No dia 22 de março, o jornal Estadão publicou artigo da professora Roseli Fischmann sobre a morte brutal da auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, arrastada por um carro da PM no Rio de Janeiro. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo, Roseli aborda no texto a carga simbólica desse caso no país. "Como não ver que o corpo dilacerado é cada mulher, cada pessoa negra e pobre, dilacerada na violência que não há como prever a que virá, o tecido social dilacerado, a democracia dilacerada, a sociedade dilacerada?"
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Integrante do GT 17 da Anped e já tendo sido a conferencista de abertura da 31ª RA da Anped (Caxambu, 2008), Fischmann tem ampla atuação no país e no exterior em prol dos direitos humanos - integrou o grupo acadêmico da América Latina que auxiliou na redação da Declaração Mundial sobre a Tolerância (Conferência Mundial da Unesco, 1995) e por três anos o Júri Internacional para o Prêmio Unesco de Educação para a Paz (inclusive como presidente, em 2001), foi uma das redatoras do documento "Plano de Ação de Dez Pontos" para a América Latina e Caribe. No Brasil, escreveu o documento Pluralidade Cultural, dos PCNs, e o documento Manual Direitos Humanos no Cotidiano, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (hoje Secretaria Especial dos Direitos Humanos), da Presidência da República, em conjunto com a Unesco e a USP.
Corpo dilacerado
Roseli Fischmann
As imagens de Claudia Silva Ferreira (seja honrada sua memória) sendo arrastada por mais de 300 metros falam por si. Difícil encontrar palavras. A síntese de Marcelo Gomes, no Estadão (18/3/2014), vem em apoio: "O corpo da mulher ficou batendo no asfalto e foi parcialmente dilacerado". Como não ver que o corpo dilacerado é cada mulher, cada pessoa negra e pobre, dilacerada na violência que não há como prever a que virá, o tecido social dilacerado, a democracia dilacerada, a sociedade dilacerada? Direitos de cidadania, direitos humanos, tudo dilacerado?
Trata-se de mais uma manifestação do apartheid racial e social que ainda vigora tacitamente no Brasil, terrível, pois jamais dependeu de leis, apenas de sua omissão de um outrora recente, como da cumplicidade silenciosa de seus beneficiários. Por isso é importante lembrar que essa foi também a semana de celebrar, no dia 21, o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, estabelecido pela ONU, em memória ao massacre de Sharperville, na África do Sul. Em 27 de janeiro foi celebrado o Dia Internacional das Vítimas do Holocausto. Em 8 de março recordamos as lutas históricas das mulheres nas 130 tecelãs carbonizadas ao reivindicar reduzir de 16 para 10 horas de trabalho diário. Como é possível chegar a esses níveis de barbárie?
Muitas podem ser as análises das responsabilidades do Estado, que frequentemente legitima, ao burocratizá-lo e perdoá-lo, o extermínio não previsto em lei. A condenação de PMs envolvidos no massacre do Carandiru sinaliza gestos praticados pelo Judiciário de responsabilização da barbárie. Mas há algo que permanece nas falas de quem tenta justificar a brutalidade, em especial quando se dirige às camadas desfavorecidas e empobrecidas da população.
Konrad Lorenz, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1973, publicou o clássico A Agressão: Uma História Natural do Mal. Demonstra ali como a agressão - termo cuja utilização restringe a ataques intraespécie - ocorre entre os animais como reação a ameaça letal imediata e inevitável. Já o ser humano, explica Lorenz, tem recursos que os demais animais não têm.
No livro A Demolição do Homem, explicou que o ser humano, em vez de usar suas singularidades como espécie para cada vez desenvolver-se mais, usa contra si esses diferenciais; assim, aprofunda sua animalidade, enquanto abandona as possibilidades que sua humanidade lhe oferece. A competição intraespécie assassina a que se dedica, tanto física quanto simbolicamente, faz com que esqueça semelhantes possibilidades. Esses diferenciais? A capacidade da palavra, da expressão verbal; a intencionalidade, a consciência; a capacidade teleológica, de definir o propósito, a finalidade última de suas ações, individual e coletivamente.
Que não haja engano: o mergulho que o ser humano faz na animalidade não se dá apenas pelo que é brutal. Lorenz destaca como o ser humano utiliza sua expressão verbal para mentir, enganando os outros, sua capacidade teleológica para planejar a destruição de quem o incomode, e abandona a consciência, a intencionalidade, para agir mecanicamente ao praticar o mal, sem medir as consequências de seus atos.
Lorenz advoga que a violência pode dominar o ser humano de modo simples e direto, se deixá-lo vencer. Mas a alternativa é dar à educação a importância que de fato tem, de trabalhar para que o ser humano saiba lidar com o mal que há dentro de si. No caso do corpo dilacerado, no Rio, junto foi dilacerado o futuro das crianças e adolescentes que ali estavam, parentes e amigos da vítima. Como estão reagindo crianças e adolescentes que veem na TV e na internet, repetidamente, a imagem da barbárie? Que educação receberam os responsáveis por colocar a mulher vitimada em um porta-malas, como carga barata, tão barata que nem se precisa cuidar de como a acomodar?
Ao contrário dos que pregam que conteúdos da escola, para que tenham qualidade, sejam restritos a conhecimentos disciplinares, Lorenz propõe que toda educação deve trabalhar com conteúdos de ética e compaixão. Familiar a autores como Piaget e Kohlberg, acentua a relevância de conteúdos vivenciais, porque formação ética não se faz de pregação, mas de experiências de vida em conjunto com outros da mesma idade, diálogo mediado por um responsável (o que toma tempo), que se torna base de seres responsáveis, aptos a utilizar a palavra.
A compaixão de que trata Lorenz não se refere a dó, mas a compartilhar a dor, como também a alegria, do Outro, de todo Outro, seja o próximo, seja aquele com quem não se convive. Porque a dignidade humana merece ser cultivada e protegida por todos e todas, para todos e todas. Sem fortalecer essa educação, continuaremos a lamentar as múltiplas violências contra mulheres, gays, sem-teto, indígenas, negros, cidadãos empobrecidos, jornalistas e cinegrafistas mortos em e pelo seu trabalho. O dilaceramento poderá chegar a qualquer momento, mais próximo do que se imaginaria, e pouco resolverá então lamentar.