O Portal da ANPEd dá inicio a uma série de entrevistas com a temática "Conquistas em Risco", convidando pesquisadores de renome a avaliarem o contexto preocupante pelo qual passa a Educação Brasileira tanto no que se refere a cortes em investimentos e programas federais, quanto à inoperância do legislativo e ofensivas de projetos conservadores e neoliberais que colocam em xeque importantes avanços da última década.
A primeira entrevistada é Mônica Ribeiro (UFPR), que analisa como esse contexto incorre no Ensino Médio, tema no qual é especialista. Em sua fala, a professora aborda a ainda frágil condição de garantia da oferta do Ensino Médio, o impacto de cortes no Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI) e no Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio (PNEM), assim como o atraso de mais de dois anos do Plenário da Câmara na votação de projetos para a área, situação agravada em 2015 e 2016 com a praticamente paralisia do congresso em torno do impeachment.
Foto: Isabelle Araújo-ACS/MEC
Num contexto de conquistas em risco (seja por cortes em investimentos e programas, seja por ofensivas conservadoras no congresso e sociedade, investidas de empresários e fundações), como é possível analisar a questão do Ensino Médio?
Para responder à pergunta considero importante ter como ponto de partida alguns indicadores da oferta do Ensino Médio e algumas determinações legais.
O Ensino Médio somente muito recentemente vem alçando a condição de ser um direito. Sob o aspecto legal, ainda não é considerado etapa escolar obrigatória. Tivemos um avanço por meio de Emenda Constitucional EC 59/2009 que torna obrigatória a faixa etária dos 15 aos 17 anos. Essa obrigatoriedade passaria a valer já a partir de 2016. Isso não significa, porém, que todas os estudantes dessa idade estejam obrigatoriamente matriculados no Ensino Médio. E isso se deve a razões que ao longo da história foram identificando o Ensino Médio como uma etapa escolar que não era para todos.
O Censo Demográfico (IBGE, 2010) totalizou 10.357.874 de jovens entre 15 e 17 anos. Destes, pouco mais 50% estavam matriculados no Ensino Médio. Mais de 3 milhões se encontravam ainda no Ensino Fundamental e aproximadamente um milhão estava totalmente fora da escola.
Em se tratando das conquistas, a Meta 3 do Plano Nacional de Educação (PNE) expressa o compromisso com a ampliação do direito à educação referendando o que está disposto na Constituição Federal (CF), isto é, que 100% da faixa etária de 15 a 17 anos esteja matriculada já em 2016. Dificilmente cumpriremos a determinação constitucional. A meta estabelecida para o final da vigência do PNE em 2014 é de que 85% dos jovens de 15 a 17 anos do País estejam cursando a etapa considerada adequada, isto é, o Ensino Médio.
Em que pese o disposto na CF e no PNE 2014-2024 poderem ser considerados avanços, o são enquanto promessa. Somente quando efetivadas as metas estabelecidas e se efetive o direito proclamado em Lei é que poderemos afirmar que houve, de fato, avanços. Por essa razão é que permanece no horizonte a preocupação de que não haja retrocessos, que as conquistas no sentido do enunciado do direito e sua positivação em Lei sigam acompanhadas de ações efetivas no sentido da garantia do acesso, da permanência e da conclusão, bem como na melhoria das condições da oferta, o que inclui mudanças na formação dos professores, nas condições em que se realiza o trabalho docente, nos salários, nas condições materiais das escolas, etc..
Os cortes no orçamento, especialmente os da União, colocam em risco várias ações que atuam na direção da ampliação da oferta e melhoria da qualidade. No caso do Ensino Médio eu citaria especialmente o Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI) e o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio (PNEM), ambos programas que se realizam mediante adesão das redes estaduais e com previsão de financiamento por parte do Ministério da Educação. São ações indutoras, no primeiro caso, de mudanças nas formas de organização pedagógica e curricular das escolas e, no segundo, da formação continuada dos professores tendo por referência o que está disposto nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais pelo Ensino Médio. A interrupção desses programas pode significar tanto um retrocesso com relação às experiências iniciadas pelas escolas, quanto uma fragilização de uma forma de gestão da educação pública em que os entes federados assumem conjuntamente a responsabilidade por determinadas ações.
Do ponto de vista da reação conservadora vale lembrar que o legislativo federal tem feito muito pouco no sentido da ampliação do direito à educação e da garantia de que o que já está determinado em Lei seja de fato cumprido. Na questão a seguir eu darei um exemplo do quanto o legislativo federal, conquanto não ajude, por vezes ainda tenta atrapalhar.
Qual a importância das Diretrizes Curriculares Nacionais, uma perspectiva de formação integral e de preocupação com a juventude?
