Novas Diretrizes para a Formação de Professores: continuidades, atualizações e confrontos de projetos | Colaboração de texto | por Eliana da Silva Felipe (GT 08)

por Eliana da Silva Felipe (GT08 - Formação de Professores)

A regulação da formação de professores por intermédio de “diretrizes curriculares nacionais” remonta, no Brasil, ao início do século XX. Em duas décadas, o Conselho Nacional de Educação - CNE elaborou e aprovou as seguintes resoluções: CNE/CP nº 01/2002, nº 2/2015 e nº 2/2019. Como esses processos não se realizam num vazio político e axiológico, cabe-nos interrogar a que interesses servem, suas continuidades, atualizações e embates, o que requer compreendê-los em seu movimento histórico.  

No final do ano de 2019, na fase de implementação das Diretrizes de 2015, o CNE aprovou a Resolução CNE/CP nº 2/2019, que instituiu as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Essa aprovação se deu sob inúmeras críticas das instituições de ensino superior e das entidades da área de educação que, em documento conjunto, ainda na fase de discussão da proposta, solicitaram o seu arquivamento por representar uma "desconfiguração dos cursos de formação de professores" (Anped et al., 2019).

O princípio da valorização da profissão docente, da qual a formação é parte, foi legitimado pela Resolução CNE/CP nº 2/2019. Contudo, o que ela opera é o projeto de “desprofissionalização” (FREITAS, 2002) consubstanciado nas Diretrizes de 2002 e aperfeiçoado, nas suas feições neoliberais, pelas reformas educacionais recentes. Três grandes pilares dessas Diretrizes reportam a essa desprofissionalização: 1) legitimação dos institutos superiores de educação como lócus preferencial da formação, em detrimento das universidades; 2) simetria invertida, ou seja, coerência entre a formação e a atuação profissional esperada, o que remete à superficialização da formação e 3) competências como “fio condutor” do currículo e da avaliação, pelas quais se busca alinhar os conhecimentos e as práticas profissionais dos professores a padrões externamente estabelecidos.

As novas referências para a formação de professores, preconizadas pelas Diretrizes de 2002, esbarraram na conjuntura política da época, marcada, na esfera política, pela mudança de governo com a eleição do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e, na esfera acadêmica, pelo alto grau de aceitação dos princípios defendidos pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação – Anfope, que serviram de base para a elaboração das diretrizes curriculares dos cursos de licenciatura, entre 2001 e 2006, e para a reformulação dos currículos desses cursos. 

As conjunturas políticas definem as condições de possibilidade de disputa de projetos. Assim, transcorrido mais de uma década da aprovação da Resolução CNE/CP nº 1/2002, o Ministério da Educação, no governo da Presidente Dilma Rousseff, encaminhou ao CNE proposta de definição de novas diretrizes para a formação de professores. Amplamente discutida em todo o país, por intermédio de audiências regionais e nacionais, a proposta foi aprovada em julho de 2015, passando a ser conhecida como Resolução CNE/CP nº 2/2015.

Em grande medida inspirada nas contribuições da Anfope e nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Pedagogia, a Resolução CNE/CP nº 2/2015 assentou, entre outros, os seguintes compromissos: base comum nacional como conjunto de princípios e não como prescrição curricular e pedagógica; concepção de docência como ação educativa que pressupõe o ensino e as demais funções necessárias a sua plena realização; sólida formação científica e cultural; sólida formação no domínio de conteúdos e metodologias, linguagens e tecnologias; articulação entre formação inicial e continuada, articulação entre formação e valorização profissional e entre ensino, pesquisa e extensão como princípio pedagógico essencial à articulação entre teorias e práticas e ao aprimoramento profissional. No seu conjunto, esses compromissos visavam a uma formação ampla e cidadã, comprometida com a defesa da democracia, da cidadania, da justiça, da inclusão e da educação como bem comum. 

O golpe de 2016, que culminou no Impeachment de Dilma Rousseff, criou as condições objetivas para o desmonte deste projeto. O PMDB assumiu a Presidência da República e o PSDB a Secretaria Executiva do Ministério da Educação, onde imprimiu sua condução técnico-ideológica. Bem anterior ao Golpe uma nova governança educacional formada por fundações, institutos e outros desenhos de organizações sociais, como o Todos pela Educação, já tinha se instalado no País, assumindo o papel de articulação da agenda internacional para a educação defendida pela Unesco, OCDE e Banco Mundial, em especial no que se refere à padronização de currículo e a consequente redução da autonomia das instituições de ensino para decidir sobre seu projeto curricular e pedagógico, processo que se intensificou no governo Temer na medida em que membros dessas organizações, com trânsito na esfera pública e privada, passaram a ocupar o Conselho Nacional de Educação. 

 É nesse contexto que dois fatos de grande relevância abriram caminho para o processo de revisão das Diretrizes de 2015:  a prorrogação do prazo para sua implementação, autorizada por intermédio das resoluções CNE/CP nº 1/2017, nº 3/2018 e nº 1/2019, e a alteração, em 2017, do art. 62, § 8º da LDB, que tornou obrigatória a adoção da Base Nacional Comum Curricular como referência para os currículos dos cursos de formação de professores. Esse alinhamento retomou, sob novos termos, a simetria invertida pretendia pelas Diretrizes de 2002.

No movimento de avanço deste projeto, em 2018, já no final do governo Temer, o Ministério da Educação encaminhou ao CNE “Proposta para Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica”, transformada no CNE em Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Sem discussão ampla com a sociedade brasileira, a toque de caixa, o parecer CNE/CP nº 22/2019 foi aprovado em dezembro de 2019. 

