por Luis Antonio Groppo (UNIFAL-MG) e Maria Carla Corrochano (UFSCar)
Vice-coordenador e Coordenadora do GT03 (Movimentos sociais, sujeitos e processos educativos)
Nas últimas décadas, as análises sobre os movimentos sociais e as ações coletivas, especialmente no campo da educação, concentraram-se em estudos de ações e movimentos que ganharam a cena pública com pautas e demandas de ampliação de direitos sociais e civis, alargamento da democracia e da participação social. O que observamos atualmente tanto no cenário nacional, quanto no cenário internacional desafia essa produção. Observa-se cada vez mais o fortalecimento de ações e movimentos de caráter conservador e reacionário em diferentes campos, e particularmente no campo da educação, que se transforma em fértil terreno de disputa por esses segmentos. Neste contexto, torna-se ainda mais necessário ampliar nossa capacidade de compreensão desses movimentos[1], analisando suas fontes ideológicas, organizacionais e financeiras, além da participação ativa na construção de respostas para os crescentes desafios apresentados.
Entre as iniciativas conservadoras ou reacionárias, destacam-se o dito “Projeto Escola Sem Partido” – na verdade, “Escola com Mordaça” – e mais difusas campanhas de agentes ligados a partidos ultraconservadores e setores religiosos contra a suposta “ideologia de gênero”. A Escola com Mordaça defende o combate ao que seria uma sistemática doutrinação ideológica esquerdista no seio das escolas, e, entre os seus resultados, têm transformado educadoras e educadores em potenciais antagonistas no imaginário das famílias das e dos estudantes da Educação Básica, tornando ainda mais precária a condição docente em nosso país, já que tem sido disseminada uma grande desconfiança para com a escola e seus profissionais. Já a denúncia da dita “ideologia de gênero” mal esconde suas raízes profundamente reacionárias, machistas e LGBTTfóbicas, fazendo uso de preconceitos ainda enraizados no imaginário popular para fazer a defesa de um suposto fundamento natural e/ou divino da família nuclear, da divisão sexual tradicional do trabalho e da heterossexualidade.
Entre as iniciativas ultraliberais, destaca-se o Movimento Brasil Livre (MBL) e organizações congêneres como o “Vem pra Rua”, grupos que têm se organizado e agido de modo similar a organizações de caráter horizontal e participativo que protagonizaram recentes protestos juvenis, como o movimento antiglobalização e o Movimento Passe Livre (MPL). Mas o MBL e os movimentos próximos a ele imitam o formato que representou anseios autonomistas de parte das juventudes no Brasil recentemente, têm pautas que estão na contramão da luta pela garantia e ampliação de direitos sociais que marcou, por exemplo, os protestos do MPL em junho de 2013. Por trás destes ultraliberais de movimentos juvenis, há também forte financiamento de organizações e fundações ligadas aos setores empresariais, como o Instituto Milenium e o Todos Pela Educação. É possível também classificar as iniciativas ultraliberais como reacionárias, já que, assim como as primeiras, negam o pacto constitucional (que dava legitimidade à defesa da garantia dos direitos sociais por meio de recursos públicos), via a defesa extremada da livre iniciativa, da redução dos tributos sobre o capital e o lucro, da “livre” negociação entre força de trabalho e empresas e da mercantilização da saúde, educação e previdência etc.
Talvez, nós, do campo da pesquisa em educação, tanto quanto os setores progressistas que defendem os direitos à educação, tenhamos subestimado a força destes movimentos conservadores, já que seus argumentos e propostas, como dito, beiravam o irracional e o absurdo. Se do ponto de vista da argumentação racional, tais movimentos tenham construído caricaturas da lógica, do ponto de vista da arregimentação dos sentimentos foram muito eficazes. Ajudaram a criar um clima cultural, mesmo uma agenda política, que tem dominado a esfera pública e até invadido o cotidiano, de caráter conservador e mesmo regressista que, a partir da recusa da legitimidade das pautas identitárias – e suas lutas contra o machismo, o racismo e a LGBTTfobia – chegou à recusa da própria legitimidade dos direitos humanos, incluindo os direitos sociais.
Debaixo de nossos olhos, tem se esvaído uma agenda política fundada nos direitos sociais e na defesa da (limitada) democracia representativa. E o campo da educação foi tanto o cenário dos “debates” - na verdade, da disseminação de rumores falsos e temores - quanto tem sido agora campo de oportunidades econômicas para setores do capital que desejam a sua mercantilização extrema.
