Humano, profundamente humano - Em memória de Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020)

Despediu-se deste plano Dom Pedro Casaldáliga, dia 08 de agosto de 2020. Nós, da diretoria da ANPED, nos despedimos também, com profundo pesar sobre sua morte. Mas também com a certeza que suas inúmeras obras continuam pulsantes e continuarão vivas.

Dom Pedro Casaldáliga foi um líder religioso e comunitário que viveu para uma educação em sentido amplo e pleno. Sua obra cotidiana de construção de encontros de cristãos em São Félix do Araguaia, onde chegou em 1968, foi sempre prenhe de busca de acesso aos direitos e pela luta contra as injustiças. Ao mesmo tempo em que educou para a cidadania,  educou-se no cotidiano com os sofrimentos, mas também com os conhecimentos dos povos da Amazônia sobre o rio, sobre as florestas, sobre a vida. Em 1971 foi nomeado Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia e alguns meses depois publicou a Carta Pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social (leia a íntegra da carta aqui https://web.archive.org/web/20060514080958/http://servicioskoinonia.org/pedro/cartas/1971CartaPastoral.pdf) que foi marco na luta da igreja católica a favor da justiça social e dos povos amazônicos. Em memórias publicadas em seu diário, relembra o início, neste mesmo ano de 1971, de campanhas missionárias e de curso de alfabetização que seguia o método de Paulo Freire. Atuou fortemente na organização de Comunidades Eclesiais de Base, na fundação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que durante décadas atuam na defesa de direitos de povos do campo, das águas e de indígenas. Podemos afirmar que Dom Pedro venceu a ditatura e venceu as perseguições e ameaças dos latifundiários locais, visto que seus trabalhos prosperaram e se ampliaram durante os anos de chumbo e permanecem com muita força e vitalidade. Paralelo ao seu trabalho de liderança e de teólogo manteve a produção de poeta. Seus escritos podem ser apreciados na página https://web.archive.org/web/20060217111551/http://servicioskoinonia.org/pedro/index.html

Algumas palavras de Dom Pedro que marcam não só a luta contra os poderes opressores, mas são obras vitais para a cultura brasileira e expressam o bispado voltado para evangelização sem colonialismo e na defesa dos direitos humanos dos mais pobres:

Eu sou América,
sou o Povo da Terra,
da Terra-sem-males,
o Povo dos Andes,
o Povo das Selvas,
o Povo dos Pampas,
o Povo do Mar...

(R)

Do Colorado,
de Tenochtitlan,
do Machu-Pichu,
da Patagônia,
do Amazonas,
dos Sete Povos do Rio Grande...

(Vozes individuais)

Eu sou Apache.
Eu sou Azteca.
Eu sou Aymara.
Eu sou Araucano.
Eu sou Maia.
Eu sou Inca.
Eu sou Tupi.
Eu sou Tucano.
Eu sou Yanomani.
Eu sou Aymore.
Eu sou Irantxe.
Eu sou Karaja.
Eu sou Terena.
Eu sou Xavante.
Eu sou Kaingang.

Solo (R)

Eu, Guarani.
E é com canto Guarani
que todo o resto do Continente,
todos os povos do meu Povo,
cantam agora seu lamento.

MISSA DA TERRA SEM MALES

Pedro CASALDÁLIGA

Texto: Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra
Música: Martín Coplas
Gravação em cassete: Edições Paulinas Discos, São Paulo 1980.

          

E da notória Missa dos Quilombos imortalizada na voz de Milton Nascimento e que marcou gerações pela sua beleza e força, transcrevemos a apresentação  e versos iniciais https://web.archive.org/web/20060208204035/http://servicioskoinonia.org/pedro/poesia/quilombos.htm

Apresentação

Em nome de um deus supostamente branco e colonizador, que nações cristãs tem adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vem sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na América, na Africa mãe, no Mundo.

Deportados, como "peças", da ancestral Aruanda, encheram de mão de obra barata os canaviais e as minas e encheram as senzalas de indivíduos desaculturados, clandestinos, inviáveis. (Enchem ainda de sub-gente -para os brancos senhores e as brancas madames e a lei dos brancos- as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes).

Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles, o Sinaí Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, "em nome do Deus de todos os nomes", "que fez toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue".
Vindos "do fundo da terra", "da carne do açoite", "do exilio da vida", os Negros resolveram forçar "os novos Albores" e reconquistar Palmares e voltar a Aruanda.

E estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões -em casa, na rua, no trabalho, na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Esperança.
Para escândalo de muitos fariseus e para alivio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da História, esta máxima culpa cristã.
Na música do negro mineiro Milton e de seus cantores e tocadores, oferece ao único Senhor "o trabalho, as lutas, o martirio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares".

E garante ao Povo Negro a Paz conquistada da Libertação. Pelos rios de sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem "sem figura humana", sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia e da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.
Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição do Cristo.

Pedro Tierra e eu, já emprestamos nossa palavra, iradamente fraterna, à Causa dos Povos Indígenas, com a "Missa da Terra sem males", emprestamos agora a mesma palavra à Causa do Povo Negro, com esta Missa dos Quilombos.

Está na hora de cantar o Quilombo que vem vindo: está na hora de celebrar a Missa dos Quilombos, em rebelde esperança, com todos "os Negros da Africa, os Afros da América, os Negros do Mundo, na Aliança com todos os Pobres da Terra".

Pedro Casaldáliga
I.- A DE Ó (ESTAMOS CHEGANDO). ABERTURA

(Coro–Cantado)

Estamos chegando do fundo da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar.

Estamos chegando da morte nos mares,
estamos chegando dos turvos poroes,
herdeiros do banzo nós somos,
viemos chorar.

Estamos chegando dos pretos rosários,
estamos chegando dos nossos terreiros,
dos santos malditos nós somos,
viemos rezar.

Estamos chegando do chao da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos
viemos criar.

Estamos chegando do fundo do medo,
estamos chegando das surdas correntes,
um longo lamento nós somos,
viemos louvar.

MISSA DOS QUILOMBOS
Texto: Pedro CASALDÁLIGA e Pedro TIERRA
Música: Milton NASCIMENTO

Disco longplay: Philips
Cassete: Ariola, São Paulo 1982.
Compact Disc Digital Audio: PolyGram do Brasil Ltda.

Sua atividade como bispo continuou até 2005, passando pelo processo que respondeu ao poder conservador do Vaticano e mantendo seus pilares de estrutura participativa e democrática na diocese, de luta pela vida e direitos dos povos, de criação e formação de comunidades eclesiais de base, de promoção humana, de defesa dos direitos humanos. Depois de sua renúncia ao governo pastoral de São Felix do Araguaia por condições de saúde, Dom Pedro manteve sua influência e combatividade.

Parte de sua luta e vida foi retratada em filme, disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/descalcosobreaterravermelha

Neste momento em que estamos em luto pelas mortes no Brasil e que as palavras de ordem são “resistência” e “ninguém solta a mão de ninguém” Dom Pedro Casaldáliga é um exemplo dos maiores e incontestes. 

Aquele menino de Lobregat (Cataluña - Espanha), de família campesina, mostrou o exemplo como a formação humana e a formação de valores pode levar a este lugar de profunda identificação com o outro, de luta coletiva contra as desigualdades, de desafio contra os opressores e opressões.

Que suas palavras e suas lutas continuem reverberando nos brasileiros e em nossa Associação.