por Nalú Farenzena (presidente da Fineduca e pesquisadora do GT 05 da ANPEd)
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) foi criado pela Emenda à Constituição (EC) n. 53/2006, para vigorar por 14 anos, de 2007 a 2020. Veio a substituir outro instrumento, de escopo mais restrito, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), vigente de 1998 a 2006 e, por isso, se diz que temos mais de 20 anos da “política de fundos” na educação brasileira. O Fundeb tem natureza contábil, é mecanismo redistributivo de recursos e tem como objetivos manter e desenvolver a educação básica pública e valorizar os trabalhadores da educação, incluindo sua condigna remuneração. De modo implícito, visa também promover maior aproximação na disponibilidade de recursos entre os entes subnacionais da Federação brasileira – estados, municípios e Distrito Federal.
Na prática, são 26 fundos estaduais e o do Distrito Federal. Em cada Fundo estadual há contribuição periódica do governo estadual e das prefeituras, oriunda de uma proporção significativa dos recursos da receita resultante de impostos vinculada à manutenção e desenvolvimento do ensino. A proporção de recursos a ser destinada a cada ente é dada por um coeficiente, sendo este o resultado da divisão das matrículas de cada rede pelo total de matrículas, havendo ponderações para estas matrículas (por etapas, modalidades e certas situações de oferta). Há também a complementação da União – que deve corresponder a, no mínimo, 10% dos recursos de contribuição dos governos subnacionais –, destinada a fundos estaduais cujos recursos próprios não permitem atingir o valor mínimo nacional por aluno, fixado a cada ano.
O Fundeb teve implantação gradativa, tornando-se pleno em 2010, com o cômputo de todas as matrículas e todos os recursos. Com o início de sua vigência, houve um movimento crescente de aproximação na capacidade de financiamento da educação entre os estados brasileiros e no interior de cada estado. A valores constantes de 2018 (pelo índice INPC), o volume total de recursos apresentou a seguinte configuração: no período 2007-2014, aumentou ano a ano; em 2015 e 2016, houve queda, devido à recessão econômica do país – foram 160,2 bilhões de reais em 2014, 150,92 bilhões em 2015 e 149,64 em 2016; em 2017 e 2018, uma alta, mas sem chegar ao patamar de 2014 – 151,8 e 157,2 bilhões de reais, respectivamente. A complementação da União acompanhou este movimento: R$ 12,6 bilhões em 2010, R$ 14,6 bilhões em 2014; R$ 13,7 bilhões em 2015 e 14,3 bilhões de reais em 2018. No período, dez estados foram beneficiados com a complementação, sendo nove em 2018 e 2019.
Com a progressividade nos valores da complementação da União, de 2007 a 2010, juntamente com o decréscimo no número de matrículas, os valores mínimos por aluno de âmbito nacional (anos iniciais do ensino fundamental urbano), após o ajuste anual, foram os seguintes (em valores constantes de 2018): R$ 1.775,06 em 2007, R$ 2.434,48, em 2010, R$ 3.064,88 em 2013, R$ 3.092,85 em 2016 e R$ 3.238,76 em 2018. Houve maior aproximação entre o valor mínimo por aluno nacional e os valores por aluno dos estados que não recebem complementação. Para ilustrar, cabe observar que, em 2007, havia diferenças de mais de 80% entre o valor mínimo nacional e o valor mínimo de oito estados; em 2018, o valor mínimo por aluno foi maior que 30% do mínimo nacional em apenas dois estados.
Desde sua aprovação, o Fundeb permaneceu na agenda governamental, sob diversos aspectos, alguns a seguir destacados. Um ponto é a definição das ponderações de matrículas, pois o reflexo do custo efetivo das etapas, modalidades e situações de oferta nas ponderações fez parte das reivindicações de estados e municípios e da pactuação interfederativa referente a este assunto. A contagem das matrículas da rede particular de ensino e o uso de recursos nesta rede também se fez presente na agenda governamental, representando demandas em que se imbricam, entre outros, interesses de governos e de mantenedoras de instituições privadas. A relação entre o Fundeb e o Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) foi tema recorrente de debates, uma vez que a definição do reajuste anual do Piso deve observar a variação do valor mínimo nacional por aluno do Fundeb.
