Entrevista com Luiz Dourado (UFG) sobre propostas de alterações nas Diretrizes 02/2015 para Formação de Professores

Você foi relator da Resolução 2/2015 do Conselho Nacional de Educação (CNE), que estabeleceu as Diretrizes Curriculares para Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica. Hoje há um debate no CNE para alterar desta resolução. Na fundamentação da proposta de novo parecer, o CNE sustenta que a formação de professores se mantém distante da realidade das escolas e dos desafios do ensino. Esta é uma crítica que se aplica à resolução 02/2015 ou está se referindo ao contexto anterior?

Os movimentos direcionados a alterar a resolução se veiculam a movimentos no campo de alterações nas políticas educacionais, sobretudo do governo federal após o impeachment da presidenta Dilma em 2016. Num cenário de intensificação de políticas de ajustes diversas, incluindo a aprovação da emenda constitucional 95/2016, a recomposição do Conselho Nacional de Educação, novos marcos regulatórios e de financiamento para educação, entre outros.

Nesse cenário, especificamente na área educacional, a reforma do ensino médio é uma das sinalizações das mudanças na condução das políticas para educação. No âmbito do Conselho Nacional de Educação, a aprovação da Base Nacional Comum Curricular para educação infantil, ensino fundamental e para ensino médio, e também de novas diretrizes para o ensino médio, aliadas a outras alterações nos marcos regulatórios para a educação básica e superior, vinculam-se a esse novo momento. Trata-se de um horizonte em que há alteração nas concepções mesmo de educação, de escolarização, de formação, etc. 

É importante destacar que a resolução 2/2015 é resultado de trabalho colaborativo de profundo engajamento do CNE, contando com a participação de vários atores coletivos governamentais e não governamentais, tais como Secretaria do MEC, Capes, Inep, profissionais da educação, entidades acadêmicas, sindicais, movimentos sociais, entre outros. E ela se estrutura como marco importante no campo, com estreita vinculação às deliberações da Conferência Nacional da Educação Básica, Conferência Nacional de Educação 2010/2014 e ao Plano Nacional de Educação aprovado em 2014, especialmente às metas 15 a 18 que dizem respeito à valorização dos profissionais. Além disso, ela apresenta uma concepção de docência, dinâmicas formativas para formação inicial e continuada que avançam, sinalizando a perspectiva de valorização dos profissionais da educação.

 

 

Como você avalia o tempo de implementação da Resolução 2/2015 e a pertinência de alterações neste momento?

É importante também destacar que o documento que está sendo discutido agora pelo Conselho Nacional de Educação e o diagnóstico feito nesse documento não se aplicam à resolução 2/2015, mesmo porque ela ainda não teve um ciclo avaliativo após a aprovação. E esta resolução também explicita claramente princípios formativos que visam à articulação teoria e prática, defesa de uma sólida base teórico-pedagógica interdisciplinar que reflita a especificidade da formação docente, a articulação formação inicial e continuada, a articulação entre as instituições formadoras e as instituições de educação básica, entre outros. A crítica do CNE a despeito de ter sido feita a toda formação da educação superior não se coaduna também com a realidade das universidades, especialmente das universidades públicas. Eu acho que é um diagnóstico que precisa ser aprimorado, numa perspectiva de compreender quais são mesmo as sinalizações para o campo e, nesse sentido, não podemos perder de vista que grande parte da formação de professores se efetiva em instituições isoladas privadas, e aí se encontra realmente um cenário em que deve ter todo um cuidado das políticas públicas, no sentido de melhoria dos processos formativos. Então não se trata de uma negação da resolução 2/2015, até porque esta resolução dá sinalizações e diretrizes muito claras no sentido de aprimoramento da formação inicial e continuada de professores. 

