma revolução interna que muitos/as (todo/as?) não conseguem ainda colocar em palavras. Daí esta tentativa que faço agora, de começar este processo em mim pela minha forma de expressão: a escrita. Esperando que meus/minhas parentes, ao ler, me ajudem a fazê-lo melhor.
Segundo Boaventura Santos, a oficina UPMS nasceu da necessidade de agir concretamente para superar as linhas abissais que nos separam. Seja a academia afastada dos movimentos sociais quanto os próprios movimentos sociais com dificuldade de dialogar entre si. Tanto quando a ciência feita na universidade não conversa verdadeiramente com os coletivos que descreve, quanto quando coletivos ativistas criticam entre si distintas abordagens sobre temas importantes. Em todas estas formas de produzir conhecimento e agir no mundo, apesar de nos encontrarmos na mesma luta, demonstram que temos uma dificuldade de diálogo para encontrar mínimos comuns. A pluralidade que é nossa potência, sem diálogo se enfraquece.
A proposta das oficinas, criada no Fórum Social Mundial de 2003 e já realizadas em vários lugares do mundo, teve sua primeira experiência junto a uma sociedade científica como a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Em Niterói participaram representantes de cerca de 40 movimentos sociais e 10 Grupos de Trabalho da ANPEd, em uma ação de parceria entre ANPEd e UPMS, com apoio do CEASM/Museu da Maré e SEPE/Niterói.
A oficina permitiu experimentar o desafio que é colocar em prática o que defendemos nos textos com os quais fundamentamos nossas pesquisas: a defesa do acolhimento de distintas epistemologias não hegemônicas, o diálogo intercultural, a convivência em uma ecologia de saberes, a descolonização, em mim, em nós. Iniciar um processo, não é?!, porque uma vez começado a trilhar este caminho, os anteriores já não são mais possíveis de retomar.
No debate sobre a relação entre a universidade e os movimentos sociais, sobre o quê nos une e o quê nos divide, o quê nos limita e o quê nos fortalece, falamos e nos ouvimos em um processo respeitoso e acolhedor, como deveria ser em qualquer contexto. Muito se falou da arrogância acadêmica, da forma de fazer ciência que reduz o outro a objeto de pesquisa e curiosidade antropológica. Da relação utilitarista que usa e desqualifica saberes em uma linguagem utilizada como mecanismo de poder. Da reprodução da lógica colonialista entre nós. Pude me dar conta da série de ressentimentos, da desconfiança, do medo.
Mas também pudemos reconhecer que nos encontramos na utopia, no sonho e na esperança de um mundo melhor, no desejo comum de maior justiça social, na defesa da transformação e da emancipação social. Acreditamos, juntos, na irredutibilidade do humano, na coexistência respeitosa das diferenças e compartilhamos uma agenda que pauta os direitos humanos e a educação como espaço privilegiado dessa luta.
Para estarmos juntos, precisamos superar este afastamento que nos isola, acolhendo, sem nomear, as demandas dos movimentos sociais. Precisamos nos afastar do eurocentrismo, do etnocentrismo, do discurso dominante que coloca a academia como única referencia, e, assim, abrir espaço para outras epistemologias, metodologias, saberes. Podemos aproximar discurso e prática em fazeres científicos mais interativos e colaborativos. Nossas diferenças são nossa potência e nos fortalecem.
Sabemos que as políticas afirmativas que promovem a expansão, o acesso e a permanência são um ponto de partida importante e que devem ser preservados e ampliados. Elas geram a necessidade de acomodação e mudança na universidade na direção de uma “(pluri)versidade”, subversidade, que mira a descolonização e a ecologia de saberes. A chegada dos movimentos sociais por dentro da universidade implica a discussão das contradições, a ocupação de espaços antes hegemônicos e a potencialização de bases que já existem mas encontram-se sub-representadas. O acolhimento institucionalizado de saberes outros, da artesania de práticas, do registro de memórias e experiências acumuladas promove uma escuta ativa e a criação coletiva. Como disse nossa parente indígena: “eu quero ser a mão científica que vai escrever sobre o meu povo”.
Desta maneira os acadêmicos podem acolher e potencializar bases que já existem e, também, compartilhar condições materiais privilegiadas, organizando e garantindo a institucionalidade para ações dos movimentos sociais. Além de acolher, dar espaço, viabilizar ações dos movimentos sociais, discutimos as formas de fazer junto. Outro desafio que merece destaque e investimento. Pesquisar COM, não sobre, para, através do outro representado nos movimentos sociais. Para este trabalho de pesquisa e produção de conhecimento precisamos de muitos deslocamentos, de descolonizarmo-nos.
Algumas premissas foram apontadas pelo grupo. Destaco a premência de acolher outras epistemologias dialogicamente. Genuinamente compreender e aceitar outras formas de fazer ciência e produzir conhecimento fora da racionalidade científica que impera nas universidades, o que significa ampliarmos nossa concepção de validade científica. Expandirmos nossos dicionários de metodologia científica para acolher
formas coletivas e engajadas de fazer pesquisa, por exemplo, valorizando a voz de nativos e práticas, considerando outras epistemologias, dos processos seletivos às teses. Flexibilizar ritos acadêmicos para colher e pautar as demandas dos movimentos sociais não apenas como temas mas como práticas.
A oficina da UPMS foi uma oportunidade de reunir pessoas, da academia e dos movimentos sociais, dispostas a dialogar e enfrentar este desafio de construir, coletivamente, alternativas e a alianças a favor de um outro tipo de educação, de maior justiça social. Como não voltar transformada?
Relato pessoal de Andrea Lapa (UFSC), GT 16 Educação e Comunicação da ANPEd, sobre a Oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) intitulada “Defender e descolonizar a universidade: da resistência à ecologia de saberes” realizada em Niterói, nos dias 20, 21 e 22 de outubro, no contexto da 39a Reunião Nacional da ANPEd.