O estabelecimento de novos parâmetros para a formação de fundos, ou para o financiamento da educação em geral, bem como para a distribuição e redistribuição dos recursos, é item central da agenda de deliberação da política educacional do país. Em relação ao Fundeb, vem sendo discutida a sua implantação em caráter permanente, com a apresentação de propostas de emenda à Constituição para tal. Neste cenário, o custo aluno qualidade inicial (CAQi) e o custo aluno qualidade (CAQ), previstos no Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 (Lei n. 13.005/2014), são propostas fortes e que representam uma possibilidade de concretizar aspirações de equidade substantiva na capacidade de financiamento da educação dos estados e dos municípios, por meio dos seus recursos e de recursos federais.
Em 2015, foi protocolada na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 15/2015, a qual, entre outros preceitos, propugna a criação do Fundeb como dispositivo permanente, por meio da inserção do art. 212-A na Constituição da República. Duas proposições tramitam, desde 2019, no Senado Federal, porém, a PEC n. 15/2015 é a que acumulou mais discussão. Ocorreu, na 55ª e 56ª legislaturas, um número considerável de audiências públicas e debates, a apresentação de minutas de substitutivos pela Relatora da Comissão Especial, Deputada Dorinha Seabra Rezende, e de Substitutivo, em duas versões, de 18 de fevereiro e de 03 de março de 2020.
O tópico que tem merecido mais atenção diz respeito à complementação da União no Fundeb reformulado. Em sua redação original, a PEC n. 15/2015 mantém o mesmo patamar atual: a complementação deve corresponder a, pelo menos, 10% da contribuição dos governos subnacionais. Uma das minutas de substitutivo, de setembro de 2019, propunha ampliar a complementação para 40% dos recursos dos estados e municípios, indicando novos critérios de distribuição. No Substitutivo de 03 de março de 2020, a complementação está estabelecida no patamar mínimo de 20%, com autorização de uso dos recursos da parcela federal do salário-educação. Com o uso desta fonte, os novos recursos da complementação não dobram, de fato, a assistência financeira da União, pois ficam a descoberto, ou incertos em relação à manutenção de sua cobertura atual, programas como o de Alimentação Escolar (Pnae), Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Livro Didático (PNLD) e Transporte do Escolar (Pnate).
Remeto à leitura de documentos produzidos após a publicação do Substitutivo de 18 de fevereiro, dos quais destaco os seguintes pontos de defesa: o aumento significativo dos recursos de complementação da União, a fim de garantir a implementação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ) até 2024, nos termos do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024, Lei nº 13.005/2014); a exclusão do salário-educação como fonte da complementação da União ao Fundeb; composições e critérios na distribuição da complementação da União; a exclusividade do Fundeb para a educação básica pública.
Os documentos a que faço referência, pela sequência temporal em que foram publicizados, entre fevereiro e março de 2020 são: da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha), o Posicionamento Público
“O Brasil está distante de um novo Fundeb capaz de consagrar o direito à educação” (https://campanha.org.br/noticias/2020/02/20/o-brasil-esta-distante-de-um-novo-fundeb-capaz-de-consagrar-o-direito-educacao/); da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), a Manifestação, intitulada “Por um Fundeb mais justo e com maior compromisso da União” (Fineduca_Nota_Por um Fundeb mais justo), com apoio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha) e do Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes); a Nota Técnica da Campanha “Sugestões para o estabelecimento de um Fundeb capaz de colaborar com a consagração do direito à educação” (Acesse a íntegra da nota técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.).
A garantia de continuidade do Fundeb é medida urgente, uma vez que se esgota em breve o seu período de vigência. No debate de sua reformulação, em curso, o contexto político é marcado por uma hegemonia em que se mesclam a direita neoconservadora e a ultraliberal. Condições adversas, muito adversas, em que nos cabe defender com firmeza a causa do direito à educação e do financiamento justo desta educação. O que está em jogo são o presente e o futuro de crianças, adultos e jovens, pois neles interfere a efetividade ou não da garantia da igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola e de padrões de qualidade na educação.
Nalú Farenzena
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)