por Carlos Roberto Jamil Cury (PUCMinas/UFMG)
Essa temática veio se tornando presente no debate sobre a instituição escolar por conta de uma notória tendência regressiva no campo político. Postula-se uma escola sem partido como lugar não-político avesso à crítica. Busca-se retirar as crianças das escolas para aninhá-las no caráter privado da educação doméstica e revela-se a procura de partidarismo moralista pela recusa do enfrentamento da diversidade. O conceito de ideologia, de si complexo, se tornou uma espécie de refúgio dos que vêem determinados temas, até então invibilizados, estando presentes na escola. São temas difíceis, é verdade, e que exigem um tratamento sólido e fundamentado. É o caso dos preconceitos e das discriminações em relação aos descendentes dos cativos, ou aos indígenas que, por longos tempos, ou ficaram ocultos ou então, eram tratados como resíduos folclóricos. E essa dinâmica ficou ainda mais acalorada quando entraram em cena outras formas de diversidade que postulam respeito e reconhecimento.
Mas como não enfrentar tais temáticas sem desocultar estigmas e preconceitos ? Caso contrário, como entender o art. 3o de nossa Constituição de 1988 e seus incisos que constituem como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil tais como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Será que expressões como discriminação, preconceito e marginalização são coisas superadas em nossa sociedade ? Como ignorar o art. 4o da mesma Constituição que repudia o racismo e aponta como um princípio de nossa República a prevalência dos direitos humanos ? Não bastante, o § 1o do art. 242 postula que o ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro ? Enfim, o fundamental art. 205 impõe ao terreno da educação o preparo para o exercício da cidadania.
Ora, isso significa que a escola tem uma função política: o exercício da cidadania. Será preciso voltar a Aristóteles para afirmar que a política consiste na participação consciente e crítica nos destinos de uma comunidade ? ou a Hanna Arendt para quem a cidadania é não só o lugar do público como também o direito a ter direitos ? Como não levar adiante o mandamento do art. 210 que impõe à educação a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais ?
A escola pública tem seu nascedouro na Modernidade a qual se fez acompanhar tanto da recusa a privilégios que conduzem à permanência de preconceitos e discriminações quanto à fundamentação do comum no princípio da igualdade. É o que reza o art. 5o da Constituição: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza... Qual é o sujeito oculto da distinção ? A resposta é clara: é o que os artigos 3o e 4o explicitaram: a desigualdade social, a disparidade regional e a discriminação cultural. À escola pública coube, então, a ereção da figura do aluno ou seja a figura de quem deve crescer desconstruindo a ignorância, mãe de preconceitos, das verdades indiscutíveis e refúgio de tiranos, signos de um passado que teima em permanecer, e construindo a tolerância, a aceitação e o reconhecimento do outro. A escola pública tem sua razão de ser na figura do aluno para cujo processo de desenvolvimento emerge o docente, ou como nomearam os franceses o instituteur, ou seja, aquele que vai ser o canal da instituição da cidadania como distintivo da igualdade e da formação comum.
Assim, nossa Constituição, coerente com estes objetivos e princípios, disporá no art. 5o, IV que a livre manifestação do pensamento é a oposição a todos os dogmatismos e que no inciso IX reza que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Consequente a esses direitos e deveres próprios das garantias fundamentais é que o art. 206, inciso II e III explicitam como princípios do ensino: liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber para cuja liberdade se impõe pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas...
A instituição escolar, portanto, é o lócus por onde se processa o cultivo e a circulação de um saber crítico que desvenda as contradições, que busca fundamentos sólidos ainda que sempre abertos a novos avanços do conhecimento científico.
É ela, ainda, o lugar do encontro dos diferentes, dos desiguais que, ao terem uma formação comum de corte científico, também se torna o lugar da formação cidadã pelo respeito ao outro e aprendizado das regras do jogo.
É nesse sentido que a escola é política e apartidária e, por isso, ampliando para o conjunto do aparato educacional, pode-se trazer o art. 33 da lei de diretrizes e bases. Tratando do ensino religioso, caso próprio de um segmento específico, veda-se qualquer forma de proselitismo. Isso implica a recusa a doutrinações, ao mesmo tempo que se impõe valores e finalidades presentes nessa mesma lei de diretrizes e bases quando ao tratar do ensino médio acentua, no art. 35, o continuar aprendendo, o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.
Ao invés de postular escolas sem partido, é preciso afirmar e reafirmar o papel único que a instituição escolar representa em nossa sociedade. Ela tem partido sim: o da desconstrução dos estereótipos, preconceitos e discriminações que não passam de doutrinações presas a um passado de privilégios opostos aos direitos. Ela é sim um universo plural vocacionado aos direitos da cidadania e aos direitos humanos.