Célia Cristina de Figueiredo Cassiano, Doutora em Educação pela PUC-SP, autora do livro “Mercado do livro didático no Brasil”, pela Editora Unesp e gestora educacional na PMSP
Certamente, este decreto 10195/2019 consolida determinado viés político e ideológico deste governo em relação à Educação no país e, no caso dos livros didáticos, vide, por exemplo, o artigo 29 do Decreto, em que se discrimina como competência da “Diretoria de Alfabetização Baseada em Evidências”, em seu Parágrafo 3º, “elaborar materiais e recursos didático-pedagógicos de alfabetização, de literacia e de numeracia”, entre outras.
Neste contexto, temos de considerar que políticas públicas se objetivam à luz dos sujeitos que estão ocupando cargos governamentais. Atualmente (02/2020), o secretário de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC) é Carlos Francisco Nadalim, sendo este um dos que restaram dentre as indicações de Olavo de Carvalho, em 2019. O secretário tem suas ideias dispostas no blog “Como educar seus filhos”, em que se enfatiza a educação domiciliar, o método fônico de alfabetização e a rejeição ao pensamento de Paulo Freire. Além disso, lembremos que a mídia divulgou amplamente as palavras do presidente Jair Bolsonaro, na saída do palácio Alvorada, em 03/01/2020: “Tem livros que vamos ser obrigados a distribuir esse ano ainda levando-se em conta a sua feitura em anos anteriores. Tem que seguir a lei. Em 21, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”.
Assim, além da possibilidade inédita de o governo elaborar materiais com estes referenciais, há de se considerar, também, que a avaliação governamental em 2020, de livros didáticos para alfabetização (referente ao PNLD 2021), terá esta marca ideológica, e o mercado editorial está atento a isto. Ao que tudo indica, a obra que não atender ao que o governo (comissões/ avaliadores indicados pelo atual MEC) considerar como “ideal”, será excluída da compra pública. Considere-se que há muitos anos o governo é o maior comprador de livros didáticos do país graças ao Programa Nacional do Livro Didático - PNLD, que foi consolidado em 1996, no governo de FHC e mantido e ampliado nos governos posteriores, dos presidentes Lula e Dilma Rousseff.
Porém, vale destacar que o PNLD já havia sido alterado significativamente no governo de Michel Temer (31/08/2016- 31/12/2018), com a publicação do Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, que revogou o Decreto 7.084/2010 (que unificava os programas para o livro escolar de diferentes níveis de ensino e dimensionava os processos já conhecidos do PNLD). A publicação do Decreto nº 9099/ 2017 possibilitou não só a entrada de sistemas estruturados de ensino (que são oriundos dos cursinhos pré-vestibulares, estes são um “pacote” composto de material didático apostilado -sem autoria, formação de professores e todo o currículo organizado principalmente via web, de modo geral) por meio do Programa, mas também de outros materiais didáticos. Além disso, amplia o alcance do PNLD para instituições filantrópicas e confessionais, sem fins lucrativos, redimensiona o processo de avaliação e retira as Universidades Públicas desse processo e abre a possibilidade para que as secretarias municipais e estaduais de educação constituam comissões para a seleção dos livros didáticos e estas possam realizar a escolha para todo o colegiado da cidade ou do Estado, retirando dos professores a autonomia na realização dessa atividade. Também altera o nome do Programa e PNLD passa a significar “Programa Nacional do Livro e do Material Didático”, entre outras alterações.
Este dois decretos, o 9099/2017, do governo Temer, ao lado do Decreto 10.195/2019, do governo Bolsonaro, implicam alterações no conteúdo dos livros que chegarão às escolas para serem escolhidos pelos professores (ou não serão escolhidos, conforme anteriormente explicado), como também possibilitam a entrada de novas editoras e empresas na disputa para a compra governamental (devido a variedade dos materiais acrescentados no PNLD).
