Num contexto de conquistas em risco (seja por cortes em investimentos e programas, seja por ofensivas conservadoras no congresso e sociedade, além de investidas de empresários e fundações), como analisar a questão da defesa da educação pública?
A luta pelo fim do Regime Militar no Brasil representou, especialmente no campo da educação, a esperança de construção de uma sociedade democrática na forma e no conteúdo, o que implicou no planejamento, na elaboração e na implementação de políticas públicas que garantissem a educação como direito social. O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 consubstanciou esse direito ao afirmar que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
A redemocratização do país, a partir dos anos de 1980, consubstanciou uma espécie de bloco democrático-popular que buscou pautar as políticas, programas e ações no campo da educação, o que resultou em experiências de planejamento democrático e de participação coletiva, que conceberam a educação como uma prática e um direito social. A demanda social pela educação pública de qualidade para todos(as) se ampliou no contexto de luta pela construção de um estado social. Lutar pela educação pública significava lutar pela ampliação da gratuidade e pela extensão da obrigatoriedade, sobretudo na educação básica. Além disso, demandou-se como princípio do planejamento educacional a gestão democrático-participativa e a ampliação da autonomia docente e escolar na elaboração do projeto político-pedagógico da escola. Isso se dá em um contexto de descentralização da educação em que estados e municípios criam e assumem mais efetivamente seus sistemas de ensino, tendo por base o princípio do regime de colaboração entre os entes federados.
A pauta de luta no campo da educação vai se ampliando no sentido de garantir a formação, valorização e desenvolvimento profissional, a extensão no ano letivo e da jornada escolar, de promover condições de oferta da educação pública, articuladas a uma perspectiva de qualidade social da educação, face às enormes desigualdades sociais e assimetrias existentes no Brasil. O padrão mínimo de qualidade foi estabelecido na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Todavia, a luta política não foi capaz de fazer com que o planejamento educacional assumisse essa diretriz, de modo a promover a sua efetivação, de modo articulado e igualitário, nos sistemas de ensino.
Não se pode esquecer, entretanto, que nesse mesmo contexto sempre se fez presente uma perspectiva liberal-capitalista de que a educação é um bem econômico e que cumpre um papel na composição da força de trabalho, especialmente no sentido de atender às demandas econômico-produtivas do capitalismo. Esse viés mercadológico vê a educação pela ótica do seu potencial na contribuição com a elevação da competitividade do país, no contexto da globalização econômica. Para isso, considerando as necessidades de qualificação da força de trabalho e de potencial de consumo, busca-se elevar, em certa medida, o tempo de escolarização da força de trabalho e da população em geral.
Nessa perspectiva economicista, a educação deve apoiar ao processo de acumulação capitalista, ao mesmo tempo em que promove a legitimação do sistema e a garantia da ordem e do controle social. Trata-se de fazer com que a educação acompanhe o desenvolvimento ou as demandas do capitalismo globalizado, mediante implementação de novas formas de regulação do trabalho e da vida social.
Nesse contexto, especialmente a partir dos anos 1990, as políticas educacionais, sobretudo nas áreas de avaliação, financiamento, currículo e gestão passaram a assumir uma perspectiva mais gerencial e de qualidade total, orientada por uma espécie de pedagogia da concorrência, dos resultados e da produtividade. Nessa direção, a avaliação vai se tornando mais classificatória e competitiva; o currículo vai assumindo uma lógica do desenvolvimento de competências e de capacidades individuais; a gestão vai assumindo uma perspectiva gerencial, incorporando os princípios, valores e técnicas da iniciativa privada, tais como eficiência, produtividade e controle sobre o trabalho escolar; o financiamento, mais descentralizado, vai criando outro modo de regulação dos sistemas, que se associa à execução de metas e demonstração de desempenho e performance; dos professores cobra-se maior desempenho, mediante a instituição de novas formas de controle profissional, de certificação de competências, de remuneração e incentivos por cumprimento de metas de desempenho.
Chegamos ao século XXI vivenciando essas tensões e essas perspectivas na luta em prol da constituição de políticas públicas, planejamento educacional e financiamento público da educação. Nos anos 2010 e 2014 vivenciamos no país duas conferencias de educação que buscaram resgatar o ideário que mobilizou a sociedade civil organizada nos anos da redemocratização do país. Essas duas conferências focaram na necessidade de instituir um Sistema Nacional de Educação (SNE) e de elaborar um e fortalecer um Plano Nacional de Educação (PNE) como seu articulador. O PNE finalmente foi aprovado em 2014 por meio da Lei n. 13.005, trazendo metas e estratégias importantes para o avanço da educação como direito social no país.
Há, todavia, grandes riscos e desafios para a instituição do SNE, dentre os quais se pode destacar quatro deles que estão interligados: o primeiro é o do diálogo político que é necessário entre os entes federados, incluindo as entidades civis organizadas, o Fórum Nacional de Educação (FNE), o Congresso Nacional etc., no contexto de ampliação e de (re)definição do regime de colaboração, tendo em vista a oferta de educação de qualidade para todos (as); o segundo é o da formatação do marco legal, das instâncias, dos mecanismos e processos que vão dar a institucionalidade necessária ao SNE, de modo a permitir os avanços necessários; os entes federados precisarão assumir o firme propósito de promover maior articulação e colaboração até chegar à materialidade do SNE que queremos construir em prol da melhoria da educação brasileira; em terceiro lugar, um grande desafio será garantir a efetividade da meta 20 do PNE, que prevê a ampliação dos recursos para a educação até chegar aos 10% do PIB, sobretudo num contexto de crise econômica; O quarto desafio é mantermos o PNE como referência das políticas e do planejamento educacional, trabalhando para sua efetivação, de modo articulado aos planos estaduais e municipais. O PNE foi uma grande conquista da sociedade brasileira e não pode ser letra morta como foi o anterior.
Assim, a institucionalização do SNE implica ampliar o diálogo no sentido de construir consensos em prol da educação de qualidade para todos (as). O PNE como referência deve ser o balizador das políticas, programas e ações nas três esferas administrativas de governo. De fato, a fragmentação, a descontinuidade, a desarticulação e a falta de uma institucionalidade para uma efetiva colaboração têm impedido que milhões de brasileiros tenham o direito de acessar e permanecer numa educação escolar de qualidade, sobretudo na faixa etária obrigatória (de 4 a 17 anos). O PNE e o SNE são fundamentais nessa direção, pois implicam num planejamento para 10 anos e com meios, mecanismos e processos para sua efetivação.
Todos esses riscos e desafios se multiplicaram, em razão dos cortes em investimentos e programas, das ofensivas conservadoras da grande mídia, de grande parte dos empresários e, especialmente, dos poderes legislativo e executivo. Caberá à sociedade civil organizada, mais uma vez, lutar em prol do Estado de direito, da uma democracia plena, da constituição do estado social, da democratização do fundo público e da ampliação dos direitos sociais básicos, a exemplo da educação pública de qualidade social para todos e todas.
- João Ferreira de Oliveira - Universidade Federal de Goiás (UFG)
Presidente da Anpae