Com relação ao tempo de implementação e pertinência, eu destaco inicialmente que houver uma excelente receptividade para a resolução 2/2015, sobretudo pelas instituições públicas e confessionais, muitas IES. Muitas instituições de educação superior, sobretudo universidades, já aprovaram os projetos institucionais de formação, que pela resolução são os projetos institucionais o eixo de governança da proposta, projetos pedagógicos de curso, e avança na materialização da identidade dos cursos de formação. Outras IES estão com o processo em andamento. As avaliações são muito positivas. É importante, por outro lado, situar que parcela do setor privado, sobretudo o mercantil, vem resistindo às novas exigências da resolução 2/2015, envolvendo o próprio projeto institucional, a carga horária pras licenciaturas de 3200 horas, a carga horária da formação pedagógica da segunda licenciatura. Os limites que a resolução impõe, por exemplo, para a implementação da formação e a educação à distância, também questões relativas ao que a proposta traz de articulação de ensino, pesquisa e extensão, articulação com as IES de educação básica. Então este é um movimento que tem a ver com dada lógica no campo de um setor privado mercantil muitas vezes ligado ao capital financeiro. Eu acho intempestivo e injustificável a posição do conselho de rever uma resolução que foi aprovada, foi ratificada nos últimos anos pelo próprio Conselho Nacional e pelo MEC. Entendo que, a despeito das disputas de concepção, é fundamental efetivar a resolução 2/2015. Além do mais, essa situação, esses impasses criam insegurança jurídica e prejudicam a materialização das propostas, sobretudo nas instituições privadas, que respondem por mais de 60% da formação, porque, como eu disse, no setor público e comunitário há um avanço muito grande no sentido da implementação da resolução 2/2015. Além disso o documento base do CNE, a meu ver, retrocede nos avanços contidos na resolução 2/2015 ao naturalização a subordinação das diretrizes curriculares de formação à BNCC, assumindo deste modo uma concepção restrita e instrumental de docência muito articulada à prática numa perspectiva que segmenta conteúdos e metodologias ao fazer a alteração dos eixos formativos de forma prescritiva, ao entender que o locus da formação é a expressão da governança, ao enfatizar a questão  dos institutos ao invés de ter como eixo o que defende a resolução 2/2015 que é um projeto formativo proposto pelas IES, respeitando inclusive a autonomia dessas instituições e a construção mesmo de um projeto identitário próprio de cada instituição. 

Como você vê as condições dos cursos de EAD garantirem a qualidade da formação considerando a perspectiva da Resolução 2/2015?

A gente tem que situar que o Brasil vive uma expansão da educação à distância sem precedentes, sobretudo na formação de professores e, como constatado nos processos avaliativos, a maior parte dos cursos de baixíssima qualidade. Aliado a esse processo é importante dizer que houve esforços das universidades públicas e comunitárias demonstrando que o problema não está na educação à distância, mas no projeto pedagógico, nas condições objetivas de formação que envolvem acompanhamento permanente dos estudantes, laboratório, momentos presenciais, entre outros. Eu fui relator das diretrizes para educação à distância que sofreram alterações também nesse novo momento e acho que ali tem elementos fundamentais para essa afirmação. A resolução 2/2015, por não negligenciar os marcos regulatórios da educação e também por considerar esse diagnóstico de uma formação aligeirada por meio da EAD, define que a formação inicial de professores será ofertada preferencialmente de forma presencial, destacando ainda que deverá ser feita com elevado padrão acadêmico, científico, tecnológico e cultural e, ao mesmo tempo, não negligencia a necessidade de dinâmicas pedagógicas por meio do usos competentes das tecnologias de informação e conhecimento para o aprimoramento de prática pedagógica. Por outro lado, também a resolução não negligencia que já há hoje processos regulatórios que prevêem para educação superior o uso da parte do tempo formativo por meio da educação à distância e nos momentos presenciais. 

Um ponto central no debate para novas Diretrizes de Formação é a ideia de que a formação precisa se adequar a lógica de competência da BNCC. Como você avalia esta relação?

De fato, a proposição do CNE de novas diretrizes da formação tem por centralidade a adequação à BNCC e ao conjunto de suas competências. Eu entendo que essa concepção de educação reduz a formação aos objetivos, competências e conteúdos da BNCC e, nesta direção, apresenta uma outra concepção de educação, formação e docência. Além disso o documento do CNE, como já destacado pelas entidades do campo e em nota da ANPEd, assume um tom prescritivo e instrumental com ênfase no saber fazer, quer dizer, na prática em detrimento de uma concepção ampla de formação que decorra de um projeto institucional construído colegiadamente com ampla participação envolvendo a educação básica e a educação superior e projeto esse que seja marcado pela indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão. Então o que está em jogo de fato são concepções distintas de educação, de sociedade, de educação e de formação de professores. 

Quais desafios para política de formação de professores no Brasil contemporâneo?

