por Luiz Carlos de Freitas
O documento distribuído pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República surpreende porque nasce de costas para a área da educação, ou melhor, para aquilo que ela produziu e acumulou em suas Conferências Nacionais de Educação. Ratifica com este procedimento a ideia de que a área educacional não deve ser responsável pela política da educação, já que suas ideias seriam por demais lenientes com a crise educacional, corporativas. Para esta forma de ver, seria preciso um “olhar de fora” para retirar a área da crise.
Surpreende também porque é produzido no interior de um governo que acena com a participação popular, coloca-se no campo da centro-esquerda e vinha até pouco tempo procurando um diálogo com as entidades científicas e sindicais da área. Embora não devamos nos esquecer do tratamento dado pelo governo à realização da última CONAE.
Luiz Carlos Freitas, Professor Titular da Faculdade de Educação da UNICAMP
Mas o documento também surpreende porquê do ponto de vista acadêmico é pífio. É voluntarioso, quer sugerir política pública que se resume em advocacia de ideias sem correlato em evidência empírica e em estudos avaliativos das ideias que sugere, e sequer tem a coragem de revelar sua bibliografia.
Contudo, enganam-se os que pensam que o documento não tem nada a dizer e que não deve ser levado em conta. Ele representa a experiência internacional dos chamados “reformadores empresariais da educação” em sua sanha por controlar a área da educação e subordiná-la aos interesses imediatos das necessidades de recomposição das taxas de acumulação de riqueza.
Em países mais avançados, duas tendências disputam dentro da reforma empresarial da educação o controle da educação: uma, que Cody chama de “anti-governo” e que pretende a completa desregulamentação da área de forma a que qualquer um que queira possa ensinar em uma escola privatizada – valendo tanto para a organização da escola em si mesmo, como também para aquele que ministra as atividades docentes, pois o magistério seria aberto àqueles que, mesmo sem formação sistemática, tivessem alguma “experiência relevante” na área. Aqui o instrumento preferido são os vouchers.
A outra vertente, pode ser denominada de “pró-governo”, no sentido de que toma de assalto as instâncias de produção de política pública educacional e de financiamento público da educação para a partir delas criar uma malha de controle sobre as escolas públicas privatizando-as pela sua conversão em escolas públicas não estatais, abertas ao controle de Organizações Sociais. O instrumento aqui é a responsabilização vertical combinada com meritocracia.
É importante agregar que por esta última via, o controle se faz tanto no nível macro – financiamento e políticas – como no plano micro – no âmbito dos sistemas de ensino e das escolas – com a criação de um novo paradigma de intervenção de base tecnológica, ou seja, avaliação on line e farto material educativo disponível on line, apoiados por grandes sistemas de informações aos docentes, alunos, pais e à sociedade em geral na forma de um “big data”. A ancoragem deste sistema está na avaliação on line que, ao posicionar o aluno, permite a conexão com os materiais instrutivos, ações de controle sobre as escolas e professores, até mesmo escolas “on line”, entre outras. Um verdadeiro “big brother” educacional.
Em ambos os casos, além do financiamento público há farto dinheiro proveniente de fundações e institutos privados, bem como de empresas. No Brasil, é esta segunda via “pró-governo” que deverá se firmar como alternativa e o documento da SAE visa criar as condições para que no plano organizativo federal (tendo o MEC como executor) tais ideias encontrem o devido apoio, alimentando no plano estadual e municipal ações que conduzam a esta visão de educação. Aqui estamos diante de um assalto ao poder indutor do Estado para aponta-lo na direção destas políticas. Esta é a contribuição do documento da SAE, ainda que não só esta.
O documento cria as condições de responsabilização vertical e meritocracia necessárias para a indução e avança em direção à própria organização interna das escolas pelo caminho da definição de uma base nacional comum que fixa o ponto de referência para o que se deve ensinar com a finalidade precípua de permitir um robusto sistema de avaliação on line e estabelece protocolos de aprendizagem para o ensino nas escolas e para a formação dos professores. Ou seja, o documento avança para dentro da escola e da própria atividade em sala de aula de forma detalhada articulando materiais didáticos, formação de professores, estratégias de ensino diversificadas, avaliação, meritocracia e financiamento. Interfere diretamente na autonomia pedagógica do professor.
Com esta estratégia o documento “organiza a diversidade”, ou seja, cria as bases para colocar cada criança em seu lugar, segundo seu “desenvolvimento”, e rastreia aquelas que têm potencial distintivo no ensino médio colocando-os em escolas de referência específicas. A segregação escolar tenderá a aumentar.
O documento foi gerado em colaboração com Cid Gomes – ex-ministro da Educação - e pelo menos duas áreas do MEC estão envolvidas na sua execução, a Secretaria de Educação Básica – que desenvolve a base nacional comum – e o INEP onde se aloja a nova base tecnológica para a avaliação e monitoramento da educação brasileira. Ali está sendo desenvolvida a avaliação digital e o “big data”. O que as ações em curso e o documento da SAE indicam é que está em desenvolvimento um novo paradigma de controle para a educação brasileira de base tecnológica – seja do ponto de vista macro do financiamento e das políticas; seja do ponto de vista micro, da intervenção na atividade de ensino, de gestão das escolas, bem como de formação dos professores via certificação.
As razões de fundo econômico para esta estratégia encontram sua base em duas necessidades do sistema empresarial: 1) produzir uma equalização mais favorável entre o aumento salarial dos últimos anos e a produtividade do trabalhador no interior da produção; 2) ampliar o número de formandos nas áreas de nível técnico e superior de forma a alterar a situação de quase pleno emprego dos últimos anos por aumento de desempregados (via ajuste fiscal) e aumento de formandos desempregados que estabeleçam nova relação entre oferta e procura de emprego com queda do salário médio pago à força de trabalho, o que leva ao item anterior.
Finalmente, há que se indicar que é um equívoco apontar para o Plano Nacional de Educação como antídoto para o documento da SAE. Como já admitiu o próprio MEC o documento da SAE é a carne para o osso do MEC. Portanto, não haverá a esperada oposição Janine-Mangabeira. Da mesma forma pode-se argumentar que o documento da SAE é a carne para o osso do PNE. E as falas de Mangabeira têm ido neste sentido.
Não bastasse isso, o fato é que as derrotas sofridas na aprovação do PNE no Congresso, são exatamente o que dá coerência entre o documento da SAE e o PNE. O próprio PNE prevê o desenvolvimento de diretrizes pedagógicas para as escolas, a meritocracia, a responsabilização e a privatização.
Portanto, neste momento, necessitamos de ações políticas claras de recusa explícita ao documento da Secretaria de Assuntos Estratégicos e de enfrentamento ao MEC em relação às ações tanto do INEP quando da Secretaria de Educação Básica de onde deve surgir a construção do “novo paradigma” de controle da educação brasileira.
Luiz Carlos Freitas é Professor Titular da Faculdade de Educação da UNICAMP