Entrevista com Rosana Medeiros de Oliveira (UnB) |Descolonizar os livros didáticos: raça, gênero e colonialidade nos livros de educação do campo | Artigo RBE n°68

 

Rosana Medeiros de Oliveira (UnB) é autora do artigo "Descolonizar os livros didáticos: raça, gênero e colonialidade nos livros de educação do campo" (clique aqui para ler), destaque da edição n°68 da Revista Brasileira de Educação (RBE) da ANPEd.  Confira entrevista cedida ao portal.

 

 

 

O Programa Nacional dos Livros Didáticos (PNLD) de educação no campo funciona a partir de um edital público que convoca editores para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas. Quais seriam medidas para descolonizar esses livros didáticos?

Em primeiro lugar, pesquisando gênero e raça nos recentes livros didáticos do PNLD, não apenas nos de educação do campo, percebi que há uma retórica politicamente correta amplamente difundida nos livros, que parece ser a resposta simplificadora das editoras às demandas dos editais do PNLD (dos últimos anos) sobre a necessidade de abordar questões de gênero, homofobia e racismo. Portanto, em boa parte dos livros há uma "correção" vocabular e imagética, mas sem uma consistente transformação da episteme. Ou seja, não há realmente uma política anti-discriminatória nos livros. As editoras tentam não “errar” (dadas as exigências dos editais), inserindo pessoas não brancas nas imagens, ou apresentando homens em atividades reputadas como femininas, ou em discursos sobre respeito à diferença, mas esse polimento é superficial e o racismo, o sexismo, a colonialidade vazam… Há um pano de fundo normativo, branco, hétero, ocidental e patriarcal que não é questionado, assim como imagens e discursos coloniais, racistas, heteronormativos. Talvez esse é o problema central tanto no que diz respeito à descolonização dos livros, quanto às questões de gênero e raça. Em uma agenda anti-discriminatória não é suficiente apenas não “errar” – com graves narrativas e imagens coloniais, homofóbicas, sexistas e racistas –, é necessário mostrar que as vidas das pessoas do campo, não-brancas, das mulheres e de LGBT existem, e que são vidas dignas, vidas possíveis, mostrar outros saberes como válidos, mostrar a rapina euro-ocidental-capitalista de diversos saberes tradicionais, assim como relativizar os saberes euro-ocidentais. Também não se trata de ensinar a respeitar uma diferença em abstrato (como fazem diversos livros), mas apontar para a existência e valor das vidas que estão fora da hegemonia euro-colonial, hetero-patriarcal e da branquitude. Ou seja, a estratégia politicamente correta é uma resposta esvaziada e simplificadora às demandas dos editais. Entendo também que os editais podem ser mais incisivos, e que uma política declaradamente anti-discriminatória precisaria ser adotada pelo MEC. É claro que a própria existência de um edital do PNLD de educação do campo é uma grande conquista política. Os editais do MEC são instrumentos fundamentais nesse processo, pois apontam as diretrizes para seleção das obras. Mas para uma real transformação dos livros seria preciso que o MEC adotasse uma política claramente anti-discriminatória, que desse orientações às editoras sobre a necessidade de uma real transformação na retórica dos livros didáticos (tal possibilidade parece cada vez mais distante dados os enormes retrocessos políticos dos últimos meses, com o governo do PMDB). E não se trata de uma revisão por especialistas, o que seria absolutamente insuficiente, pois no máximo conseguiria criar uma linguagem politicamente correta. O que é necessário é uma consistência discursiva e imagética, o que demandaria que os livros fossem realmente extensivas obras coletivas, de grandes equipes interdisciplinares, e absolutamente atentas para as questões da colonialidade, do racismo, do sexismo.

Outro ponto é que os livros didáticos têm sido tratados (desde pesquisadorxs, até as editoras) como obras menores, desvalorizadas socialmente como obras de pouco valor. O status do livro escolar como livro menor, carrega implicações na sua "gramática", no seu modo de apresentação e estruturação. Há uma suposição da necessidade de uma simplificação pedagógica que é na verdade empobrecedora tanto dos universos imagéticos quanto dos modos de narração do mundo, da vida, da experiência. No mercado editorial vemos muitos livros de qualidade vendidos como literatura infanto-juvenil, mas nos livros didáticos de ensino fundamental, tanto as imagens, desenhos e fotografias quanto textos estão presos em clichês pedagógicos infantilizantes, ou em simplificações empobrecedoras. Enfim, seria importante que os livros fossem obras da mais absoluta pesquisa e cuidado na produção, envolvendo muito trabalho, muita pesquisa, linguagem cuidada (aqui não me refiro a gramática ou a linguagem formal), visualidade rica e diversa (sem empobrecer as possibilidades de representação visual-imagética em clichês escolarizantes da /para infância).

