O Portal da ANPEd dá prosseguimento à série de entrevistas "Conquistas em Risco", desta vez ouvindo Luiz Antônio Cunha (professor Emérito da UFRJ). Pesquisador e coordenador do Observatório da Laicidade na Educação, Cunha aborda o histórico do conceito de laicidade nas escolas no país e analisa como a defesa de tal garantia encontra-se em constante risco, seja em proposições do legislativo (projeto de lei 309/2011, sobre a formação de professores para o ensino religioso nas escolas públicas ), seja em frentes do próprio governo federal, como a Base Nacional Comum.
Qual a importância do conceito da laicidade na educação pública? É possível identificar atualmente riscos a sua efetivação a partir de movimentos conservadores (seja no congresso nacional ou na própria sociedade)?
No Brasil, “país do carnaval”, a laicidade pode significar qualquer coisa, até mesmo uma espécie de condomínio religioso na utilização do Estado para a divulgação das crenças associadas, inclusive nas escolas públicas. Não foi com essa fantasia que a longa luta pelo ensino público laico se desenvolveu nas últimas décadas do período imperial e quase conquistou a vitória na República nascente. Laicidade foi entendida pelos liberais maçons Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, pelo positivista heterodoxo Benjamin Constant e pelos protestantes submetidos à dominação católica como a neutralidade do Estado diante da religião – de qualquer religião. Que elas fossem disseminadas livremente, mas sem o patrocínio nem o impedimento estatal, no âmbito familiar e no propriamente religioso. Em escolas, só nas confessionais.
Quando disse que a vitória foi quase conquistada, é porque ela foi inscrita na primeira Constituição republicana, mas as dos estados nem todas seguiam o disposto na federal: “será leigo [isto é, laico] o ensino nos estabelecimentos públicos”. Quando não o ignoravam, a prática política levava a acomodações com os grupos clericais católicos. Tudo em proveito da política eleitoral. Até que a Constituição de 1934 incorporou todas as demandas da Liga Eleitoral Católica, inclusive o ensino religioso formalmente facultativo nas escolas públicas.
O Manifesto dos Pìoneiros da Educação Nova, de 1932, alertou para os conflitos que a volta do ensino religioso podia provocar. Por isso defendeu as escolas públicas acima do “dogmatismo sectário”, que elas não fossem utilizadas como “instrumento de propaganda de seitas e doutrinas”. Não adiantou, e o resultado é o que vemos hoje: cada vez mais as escolas públicas são um campo de luta, nem sempre dissimulada, entre religiosos missionários e não religiosos; entre cristãos e afro-brasileiros; entre católicos e evangélicos. Tem gente que pretende superar isso com mais religião, uma canhestra doutrina não confessional, uma espécie de religião não religiosa. A solução é outra e existe há muito – a laicidade, que a má fé predominante identifica com irreligião ou ateísmo.
É preciso dizer em alto e bom som, sem medo de tabus, que ontem e hoje foi e é a Igreja Católica a única instituição religiosa que teve e tem questão fechada a respeito da presença da disciplina ensino religioso nas escolas públicas. Quando eram minorias, no tempo do Império e na República até a década de 1950, as Igrejas Protestantes defenderam a laicidade do ensino público destemidamente. Mesmo depois que seu crescimento exponencial, desde a década de 1960, aponta para o empate próximo entre o número de adeptos do catolicismo e de alguma confissão evangélica, a laicidade permanece dominante entre elas.
A audiência pública sobre o ensino religioso promovida pelo Supremo Tribunal Federal, em junho de 2015, foi eloquente a esse respeito. Os representantes da Igreja Católica defenderam a presença do ensino religioso nas escolas públicas, mas as evangélicas foram majoritariamente contrárias a sua presença. Assim se manifestaram tanto o representante da Igreja Batista quanto o da Igreja Universal do Reino de Deus. A Assembleia de Deus, a maior instituição evangélica do Brasil, se dividiu. O Ministério Madureira (sede no Rio de Janeiro) foi pelo ensino público laico, enquanto o Ministério Belém (Pará) foi a favor. Os espíritas, representados por um doutor em Educação, foram contra o ensino religioso nas escolas públicas, posição que presbiterianos, metodistas e luteranos (não representados na audiência) haviam tomado por ocasião dos debates sobre a concordata Brasil-Vaticano.
Atenção: não se pode avaliar a posição dos evangélicos pelo pastor Marco Feliciano (PSC-SP), proponente do projeto de lei 309/2011, sobre a formação de professores para o ensino religioso nas escolas públicas. O substitutivo será defendido, convenientemente, pelo deputado Pedro Uczai (PT-SC). Ou seja, direita e esquerda, evangélico e católico em bizarra aliança.
