A edição n.70 da Revista Brasileira de Educação (RBE) traz, entre seus textos, o artigo "A Escola Superior de Guerra e a formação de intelectuais no campo da educação superior no Brasil (1964-1988)", de Jaime Valim Mansan. Em entrevista ao portal da ANPEd, o autor - que fez doutorado e pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande Rio Grande (UFRGS) - fala da pesquisa, das lacunas ainda a serem preenchidas em investigações sobre o período e mesmo da importância de se refletir sobre o alcance dessas ações exatamente no momento em que passamos por uma séria fragilização da democracia nacional.
Em seu artigo, você faz um estudo sobre a Escola Superior de Guerra (ESG) e a formação de intelectuais no campo da educação superior no Brasil (1964-1988). De que forma a escola militar e a doutrina por ela gestada tiveram influência na conformação do regime de 1964 e das políticas educacionais implementadas por aqueles governos?
Primeiro precisamos definir o que está sendo chamado aqui de intelectual, pois há vários sentidos associados a esse termo. Em diferentes contextos históricos, algumas pessoas acabam, por diversas razões e através de uma série de meios, exercendo cotidianamente a difusão ou a crítica sistemática de certos conjuntos de ideias e valores, favorecendo dessa maneira um ou mais grupos sociais em detrimento de outros. Quando falo em intelectual, é basicamente a isso que me refiro. É claro, as relações simbólicas não se resumem a esse aspecto, são processos muito mais complexos.
A ESG, desde que foi criada, logo depois do fim da II Guerra Mundial, estabeleceu para si alguns objetivos fundamentais. Um deles era a elaboração de uma doutrina de segurança nacional e de desenvolvimento para o Brasil. Isso foi feito ao longo dos anos 1950, com a Doutrina de Segurança Nacional, reelaborada ao longo das décadas seguintes.
Outro objetivo central da ESG era a difusão desse conjunto de ideias e valores junto a lideranças efetivas ou potenciais, tanto no âmbito militar quanto no civil. Já nos anos 1950, isso foi feito intensamente pela escola. Entre 1950 e 1959, pelo menos 360 civis e 532 militares foram por ela formados, sendo que, dentre os civis, 53 eram professores. Depois, entre 1960 e 1963, a ESG formou outros 164 civis (dentre os quais, 28 docentes) e 270 militares. Várias dessas pessoas tiveram participação intensa e influência decisiva no rumo dos acontecimentos políticos do país ao longo da década de 1950 e nos conturbados anos que antecederam o golpe de 1964.
Quando Jango foi deposto e os golpistas, civis e militares, tomaram o poder, as ideias que haviam sido forjadas na ESG nos anos anteriores foram adotadas como diretrizes políticas, inclusive para a educação. Aliás, a educação teve naqueles anos uma especial importância para eles.
A forma como a educação foi tratada por aqueles governos ilegítimos estava em consonância com tudo isso. Daí as intensas perseguições e expurgos nas universidades imediatamente após o golpe, a forte perseguição ao movimento estudantil de oposição à ditadura, a institucionalização da doutrinação, via educação moral e cívica, anos depois, e assim por diante. A doutrina e as ações da ESG forneciam o respaldo ideológico para tais violências, caracterizando-as como ações de “combate ao inimigo interno”. Todo mundo que se opunha à ditadura (e até mesmo quem não se opunha, mas poderia vir a se opor, com algum grau de probabilidade), inclusive nas instituições de educação superior, estava sujeito a ser enquadrado nessa categoria e, assim, ser perseguido e punido arbitrariamente, apenas por pensar diferente daquilo que era estabelecido como “normal” por aqueles que haviam assumido o poder com a instauração do regime ditatorial.
Foto: Jaime Valim Mansan, autor de artigo publicado na edição n.70 da RBE
A militarização se dava tanto na ocupação da burocracia estatal quanto na imposição de um ethos militar em diversos espaços do Estado e na própria sociedade civil. Como isso ocorria na prática?
