Texto produzido por Martinha Clarete Dutra dos Santos (UNICAMP) e José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti (UNICAMP) como colaboração para o Boletim ANPEd
Por muito tempo pensou-se que a Inclusão Escolar estivesse relacionada à presença de pessoas com deficiência naescola regular. Além disso, acreditou-se que cada grupo de estudante necessitava de um ensino específico, de acordo com sua condição de deficiência: visual, auditiva, física ou intelectual.Imaginou-se, ainda, que em um ambiente comum houvesse a necessidade de especializar o ensino para que cada grupo pudesse ser mais bem atendido em seus desprovimentos.
A ideia de escola expressa nessas crençastem a ver com a produção social de um ícone preconcebido de aluno, idealizado a partir de metas que a escola, como instituição normatizada, determina que devem ser alcançadas e apresenta os possíveis caminhos para tal. Todos aqueles que fogem do padrão estabelecido pelo dito “modelo ideal” são classificados a partir de suas supostas insuficiências, incapacidades.
Esse pensamento está alicerçado na produção social da identidade, tida como algo fixo, estável, categorizável. Nessa perspectiva, as pessoas são estigmatizadas a partir de atributos que nada dizem sobre o seu potencial para aprender, criar e lidar com os seus problemas cotidianos.Agrupar pessoasa partir de uma característica é desconsiderar a singularidade de um sujeito que não pode ser reduzido a um fragmento de uma categoria, à parte de um todo unificador.
De acordo com Schöpke (2012), a ideia de buscar a homogeneização das pessoas a partir da instituição de um ícone está relacionada ao pensamento platônico e à produção dos grupos a partir de características e atributos que supostamente representam os seres.Tem a ver com o pensamento aristotélico, que por não apreender a diferença, isto é, a expressão única do ser, a subverte na diversidade. Sendo assim, toda e qualquer forma de categorizaçãodos sujeitos está relacionada à “diferença entre”, que compara os seres.
Essa é uma das razões pelas quais a escola não consegue, de fato, se tornar um ambiente de todos. Nesse sentido, a diferença em si, conceito criado por Gilles Deleuze, deve ser entendida como a capacidade que cada pessoa tem de se diferenciar de si mesmo, não do outro. Este conceito desestrutura o pensamento moderno que tem como base a busca pela eficiência e pela verdade, põe em dúvida a identidade fixada e convida o nosso pensamento a superar a primazia platônica-aristotélica. Para Deleuze (2000) não há um protótipo a ser seguido, somos seres únicos.
Seria, nessa direção, o direito à diferença um princípio ético orientador da permanente criação e recriação de uma escola de todos? Esse é o questionamento que temos feito para pensar nas infinitas possibilidades de reinvenção da escola, tendo em vista a necessidade de acolhimento de todas as pessoas em sua singularidade. Nessa esteira, quais são os fundamentos filosóficos, políticos e pedagógicos capazes de problematizar os processos de categorização dos estudantes e de padronização do ensino?
Se os impedimentos em interação com diversas barreiras podem obstruir a participação plena e efetiva de cada um, significa que manter as identidades de determinados coletivos como causa que justifique dado impedimento seria estratégia profícua para deter quaisquer movimentos na tessitura de um novo paradigma.A ação disruptiva está, pois, estampada na subversão de toda e qualquer rota identitária que possa aprisionar o curso de uma educação transcriadora e inclusiva em sua base.
Nesse eito, recheado de inquietudes, não há lugar para subterfúgios enformadores. O versejado despreparo institucional para a radical transformação ratifica a crença na igualabilidade dos seres e de seus percursos educacionais. Nesse universo, pretende-se debitar na conta do outro a culpa pela sua falta de alinhamento com o parâmetro estabelecido. Para legitimar esta lógica, alguns mecanismos, como a figura do especialista, são forjados com pleno êxito. Então, fortificam-se os aspectos binários, categorizantes e hierarquizadores, que autorizam o especialista a inventar a incapacidade do outro. O incapaz passa a se constituir como meio rentável e como condição para a existência de inúmeros especialistas. Sob esta lógica, o outro, o diverso, o menos válido, aquele que ocupa o lugar do apartado entra em cena para justificar a perenidade do especialista que, de antemão, inventa as mais variadas fórmulas de produção e reprodução da incapacidade do outro.
