A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior divulgou o resultado da edição 2020 do Prêmio Capes de Tese. Na área de Educação, ganhou menção honrosa o trabalho "A Desfeminização do Magistério: uma Análise da Literatura Pedagógica Brasileira da Segunda Metade do Século XX". A pesquisa é de autoria de Renata Porcher Scherer (Unisinos), com orientação de Maria Cláudia Dal'Igna, ambas pesquisadoras do GT 23 da ANPEd (Gênero, Sexualidade e Educação). Dal'Igna ressalta a contribuição do PPGE da Unisinos e igualmente o espaço formativo proporcionado pelos GTs da ANPEd. "Minha formação como aluna e pesquisadora também foi/é produzida no âmbito do nosso GT, o qual acompanho desde sua criação. A primeira vez que estive na ANPEd ainda era aluna ingressante do mestrado. Sempre digo a cada reunião nacional e regional que este pode ser um espaço potente para a formação de pesquisadorxs, para a construção de conhecimentos com relevância social e educacional e para a criação de outros modos de existência, mais justos e solidários." A orientadora também "acredita que esta menção honrosa atribuída a uma tese que investiga as relações entre docência e gênero no campo da Educação, nestes tempos de incitação ao ódio e de recidiva de violências, de interdições e de exclusões, pode representar um ato de resistência que permite mostrar como pesquisa e formação articulam-se de maneira potente e produtiva."
O portal ANPEd conversou com Renata Porcher Scherer, que é professora de Atendimento Educacional Especializado (Câmpus Camaquã) e professora no Mestrado Profissional em Ensino Profissional e Tecnológico em Rede. Confira:
O que a motivou a pesquisar este tema e o que a surpreendeu nos resultados obtidos?
O meu interesse pela docência brasileira como objeto de pesquisa está intrinsicamente ligado com a minha atuação de mais de uma década como docente da Educação Básica, sendo difícil de mapear uma motivação específica para a realização dessa empreitada acadêmica. Wright Mills, em sua conhecida obra sobre o artesanato intelectual, nos ensinou que o conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira, sendo necessário utilizarmos nossas experiências de vida em nosso trabalho intelectual. Nesse sentido, posso afirmar que essa pesquisa foi constituída por muitas inquietações produzidas no interior da escola e da minha relação com outras professoras. A interrogação que orientou a pesquisa consistiu em compreender porque os retratos da docência brasileira seguem sendo constituídos ora em torno da vocação e da maternidade, ora em saberes técnicos e profissionais. O delineamento metodológico definiu-se quando, em meus estudos sobre o tema, deparei-me com a obra “Professoras de Amanhã” escrita pela pesquisadora Aparecida Joly Gouveia na década de 1960, na qual a autora investigou as relações entre a escolha pelo magistério e o grau de tradicionalismo apresentado pelas futuras normalistas. A partir dessa obra compreendi que seria possível mapear uma regularidade histórica sobre a docência brasileira a partir da literatura pedagógica produzida no nosso país. Assim, após um exaustivo trabalho de mapeamento das obras brasileiras sobre a docência produzidas na segunda metade do século XX, selecionei nove obras que se constituíram como o corpus empírico da minha tese. A ferramenta teórica colocada em ação para desenvolver a análise do material empírico foi o conceito de gênero. O principal achado da pesquisa foi o processo de desfeminização do magistério brasileiro no qual busquei mostrar como os saberes técnicos e profissionais foram afirmados a partir de uma negação da absolutização do afeto e de uma afirmação do compromisso político. Portanto, a tese da desfeminização não se sustentou por uma diminuição das mulheres no exercício da docência, especialmente primária, mas buscou mostrar como a literatura pedagógica brasileira, ao defender de um lado a competência técnica e, de outro, o compromisso político, buscou apontar para a importância de uma docência que não tivesse em sua natureza (não carregue em si) um a priori feminino.
Como associada, as reuniões nacionais e regionais da ANPEd colaboraram de alguma forma para o aprofundamento e interlocução da pesquisa?