Isso ocorria de diferentes maneiras. No caso da ocupação de postos na burocracia estatal, tratava-se, como é evidente, da indicação de militares para exercerem cargos na administração pública, de modo autoritário, sem que a legislação e os ritos admissionais específicos fossem observados e, em muitos casos, após a destituição arbitrária do funcionário ou da funcionária que até então desempenhava aquela função. O objetivo, evidentemente, era aprofundar a capacidade de controle social do grupo no poder, infiltrando nos mais diversos setores do Estado indivíduos que, na prática, responderiam a seus superiores na hierarquia militar, e não na instituição civil onde estavam atuando. Esse processo ocorria até mesmo nas polícias civis, com a designação de militares para o comando das secretarias de segurança pública estaduais, por exemplo.
Outra forma de militarização da sociedade, bem mais sutil e difícil de ser estudada, correspondeu à imposição ou adesão a determinados valores, hábitos, ideias e modos de fazer e de pensar tipicamente militares, relacionados com as dinâmicas próprias das Forças Armadas.
Outras tantas maneiras pelas quais, naquela época, ocorreu a militarização da sociedade brasileira são, ainda hoje, grandes lacunas na historiografia específica. Embora alguns pesquisadores e pesquisadoras tenham contribuído com avanços importantíssimos nesse sentido, ainda estamos longe de conhecer de modo satisfatório a complexidade daquele processo, sobretudo no que diz respeito à influência de práticas e valores militares no cotidiano das pessoas. O hábito de obedecer a uma ordem hierarquicamente superior, sem questionamento ou diálogo, é um bom exemplo. Evidentemente, esse não é um hábito exclusivamente militar. Portanto, em alguns casos, a influência do ethos militar poderia funcionar como reforço de ideias ou hábitos já presentes.
No caso da militarização da educação, Suzeley Mathias desenvolveu trabalho pioneiro, ao qual somaram-se outros posteriormente. Entretanto, ainda há muito a ser feito nesse sentido, particularmente no que diz respeito à influência do ethos militar no cotidiano escolar e universitário. Também fazem falta pesquisas que analisem a ocupação de postos burocráticos intermediários e o efeito disso, a médio e longo prazos, nas dinâmicas interpessoais e no âmbito intraorganizacional. Isso não pode ser satisfatoriamente compreendido a não ser por meio de estudos de caso, de modo a que análises comparativas sincrônicas e diacrônicas sejam possíveis, viabilizando assim a definição de um perfil do processo com grau de complexidade e acuidade satisfatórios.
É importante reforçar esse ponto pois, sobretudo entre pesquisadores que estão iniciando sua aproximação com a literatura sobre a ditadura militar, pode surgir uma sensação de que esse campo de estudos está esgotado, em função da grande quantidade de trabalhos já publicados sobre a temática. Essa é uma ideia equivocada. De fato, muito já foi dito sobre a ditadura de 1964, mas muito ainda está por ser pesquisado.
Qual o vínculo da ESG com o Ensino Superior, tanto em termos de pensamento quanto da atuação docente e ocupação de cargos? isso se aprofundou após o golpe de 1964?
Desde suas origens, a ESG sempre esteve vinculada à educação superior no Brasil. Não há nada de muito surpreendente nessa vinculação, inclusive por tratar-se de um instituto de altos estudos. O que se destaca, no caso da ESG, é que, a partir do golpe de 1964, sua influência sobre as políticas (incluindo as educacionais) assume uma intensidade e centralidade que nenhum instituto análogo à ESG (e nem ela própria) jamais teve. É claro que essa influência tinha seus limites e oscilou ao longo do período 1964-1988. Mesmo assim, foi marcante.
A educação sempre foi considerada pela ESG como um setor estratégico. Nos anos 1960, essa percepção foi bastante reforçada, particularmente após a intensificação do discurso de combate ao “inimigo interno”, o qual encontraria nos estudantes um alvo fácil, segundo aquela visão. A educação também era percebida como decisiva para os propósitos de desenvolvimento por eles buscados, pois forneceria mão-de-obra qualificada e, no caso da educação superior, formaria boa parte do que propunham que fosse a “elite dirigente” do país.