Mas, vale especificar sobre qual mercado editorial estamos falando. Atualmente, poucos grupos detém o mercado da educação, a saber: 1) Kroton Educacional – Detêm a Abril Educação - composta pelas editoras Ática e Scipione, pelos sistemas de ensino Anglo, Ser, Maxi e GEO, o Siga (curso para concursos públicos), o Colégio pH, o Centro Educacional Sigma, o Grupo ETB (Escolas Técnicas do Brasil), a Escola Satélite, a rede de escolas de inglês RedBalloon e a Livemocha; o Grupo Saraiva Educação, braço do grupo formado por selos como Atual, Benvirá, Editora Saraiva, Editora Érica e sistema de ensino Ético. A Kroton Educacional também é dona das marcas Pitágoras (educação básica) e das faculdades Anhanguera, Fama, Faculdade Pitágoras, Unic, Uniderp, Unime e Unopar, além da rede LFG, de cursos preparatórios para concursos públicos e OAB. (Revista Veja/ Redação/Economia, 2018); 2) Grupo Santillana: É o braço editorial do Grupo espanhol Prisa, que adquiriu a editora Moderna, em 2001. Conta com mais seis empresas no Brasil: a Editora Salamandra, a Santillana Espanhol, o selo Richmond, o Sistema de ensino Uno Internacional, a empresa de avaliação educacional Avalia e a Fundação Santillana; 3) FTD, que é a educação do Grupo Marista e conta com a FTD (editora FTD, FTD Sistema de Ensino e Integra - Serv. Educacionais Integrados) e diversas Unidades Educacionais; 4) Grupo Ibep, que conta com a Editora Ibep, Cia Editora Nacional, Conrad Editora, Base Editorial, Ibep Idiomas.
Além disso, temos a entrada da Pearson na educação brasileira que se destaca, em especial, por ter se dado pela aquisição de sistemas de ensino. É um produto que concorre diretamente com os livros escolares, formado por empresas tradicionais do setor como Anglo, Objetivo, COC e Positivo e pelos próprios grupos do segmento dos didáticos.
A comercialização dos Sistemas de Ensino pelas tradicionais editoras de didáticos justifica-se, certamente, em decorrência da expansão desses sistemas no mercado, que passaram a ocupar espaços antes destinados prioritariamente ao livro didático. No início, em escolas da rede particular e, depois, na rede pública, por meio da negociação feita diretamente com as prefeituras e paga com verbas próprias. Por vezes, os municípios se valem de todos os seus recursos para a educação com a compra de um sistema de ensino, sendo praticamente uma terceirização do setor na escola pública.
Vale considerar que todos estes grupos possuem alto poder de investimento e também comercializam o filão dos sistemas estruturados de ensino para a rede da educação pública. Assim, além do conteúdo dos livros que chegarão às escolas nos próximos anos, também vale observar o crescimento dos sistemas de ensino, que disputam espaço com os didáticos e são mais rentáveis para as editoras, além de não passarem por nenhuma avaliação e terem sido “legitimados” no Decreto 9099/2017.
Nesse processo, como já vimos, grandes grupos editoriais e redes mundiais de ensino estão "abocanhando” empresas nacionais de diferentes portes, disputando espaços, domínio e poder financeiro. Parcerias e negócios estão transformando a educação brasileira, pública ou privada, em ambientes de disputa e de tensionamentos, ficando o Estado cada vez mais à margem deste processo ou, até, facilitando a terceirização da educação básica. Como esses processos serão adaptados aos Decretos governamentais de Temer e Bolsonaro poderão ser vistos nos editais que sairão nos próximos anos e no mapeamento de livros, materiais e sistemas que estarão chegando às escolas públicas brasileiras nos próximos anos.
Ainda assim, vale mencionar que ainda que tenhamos um MEC alterado, com gestores desconhecidos, que não atuaram nas gestões anteriores e que estão dando novos rumos aos materiais didáticos que estão entrando na escola pública, pode-se destacar que este é um contexto nacional, que implica maior ou menor impacto nos Estados e Municípios, que têm relativa autonomia para desenvolverem seus currículos de modo local.