A cruzada pelo ensino religioso nas escolas públicas teve sua culminância na Base Nacional Curricular Comum, cuja proposta apresentada em setembro de 2015 inseriu essa disciplina como parte da área de Ciências Sociais. Deixando de lado o absurdo epistemológico de tal inserção, vale registrar que o fato de a BNCC incluir uma disciplina determinada pela Constituição como facultativa terá o efeito previsível de fazê-la mais facilmente facultatória, como de fato o é nas escolas onde a direção e o corpo docente se juntam no intuito proselitista que juram não ter. A propósito, os dados da Prova Brasil de 2013 são claríssimos: 70% das escolas públicas de Ensino Fundamental ministravam aulas de ensino religioso. Dentre as que o faziam, 54% confessaram exigir presença obrigatória; e 75% não ofereciam atividades para os alunos que não queriam assistir a essas aulas. É preciso prova mais contundente da obrigatoriedade de fato de uma disciplina facultativa de direito?
Foram quatro católicos militantes que elaboraram os “eixos” e os “objetivos de aprendizagem” do ensino religioso para cada um dos nove anos do Ensino Fundamental. Todos do FONAPER, uma ONG oriunda de lobby da CNBB na época da Constituinte de 1987-88. Seus nomes estão na portaria do MEC que nomeou os especialistas elaboradores da BNCC, mas seu pertencimento institucional foi dissimulado pela filiação a duas universidades comunitárias catarinenses e uma universidade amazônica.
Segundo a proposta de BNCC, essa disciplina pretende ser uma espécie de mix de História, Filosofia e Sociologia – que pretensão! Filosofia e Sociologia fazem parte do currículo do Ensino Médio, não do Fundamental, onde o ensino religioso pretende ser seu simulacro. Mas só nas escolas públicas, porque as privadas estão livres da ação desses missionários. Ou seja, no Brasil, quem pode pagar escola privada, pode escolher entre ensino laico ou religioso, este nas escolas confessionais. Quem não as pode pagar, tem de submeter os filhos ao missionarismo dos lobbies religiosos, onde a disciplina é facultativa na lei, mas obrigatória na prática. (reveja os dados acima)
Nada disso aparece em sua verdade inteira. Diretores(as) dizem que o ensino religioso, quando oferecido, é facultativo, “porque a escola pública é laica”. Os(as) professores(as) dessa disciplina dizem que não seguem nenhuma religião específica, apenas ensinam o que há de comum a todas elas, como se isso existisse; ou então, que apenas ensinam valores – não a liberdade de crença, com certeza. A moda, que já foi auto-representar o ensino religioso de inter-confessional, passou para não-confessional. Mudam os prefixos, permanecem as raízes proselitistas. Não obstante dissimuladas, como convém.
Aliás, os pesquisadores do ensino religioso nas escolas públicas, que adotam uma postura crítica, sabem que dissimulação é o obstáculo maior para o conhecimento do que efetivamente se passa nelas nessa matéria. Será que é por que, no fundo, diretores(as) e professores(as) sabem que estão fazendo coisa errada ou ilegal? Por isso dificultam e até mesmo impedem nossas visitas, e mentem descaradamente nas entrevistas?
A resposta à pergunta que me foi dirigida foi apresentada de modo incisivo acima, mas vale uma síntese. A importância de se discutir o conceito de laicidade (por que não na Anped?) reside no fato de que a capacidade dos confessionalistas de dissimular os intentos proselitistas leva a ressignificações impertinentes. Laico acaba travestido de confessional (os prefixos não fazem muita diferença, na prática). As dificuldades enfrentadas pela efetivação da laicidade do ensino público não estão apenas nos grupos conservadores, mas também nos progressistas – bizarras alianças! Pior do que isso, não provêm somente do Congresso, onde os conservadores e os reacionários são mais visíveis, mas se originam sobretudo de dentro do campo educacional, onde o caráter sacerdotal do magistério (até quando?) resulta na missão que os(as) professores(as) se atribuem de evocar a transcendência (como cada um a entende) nas orações antes das aulas, no agradecimento a Deus pela merenda e no ensino religioso em forma de disciplina curricular.
Por fim, não menos importante, os defensores doutrinários e os praticantes do ensino religioso estão semeando ventos. Mesmo falando de paz, essa disciplina traz o conflito inerente ao campo religioso para dentro das escolas públicas (como se não bastassem os existentes). E isso só vai aumentar – colherão tempestades.
Termino enviando uma mensagem aos(às) colegas de magistério, com a citação do filósofo francês Guy Coq, autor de Laicité et Republique – le lien nécessaire. Esse professor de IUFM (licenciaturas) e redator da revista Esprit (católica engajada), concebe a laicidade sem adjetivações, sem “mas” nem “meio mas”. Para ele, a laicidade provém do próprio Cristianismo, no seu sentido mais profundo. A conclusão do livro é que a laicidade não é uma opção, é ela que permite a liberdade de opção.
Luiz Antônio Cunha
Professor Emérito da UFRJ
Autor, entre outros, de Educação e religiões: a descolonização religiosa da escola pública, Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.