Foi por meio do esforço dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada, dentre eles a ANPEd, que se conseguiu produzir uma norma que expressasse algum avanço para a última etapa da educação básica, ao formular princípios e proposições com vistas a orientar a organização pedagógica e curricular do Ensino Médio. Esses princípios e proposições encontram-se hoje escritos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) exaradas pelo Conselho Nacional de Educação.
Dentre as proposições eu destacaria exatamente o que está mencionado na pergunta. As atuais DCNEM reconhecem que o principal referente para pensar as políticas e as práticas na última etapa da educação básica são justamente os/as jovens que frequentam as nossas escolas. São essas várias “juventudes” os interlocutores privilegiados ao dialogarmos sobre os espaços e tempos da formação, sobre o conhecimento escolar, sobre as formas de avaliação, etc... e, tendo em conta esse referente, a sinalização de um projeto formativo que considera o ser humano nas suas múltiplas dimensões bem como a sua condição histórico-cultural, o que ali se chamou de “formação humana integral”.
A título de exemplo, e para evidenciar também o quanto os sentidos e finalidades do Ensino Médio encontram-se em disputa, eu retomo aqui o enfrentamento que fizemos com relação ao Projeto de Lei da Câmara dos Deputados sobre a reformulação do Ensino Médio, o PL 6840/2013. Esse PL, vejam, que data de 2013, tendo sido formulado em uma comissão especial num momento em que já tínhamos as novas diretrizes, traz proposições que vão exatamente no sentido contrário ao das DCNEM. Por exemplo, as diretrizes se esforçam na direção de um currículo integrado, isto é, que logre enfrentar a excessiva fragmentação e hierarquização do conhecimento, pois, ainda que preserve a disposição dos componentes curriculares em disciplinas sinaliza para outras possibilidades de arranjos curriculares a elas articuladas ou integradas. As DCNEM tomam como princípio que seja assegurada a todos e todas, indistintamente, a mesma base formativa. Já o PL 6840/13 propõe um fatiamento do currículo de modo a que os/as estudantes optem por uma ou outra área do conhecimento. Como alternativa a uma das áreas, o PL propunha ainda como escolha uma formação profissional. Ainda que não se deseje uma padronização ou uniformização da formação dos/das jovens (como por exemplo por meio de uma lista de objetivos como consta do documento intitulado Base Nacional Comum Curricular), uma base formativa comum, em se tratando da educação básica, é desejável, inclusive como requisito para o enfrentamento das desigualdades. Esta e outras propostas do PL 6840/13 foram alvo de críticas das quais resultou a criação de uma mobilização por parte de várias entidades, dentre elas a ANPED, que culminou com a criação do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio. Da intervenção desse movimento junto à Comissão Especial da Câmara foi possível produzir algumas alterações no Projeto de Lei, o que resultou em um Substitutivo que, ainda que não represente todo o avanço desejado, logrou sufocar os principais retrocessos.
É necessário mencionar, por fim, que a indicação da Comissão da Câmara, uma vez aprovado o Substitutivo em dezembro de 2014, era de que o PL fosse a plenário tão logo fosse retomada a agenda do legislativo federal. O ano de 2015 e parte de 2016, ao menos até a realização desta entrevista, tomaram o País de sobressalto diante da tentativa de impetrar um impeachment à Presidente da República. Passam-se dias, semanas e meses e a pauta da Câmara dos Deputados e de boa parte da sociedade brasileira está às voltas com um cenário que marcará a história como um dos momentos mais incertos dentre os que já passou nossa frágil democracia. Neste cenário, o Ensino Médio e o PL encontraram-se esquecidos, ao menos nos corredores da Câmara dos Deputados.
Como as pesquisas que você desenvolve apontam uma problemática em torno do tema?
Tenho o ensino médio como campo de pesquisa desde o meu mestrado. E lá se vão quase trinta anos. Houve um tempo em que o número de pesquisadores sobre o tema era considerável. Passamos por um arrefecimento e hoje vemos crescer o interesse pela temática. A ANPEd não possui um GT destinado às pesquisas sobre o Ensino Médio. Isso não quer dizer que elas não existam. Podemos encontrar pesquisas sobre o Ensino Médio nos vários GTs, sobretudo nos GTs 09 - Educação e Trabalho, 03 – Movimentos Sociais, Sujeitos e Processos Educativos e 05 – Estado e Política Educacional.
Meu interesse já se voltou para a relação entre ensino médio e formação profissional, para as relações entre juventude(s) e ensino médio, para a formulação de políticas curriculares e, em todos esses casos, a abordagem privilegia o estudo das políticas educacionais para esta etapa da educação básica. Me interessa também os processos de avaliação dessas políticas. Atualmente me ocupo em compreender as ações do legislativo federal no sentido de garantir e viabilizar o direito à educação para os jovens que estão em faixa etária escolar obrigatória (15 a 17 anos) e as tendências no sentido da universalização do Ensino Médio.