Os desafios para as políticas de formação de professores no Brasil contemporâneo passam pela valorização dos profissionais, envolvendo a melhoria da formação inicial, formação continuada, salário, carreiras e condições de trabalho e saúde. Nesta direção é vital a materialização do Plano Nacional de Educação, da política nacional de formação da educação decorrente do PNE, por meio do decreto 8752/2016 e, obviamente, da resolução 2/2015 que define as diretrizes curriculares nacionais para formação inicial e continuada. Acho que esses são pontos fundamentais. De igual modo é preciso toda uma discussão no país em termos do financiamento da educação básica envolvendo o Fundeb permanentemente, a discussão de custo Aluno/Qualidade, a equiparação salarial dos professores, entre outros aspectos que estão pontuados, sinalizados no PNE. Então colocar o Plano Nacional de Educação como epicentro das políticas educativas é crucial e, obviamente, fazer valer as metas e estratégias do plano - dar especial ênfase, por exemplo, à ampliação dos percentuais do PIB pra educação nacional, de modo a fazer jus aos avanços que precisamos implementar na educação, especialmente no caso da educação básica e a universalização da educação básica obrigatória de 4 a 17 anos. 

Você estará em uma Sessão Conversa da 39a Reunião Nacional da ANPEd em Niterói. Qual a importância do encontro para debater temas como esse e qual sua expectativa para o evento de forma geral dado o contexto atual da educação no país?

Estarei participando da 39ª reunião Nacional da ANPEd e penso que o tema central é bastante instigante, importante no atual contexto. A ANPEd se propõe a discutir a educação pública e pesquisa: ataques, lutas e resistências, a partir de um conjunto de Grupos de Trabalho, de resultados de pesquisa. Entendo que essa reunião cumpre um papel extremamente importante ao articular os profissionais da educação, os estudantes, os pesquisadores nacionais e internacionais para discutir os rumos da educação pública e da pesquisa no mundo, especialmente na realidade brasileira, diagnosticando os retrocessos e os ataques vivenciados, que nesse caso brasileiro são muitos, inclusive, com cortes orçamentários, perspectiva de redução de bolsas, com ataques à pós graduação, mas ao mesmo tempo também para sinalizar as lutas e as resistências que as entidades, inclusive a ANPEd e os movimentos sociais vêm desenvolvendo na defesa intransigente de uma educação pública de qualidade, laica, democrática, de qualidade social para todos. Tais questões, ao meu ver, envolvem ainda uma defesa dessas entidades, da materialização do Plano Nacional de Educação, da revogação da emenda constitucional 95/2016, da efetiva garantia do redirecionamento do fundo público para o setor público, da defesa do Fundeb permanente, da defesa da resolução CNE Conselho Pleno 2/2015 como importante marco na formação inicial e continuada de professores, a defesa da educação superior, da pesquisa e da pós graduação brasileira, entre outras questões. Então trata-se de reafirmar o caráter público, laico, democrático do sistema educacional brasileiro. 

Por essas razões, a ANPEd, absolutamente engajada nas lutas em defesa da educação pública e gratuita como patrimônio da sociedade brasileira, também está articulada com o conjunto das entidades demandando ao Conselho Nacional de Educação a efetiva materialização da resolução Conselho Nacional Conselho Pleno 2/2015. E, portanto, o movimento que se faz nesse momento é para consolidar esse esforço, que mantém uma articulação muito concreta com as entidades do campo e que certamente impactam de uma maneira mais abrangente o processo formativo dos profissionais da educação numa dinâmica que apreende concepção, educação e ensino pela superação da fragmentação das políticas públicas e também pelo fortalecimento de um sistema nacional de educação sobre bases de cooperação e de colaboração entre os entes federados e sistemas educacionais. E não abre mão, portanto, dos preceitos constitucionais da liberdade de aprender, ensinar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte, o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, o respeito à liberdade e o apreço à tolerância, a valorização dos profissionais da educação, gestão democrática e a garantia de um padrão de qualidade, entre outras questões. São esses os pontos que penso em que estamos juntos e que essa Reunião Nacional da ANPEd certamente indicará novos rumos para as lutas e resistências que deveremos travar em prol mesmo da retomada do Estado democrático de direito no nosso país e das conquistas sociais, dentre elas o direito social à educação.