Então, quem são os incapazes? Aqueles que, de uma forma ou de outra, são social, cultural, biológica ou intelectualmente inadequados. De todo modo, isso é um julgamento de valor, porque quanto mais sofisticadas ficam as sociedades mais impedimentos são criados. Para quê? Simplesmente para que cada vez mais o outro se convença de que sempre será o outro distante, isolado, sem qualquer chance de se tornar parte de, se tornar um dentre todos.
Uma escola de todos é aquela que se deixa contaminar pela incerteza, que funciona como um disjuntor da existência.
Submeter a diferença à diversidade parece ser um método eficaz para fixá-la e distorcê-la. Certo é que pertencer à tribo é tranquilizante. Nela, o indivíduo está resignado, respondendo às normas fixadas. Por outro lado, renunciar ao gueto é assumir o ônus de uma existência difusa, indefinida, desacomodada, sem a falsa proteção prometida em troca do rótulo. Viver além da aldeia, de fato, traz uma angústia permanente. Neste vagar tudo é muito temporário, provisório e insolúvel. Flutua-se constantemente. Abrangente e totalizante é pertencer a um gueto, onde se sabe o lugar de cada indivíduo, nada lhe é exigido e coisa alguma dele se espera, além da mera representação do seu restrito personagem. Nesse delimitado picadeiro, a falta de esperança no futuro espanta a capacidade de rebelião no presente.
A diferença não pode ser sinônimo de degradação, aquém do humano, como se o heterogêneo estivesse fora da órbita humana e representasse perda de grau de valor, decretando o destino e a causa do mau fado. Se assim fosse, haveria um retorno à ideia fixa de que a própria natureza exclui aqueles que estão fora do espectro da normalidade impermeável.
Uma escola de todos é aquela que se deixa contaminar pela incerteza, que funciona como um disjuntor da existência. A cada novo problema surgem novas contradições, até se obter a certeza da impossibilidade de explicá-lo, o que provocaria o nascimento do devir outro.
Afortunadamente, o diálogo entre saberes é uma das estratégias de edificação de um novo tempo. Uma vez que toda experiência individual e social gera conhecimento, ao definir seu significado definem-se os critérios de sua validade. Portanto, conforme Ranciére (2007),o mais importante não é saber, mas perceber qual saber se ignora. Deixar-se tomar pelo que se ignora é permitir-se o redescobrir pela estranheza. O estranhamento consiste em assumir aquilo que não foi por nós compartilhado. Significa permitir-se vivenciar a intransitividade do verbo devir, que basta por si mesmo, que dispensa a pergunta típica da transitividade do verbo que pede complemento para se fazer entender. “Aquilo que devém, simplesmente devém” (SILVA, 2002, p. 65). Como não é possível precisar o que deviria, inócuo seria interrogar o que estaria por vir, porque é impossível qualquer imitação ou conformidade a um modelo. Como a singularidade se atualiza nos sujeitos e nos objetos, enfrentar a ocultação e o desvelamento é a razão da educação.
O alvorecer de um novo paradigma faz-se mediante questionamento do modelo vigente, de suas estruturas e organização.Por tudo isso, faz-se premente a difusão de trabalhos de pesquisa que criam conceitos fundamentais para a edificação de novos pilares, que sustentem a concepção de uma escola de todos. Tais estudos fundamentam a definição e formulação de políticas públicas indutoras de desejáveis mudanças de concepção.
Martinha Clarete Dutra dos Santos é Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob orientação da Prof. Dra. Maria Teresa EglérMantoan, pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), Mestre em Educação e Especialista em Educação Especial.
José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti é Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob orientação da Prof. Dra. Maria Teresa EglérMantoan,com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), Mestre em educação, licenciado em Matemática e em Pedagogia.
Referências:
DELEUZE, G. Platão e o Simulacro. In: Lógica do Sentido. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. pp. 259-271 (Estudos)
RANCIÈRE, J. O Mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Editora Autêntica, 2007.
SCHÖPKE, R. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
SILVA, T.T. da. Identidade e diferença: impertinências. Educ. Soc., ago. 2002, vol.23, no.79, p.65-66.ISSN 0101-7330.
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