Em 2016, meu primeiro ano do doutorado, apresentei na Reunião da Região Sul, realizada na Universidade Federal do Paraná (UFPR), os delineamentos iniciais da minha pesquisa no GT 23: Gênero, sexualidade e Educação. Esse exercício de compartilhamento com colegas pesquisadores foi de extrema importância para a construção argumentativa que se estabeleceu a partir daí. Nos anos de 2017 e 2018 apresentei resultados parciais mais maduros na Reunião Nacional realizada na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e na Reunião da Região Sul realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No ano de 2019 participei da Reunião Nacional realizada na Universidade Federal Fluminense (UFF) apresentando junto com a colega Miriã Zimmermann articulações teóricas entre alguns desdobramentos da minha pesquisa já concluída e da pesquisa dela em fase de desenvolvimento. Recupero esses momentos para destacar o quanto o exercício intelectual de compor hipóteses - mesmo que iniciais - e apresentá-las para a comunidade acadêmica foram momentos ímpares para a minha trajetória como pesquisadora. Importante destacar ainda que debater com outros colegas pós-graduandos e conhecer suas pesquisas e também com professoras e professores de diferentes instituições, muitos destes minhas referências teóricas, permitiram um olhar mais alargado e diversificado para o campo. Destaco, por fim, o clima sempre alegre e acolhedor dos encontros do GT 23 que, mesmo sem nunca perder o rigor acadêmico e o compromisso científico, tornaram essa trajetória menos solitária e mais afetuosa.
Como se sentiu recebendo essa premiação da Capes?
Receber o reconhecimento de uma importante instituição foi uma imensa alegria. Logo que recebi a notícia o primeiro exercício foi quase nostálgico de relembrar os momentos importantes da trajetória percorrida e que permitiram a construção dessa pesquisa. Mas, como aprendi com os escritos da pensadora Judith Butler, sempre que o “eu” tenta fazer um relato de si mesmo, “pode começar consigo, mas descobrirá que esse ‘si mesmo’ já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração”. Assim, nesse exercício de retrospectiva, mais do que momentos lembrei de pessoas importantes nessa trajetória. Sou muito grata ao CNPQ pela bolsa que recebi para cursar o Mestrado e a CAPES/PROEX pela bolsa para cursar o doutorado. Também expresso minha gratidão ao PPG em Educação da Unisinos, no qual cursei o Mestrado e o Doutorado, e que me permitiu o amadurecimento teórico para a escrita da presente pesquisa. Foram anos intensos de muito estudo, dedicação e alegria. Agradeço aos professores e professoras do PPGEdu pela formação qualificada que recebi e destaco a minha orientadora professora Maria Cláudia Dal'Igna que me acompanhou nesses seis anos de percurso formativo e que sempre me orientou com rigor e afeto. Agradeço também aos meus colegas, especialmente ao nosso grupo de orientação com o qual compartilhei os desafios da pesquisa e da pós-graduação. Ao responder a essa pergunta me dou conta que o sentimento ao receber a notícia da menção honrosa foi de gratidão por tantas pessoas e momentos importantes vividos nessa trajetória.
Na relação de teses premiadas, percebemos a temática de gênero também em outros trabalhos selecionados, em áreas como Psicologia, História e Administração Pública. De que forma a questão de gênero emerge no contexto atual e qual a importância dela ser abordada por diferentes campos do conhecimento?
Ao analisar a lista dos trabalhos premiados foi uma grata surpresa observar como o recorte de gênero e sexualidade apareceu em vários trabalhos, como destacado na questão. O atual contexto brasileiro – marcado pelo fortalecimento de uma agenda política conservadora e os frequentes ataques a pesquisadores que trabalham com essas temáticas - poderia ter produzido um enfraquecimento desses debates na instância cientifica; mas, ao contrário, mesmo com tanto recrudescimento, vivido nos últimos anos, os estudos de gênero e sexualidade seguem apresentando um crescimento significativo e sendo reconhecidos em importantes instâncias, como foi o caso dessa premiação. Tais estudos nos mostram como gênero e sexualidade são importantes ferramentas para o nosso agir político no século XXI. Os números de violência contra mulheres e comunidade LGBTI, mostrados em estatísticas recentes e reificados por atores políticos e sociais que cada vez ganham mais espaço na mídia, também servem de alerta para que possamos como comunidade cientifica nos unirmos e lutarmos por uma sociedade mais justa, democrática e sem violência de qualquer tipo.