Os vínculos entre a ESG e a educação superior também ocorriam por meio dos vários egressos da escola militar que atuavam como professores universitários. Isso já era feito antes do golpe, mas intensificou-se depois de 1964. Com a imposição da educação moral e cívica no final dos anos 1960, que atingiu desde o que hoje é o ensino fundamental até a pós-graduação, a inserção na educação superior do pensamento formado na ESG foi aprofundada ainda mais. Egressos daquela escola militar passaram a ministrar, nas universidades, cursos de EPB - Estudos de Problemas Brasileiros (esse era o nome da disciplina obrigatória de educação moral e cívica na educação superior). E vários militares formados na ESG passaram a elaborar manuais de educação moral e cívica, que foram amplamente difundidos em escolas e universidades.
O papel da ESG na formação de intelectuais é dado como fato em sua pesquisa que, no entanto, aponta estar em fase inicial para uma maior verificação do grau de alcance desses sujeitos como perpetuadores de determinadas visões de Estado e na perseguição a "comportamentos desviantes". Em que sentido têm caminhado suas pesquisas sobre esse segundo momento de investigação?
Se considerarmos “intelectual” como aquilo que mencionei inicialmente, na resposta à primeira pergunta desta entrevista, não há dúvida de que a ESG atuou como formadora de intelectuais antes, durante e depois da ditadura militar. Era (e continua sendo) um de seus objetivos fundamentais. Evidentemente, há hoje diferenças significativas, relacionadas com as revisões que foram sendo implementadas na doutrina, ao compasso das mudanças nos contextos nacional e internacional após o fim da ditadura militar e da Guerra Fria. Mas a ideia de formar pessoas que possam atuar em consonância com ideias e valores considerados pela escola como fundamentais para a segurança e o desenvolvimento do país permanece.
Na pesquisa que fundamenta meu artigo, a ideia é verificar como isso se deu no caso da educação superior durante a ditadura militar. Já sabemos que a ESG formou pessoas que atuaram como intelectuais nas instituições de educação superior. O que ainda falta fazer é delinear o perfil de atuação de cada um desses indivíduos, para que possamos compreender melhor a dimensão do impacto da ESG sobre a educação superior nesse aspecto específico.
Por enquanto, a pesquisa infelizmente está parada. Após o fim de meu contrato como professor substituto na Universidade Federal do Rio Grande, na metade de 2016, ficou difícil dar continuidade a ela, pois tive de concentrar-me na busca por trabalho. Foi bem na época do golpe contra a presidenta Dilma, e a situação do país, que já estava difícil, ficou terrível… O campo da pesquisa científica no Brasil está, desde então, passando por um momento complicadíssimo, reflexo da crise política gerada pelo golpe e do descaso com que a educação e a ciência têm sido tratadas desde então. Fica difícil, em função de tudo isso, estabelecer alguma previsão para retomada da pesquisa. Espero poder fazer isso em breve, mas infelizmente ainda não sei quando acontecerá.
Qual a importância de esclarecer essas questões atualmente?
Observe o momento dramático que estamos vivendo no Brasil. Nossa democracia está em crise, direitos conquistados a duras penas estão sob ameaça, o impacto da crise econômica sobre os mais pobres é muito mais intenso que o sofrido por outros segmentos e, em meio a tudo isso, discursos intolerantes e historicamente falaciosos são cada vez mais recorrentes, especialmente entre adolescentes. É um contexto extremamente preocupante. Em momentos assim, o conhecimento histórico assume especial importância, porque, sem conhecer o passado, não conseguimos compreender o presente. E, sem compreender o presente, sem compreender o mundo em que vivemos, abre-se a porta para o desespero, para as explicações falaciosas e manipuladoras, e nossa capacidade de pensar de maneira autônoma fica prejudicada.