No Brasil, assim como em parte importante do mundo, esta crescente agenda ultraliberal e este clima regressivo, sustentados antes por preconceitos, sentimentos e frases de efeito, têm pouca sistematização racional ou capacidade argumentativa e, portanto, são pouco capazes de conviver com o debate público democrático. Mas eles têm pouco de casual ou espontâneo, são antes fruto de um trabalho político e ideológico de larga escala, capaz de penetração surpreendente via redes sociais e mobilização de emoções e preconceitos. Trabalho apoiado por thinktanks ligadas ao grande capital internacional e fundações empresariais, financiado generosamente pelo capital e setores religiosos.
A educação é, assim, tanto tema central desses novos “intelectuais orgânicos” do capital, quanto campo repleto de oportunidades de mercantilização pelos conglomerados do capital que financiam os primeiros. Oportunidades também de um avanço de verdadeiras doutrinações no campo escolar, tanto por meio de institutos e fundações que disseminam valores ultraliberais e projetos de “empreendedorismo”, quanto por meio de setores religiosos que desejam auferir livre acesso às salas de aula e pátios escolares. A educação é, enfim, recorrente refém da retórica temerária da nova direita, que articula campanhas e projetos de leis que têm mobilizado com eficácia preconceitos e temores. A eficácia destas iniciativas transbordou a própria educação, tornando-se fator decisivo nas últimas eleições.
Um dos resultados imediatos tem sido a perda de legitimidade de fundamentos progressistas, democráticos, laicos e pluralistas que – com maior ou menor efetividade – vinham orientando os sistemas escolares brasileiros, a formação de professores e os objetivos da educação nacional. Grande sintoma disso tem sido os ataques a Paulo Freire, escolhido como patrono da educação brasileira menos pela radicalidade das ideias de seu livro seminal, Pedagogia do oprimido, e mais pela temperança de obras tardias, como Pedagogia da autonomia. A rejeição dessas ideias, que durante a reconstrução dos sistemas da Educação Básica na “Nova República” atuaram como uma espécie de bom senso da prática educativa, um fundamento progressista e democrático para a educação brasileira pós-ditadura, ilustra que, também no campo da educação, os eventos desde 2016 têm selado o fim da experiencia democrática da Nova República.
As propostas e pautas conservadoras na educação não são homogêneas, entretanto, e, além de complexas, são díspares, mesmo algumas daquelas acolhidas com bons olhos por membros do atual governo federal. De um lado, por exemplo, uma proposta até o momento barrada pelo Supremo Tribunal Federal, o homeschooling, o “ensino doméstico”, defendido como o “direito” de as famílias elas próprias realizarem a escolarização de seus filhos a partir de suas crenças religiosas e visões de mundo, diante do suposto risco da “doutrinação” pelos docentes. De outro, práticas que, já há alguns anos, vêm sendo crescentemente adotadas em vários estados, as escolas militarizadas, quando o militar e oficial substituem o docente e o gestor escolar. Assim, as práticas defendidas por esses novos movimentos conservadores vão de um extremo a outro, da defesa de uma radical desinstitucionalização da escola, o homeschooling, à disseminação da sua forma institucional mais disciplinadora, a escola militarizada.
Quiçá possamos nós, pesquisadores da educação, cujas proposições partem de fatos e dados colhidos da realidade, ao lado de forças progressistas ainda ativas, juntar esforços para trazer novamente algo de racional, lógico e ponderado aos debates educacionais. Enquanto isso, os rumos do país caminham mais para o caos do que uma “nova política” que reviveria a suposta ordem durante a ditadura miliar e civil, em que os arautos de dogmas ultraliberais e diferentes tendências reacionárias têm se digladiado ferozmente, depois de terem – como vociferam – expulsado o risco “comunista” do país. Enquanto isso, estudantes, educadores e comunidades ficam à mercê do caos e da irracionalidade.
[1] MARTINS, Marcos Francisco; GROPPO, Luis Antonio; BARBOSA, Jefferson Rodrigues. Apresentação do dossiê temático: movimentos sociais conservadores e educação. Crítica Educativa, Sorocaba, vol. 4, n. 2, p. 3-6, Set./ Out.2018.