A Resolução CNE/CP nº 2/2019, dele decorrente, reeditou aqueles pilares das Diretrizes de 2002, já citados, e avançou para além deles mantendo a coerência de projeto para a educação brasileira. Essa coerência  se estabelece na medida em que:  1) prioriza um percurso único de formação ao invés da flexibilidade necessária à valorização dos projetos pedagógicos próprios das instituições formadoras; 2) reduz as competências profissionais dos professores às “aprendizagens essenciais” previstas na BNCC, transformando o aprendizado da docência em um conjunto de habilidades e competências mensuráveis e hierarquizáveis e 3) subordina a formação a uma visão utilitarista e instrumental de conhecimento, esvaziando o  vigor humanista e crítico necessário à compreensão ampla e contextualizada da educação e da escola.

A conversão, sem reservas, ao modelo gerencial neoliberal se fez às custas da negação da diversidade de instituições e projetos pedagógicos de formação inicial existentes no Brasil, da autonomia didático-científica das instituições universitárias prevista no art. 207 da Constituição de 1988, da natureza do ensino universitário, indissociável da pesquisa e da extensão e do enfraquecimento da articulação entre formação inicial e continuada assegurada pela Política Nacional de Formação de Professores (instituída pelo Decreto nº 6.755/2009 e atualizada pelo Decreto nº 8.752/2016), ao remeter para as instituições de educação básica a responsabilidade pela formação continuada. Soma-se a isso a opção por uma abordagem normativo-prescritiva em moldes jamais vistos, alcançando níveis de decisão curricular e pedagógica que deveriam ser prerrogativa das instituições formadoras como seleção e ordenamento dos conteúdos, critérios de organização entre outros, dissonante, portanto, com o princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Este quadro nos coloca diante de forte ameaça à formação docente no Brasil. A ideia de formação “ampla e cidadã” afirmada na Resolução CNE/CP nº 2/2015 foi substituída pela ideia de “formação básica”, centrada fundamentalmente na transposição para o ensino dos conteúdos das áreas, na qual se vislumbra o risco iminente de “desintelectualização” (SHIROMA, 2003) da formação de professores. Subjaz essa concepção que o professor da educação básica não é um criador, é um aplicador, o que explica a adoção de padrões de referência (conhecimentos, competências e práticas) limitados ao básico, bastante útil à expansão do mercado educacional e, por sua vez, à universalização de soluções educacionais.

Para o curso de Pedagogia, essa “descaracterização” da formação faz ruir um projeto construído coletivamente em quatro décadas, portanto, experimentado, avaliado e legitimado pelas instituições de ensino superior. Nesse percurso, a ideia de habilitação em áreas específicas e fragmentadas foi superada em favor de uma visão ampla de docência, que compreende o ensino, a organização e gestão de sistemas e instituições de ensino, ratificadas pelas diretrizes curriculares do curso. Na contramão dessa construção, as Diretrizes atuais fraciona a docência multidisciplinar, admitindo o parcelamento de uma atividade que existe em continuidade, ou seja, a docência na educação infantil e anos iniciais, ao mesmo tempo que irrompe o conceito de licenciatura e bacharelado integrados ao deslocar a formação para a gestão do núcleo da formação docente. Essa flexibilização remonta a um capítulo de longa duração na história do curso de Pedagogia, o de enfraquecimento de suas funções, em particular no que se refere à formação de professores para a docência multidisciplinar.

A formação de professores é um campo de tensão permanente porque confronta projetos inconciliáveis: de um lado uma visão adaptativa e funcional da educação que pressupõe como essencial à formação o desenvolvimento de competências inerentes ao trabalho, despolitizando as opções políticas que definem o que é relevante aprender. De outro, uma visão crítico-emancipadora alicerçada na compreensão do duplo papel da educação, qual seja, reproduzir a dominação e desafiá-la (APPLE, 2011, p. 29). No campo da disputa  de projetos que se apresenta, desafiar a dominação passa por afirmar o imperativo de uma formação geral e profissional ampla que permita aos professores o domínio dos conhecimentos que lhes cabe socializar e o discernimento para decidir o que é  bom ensino e as finalidades a que ele deve servir.

Portanto, uma política de formação põe em jogo a construção de novas identidades, de novos valores e práticas. Ela define um éthos não somente para os professores, mas para as escolas, para as crianças e jovens de amanhã. Esse éthos que a as Diretrizes de 2019 propugnam não inclui a pluralidade, a solidariedade e o compromisso com a invenção de novas possibilidades de vida, mas a padronização, a competitividade e a adaptação ao mundo como dado. Contudo, como a educação é um processo nunca inteiramente consolidado, a tensão permanece, assim como os processos de resistência e de luta contra o esvaziamento político e cultural da formação de professores no Brasil e a subordinação da educação a objetivos estritamente mercadológicos.

Referências

ANPED et. Al. Contra a descaracterização da Formação de Professores - Nota das entidades nacionais em defesa da Res. 02 /2015. Disponível em: anped.org.br/news/contra-descaracterizacao-da-formacao-de-professores-nota-das-entidades-nacionais-em-defesa-da. Acesso jul. 2020.

APPLE, Michael W. Educação democrática nos tempos neoliberal e neoconservador. Estudos Internacionais em Sociologia da Educação, 21: 1, 21-31, 2011.

FREITAS, H. Formação de professores no Brasil: 10 anos de embate entre projetos de formação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 80, p. 136-167, set. 2002.

SHIROMA, Eneida. Política de profissionalização: aprimoramento ou desintelectualização do professor? Intermeio, Campo Grande, v. 9, n. 17, p. 64-83, 2003.