A corrupção, por exemplo, é um problema endêmico em nosso país. Não foi criada por este ou aquele partido. É anterior à própria República, e nunca se restringiu à política partidária. Mas o desconhecimento da própria história, somado a campanhas midiáticas de grandes empresas de comunicação, faz com que muita gente acredite que a corrupção é um problema recente no Brasil, que foi criado por este ou por aquele partido, que não existia no tempo da ditadura, e assim por diante. Esses discursos falaciosos difundem-se com uma rapidez impressionante, ainda mais com a facilidade comunicacional que as redes sociais oferecem hoje em dia. Em tempos como os que estamos vivendo, o ensino e a pesquisa em história, junto à disseminação desse conhecimento via extensão e através de mecanismos de popularização da ciência, podem fazer a diferença quanto ao futuro da sociedade em que vivemos.
Ainda que fora do escopo de sua pesquisa, você acredita que essa atuação da ESG tenha deixado suas marcas na Educação e sociedade contemporâneas? Tendo em vista que termos como "subversão", "elite dirigente" e "comportamentos desviantes" volta e meia aparecem no discurso de representantes do Estado (ainda que civis).
Não há a mínima dúvida de que a atuação da ESG deixou suas marcas na educação e na sociedade contemporâneas. Mas não sei se a suposta presença dessas expressões em determinados discursos hoje em dia é o ponto chave aqui. Penso que, para compreender o efeito da ação da ESG sobre a sociedade brasileira e sobre o campo da educação superior no país, é preciso um olhar mais amplo.
A ESG foi um instrumento por meio do qual alguns grupos elaboraram e difundiram uma visão de mundo que justificava, através de um discurso inscrito na lógica da Guerra Fria, a preservação no país, a qualquer preço, de uma estrutura social consolidada ainda nos tempos da Colônia. Nessa visão de mundo, estava definido o normal e, por tabela, o desviante, o errado, o anormal. Esse conjunto de ideias e valores bebia em fontes diversas, algumas muito antigas, e foi usado ao longo de mais de duas décadas para tentar justificar a imposição de um regime ditatorial e a promoção cotidiana de um sem número de violências contra a maior parte da população brasileira. A educação superior foi, nessa época, atacada ferozmente, e alguns dos mais brilhantes professores e pesquisadores do país tiveram de se refugiar no exterior por anos - sendo que nem todos voltaram ao Brasil. Muitas vidas foram destruídas. Muitas e diversas violências foram cometidas. Mas a doutrina formada na ESG e difundida por seus diplomados apresentava tudo isso como medidas necessárias ao desenvolvimento e à segurança do país. Felizmente, nem todos se calaram diante de tudo isso. Nem todos deixaram-se pautar pelo medo - inclusive nas universidades.
Hoje em dia, processos análogos ocorrem cotidianamente, dentro e fora dos espaços escolares e universitários. Penso, por exemplo, nos casos em que o legítimo direito de manifestar-se publicamente contra a destruição do próprio país em função de interesses escusos é referido por meio de palavras como “baderna”, “vandalismo”, “agitação” e outras que cumprem, atualmente, a mesma função que a palavra “subversão”1 cumpria, há algumas décadas, aqui no Brasil e em outros tantos lugares. Fica o convite para refletirmos sobre quem produz e quem difunde essas leituras de mundo, e a quem elas servem…
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Nota:
1- Uso da noção de subversão antecedeu o próprio golpe, como assinala manifestação do então governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, na madrugada de 31 de março de 1964, ao referir ao discurso que Jango realizara no Automóvel Clube na véspera:
"O Presidente da República, como notoriamente demonstram os acontecimentos e sua própria palavra, preferiu outro caminho, o de SUBVERTER as Forças Armadas, o de postular ou, quem sabe, tentar realizar os propósitos reformistas com o sacrifício da NORMALIDADE constitucional, escolhendo planos SUBVERSIVOS que só interessam à minoria desejosa de sujeitar o povo a um sistema de tirania que ele repele". apud SOUTO MAIOR, A. História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Companhia Editora NAcional, 1968. p. 413.