 

A partir da sua pesquisa com os livros do PNLD de educação no campo, você encontrou obras didáticas que seriam referência no processo de problematização da visão eurocêntrica e colonial? Quais?

Não encontrei nenhuma obra. Mas na minha pesquisa sobre educação do campo analisei apenas o conjunto de livros aprovados pelo primeiro edital do PNLD de educação do campo, que saiu no triênio 2013-2015. Ou seja, não tive contato com outros livros didáticos que tivessem esse foco.

 

As patrulhas ideológicas estão ganhando força no Brasil. Uma das evidências é o crescimento do grupo denominado Escola Sem Partido. De que forma a ação desse e de outros grupos de controle do pensamento e da prática dos professores afeta a luta dos movimentos de educação do campo para descolonizar o pensamento?

Em primeiro lugar, a Escola Sem Partido é um movimento com uma forte agenda política de direita. Para compreendê-lo melhor,  recomendo o trabalho do professor Fernando de Araújo Penna, que é bastante esclarecedor sobre a questão, tanto por meio das suas pesquisas e mapeamentos das ações e pessoas envolvidas no Escola Sem Partido, quanto em sua análise sobre a matéria dos projetos de lei e sobre as auto-descrições do movimento. Mas de forma geral, os discursos da Escola Sem Partido se respaldam em um positivismo disseminado e profundamente ligado à uma certa concepção do que é conhecimento e do que é escolarização. Utilizando o falacioso discurso de que seria possível uma pura transmissão do conhecimento, sem orientação, sem política, o projeto de lei federal da Escola Sem Partido se ancora em um imaginário positivista sobre a escola e sobre o conhecimento para silenciar e patrulhar professoras/es e materiais didáticos, especialmente no que diz respeito às questões de gênero. No projeto de lei federal, vemos que há uma clara tentativa de silenciar o incipiente movimento de discussão da homofobia e das violências de gênero nos espaços escolares. Talvez este seja o ponto nevrálgico do projeto de lei federal: impedir que se discutam os problemas de gênero nas escolas. É uma ação das direitas liberais e cristãs que se mantém em um abjeto patriarcado-homofóbico – que se manifesta nesse combate a uma suposta “ideologia de gênero”. E claro, o projeto também atinge outras formas de apresentar o conhecimento nas escolas, pois o saber que não esconde suas orientações, e que se afirma como uma postura política, será objeto de perseguição, de patrulhamento. As lutas pela descolonização do pensamento envolvem a articulação política das vozes dissidentes, das vozes silenciadas pela hegemonia euro-ocidental. Ou seja, a descolonização do pensamento e da sensibilidade anda ao lado dos movimentos sociais, da luta política pela pluralização de saberes e modos de vida, e portanto, seria provavelmente taxada como “ideológica”, nesta falsa polarização criada pela Escola sem Partido, entre neutralidade e ideologia/doutrinação.

 

Você percebe a necessidade de descolonizar livros didáticos em outras áreas que não relacionadas com a educação no campo? Perguntamos isso porque a representação do homem e da mulher do campo podem ser também alvo desse mesmo efeito colonial em diferentes materiais didáticos.

Sim, é preciso descolonizar não apenas os livros didáticos de educação do campo. Entretanto, estes são os materiais didáticos em que se poderia esperar um outro horizonte epistêmico. O primeiro edital do PNLD de educação do campo difere de outros editais do PNLD, pois é mais atento às dimensões de uma educação anti-racista, anti-sexista, não-homofóbica, para as subalternizações advindas da hierarquias urbano X rural, para as expropriações capitalistas dos recursos e dos modos de existência, etc. Portanto, de certa forma, a expectativa sobre os livros de educação do campo era mais alta no que diz respeito à descolonização dos saberes e modos de vida. Mas a resposta das editoras tem sido uma pasteurização politicamente correta – nos livros de educação do campo e em outros livros do PNLD – que impede uma real transformação dos discursos e visualidades, e que mascara o pano de fundo normativo e naturalizado da ordem colonial, hetero-patriarcal e racista.