Carta de repúdio da Associação Brasileira do Ensino de História (ABEH) à proposta de lei 867 de 2015 que inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o "Programa Escola sem Partido".
A educação brasileira, ao longo de sua história tem sido protagonista de muitos avanços no âmbito da democratização do país. Todavia, ao mesmo tempo em que conquistas importantes são efetivadas como políticas públicas, outras conquistas da sociedade brasileira são ameaçadas e até violadas em sua gênese por grupos, organizações ou até mesmo iniciativas individuais que tiveram seus projetos conservadores e antidemocráticos derrotados pela soberania popular em outros momentos de nossa história.
A proposta de Lei 867 de 2015, que tramita em instâncias legislativas nacionais, estaduais e municipais - bem como seus desdobramentos em projetos de Lei com configurações temáticas mais específicas - denominada pelos seus mentores de “Programa Escola Sem Partido”, é a mais contundente prova de que está em curso um golpe contra as instituições democráticas, pois ousada e sorrateiramente, tem sido apreciada e aprovada em alguns municípios brasileiros, numa explícita e desrespeitosa intenção de violar a lei máxima que rege a República brasileira, qual seja, a constituição brasileira, aprovada em 1988.
A constituição brasileira, título II, capítulo I, ao tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º, inciso IV define que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. No mesmo artigo, inciso IX, define que “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. No capítulo que trata da Educação, da cultura e do desporto, Seção I, Art. 206, determina que “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] II- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III- pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas”.
Apesar do que define a constituição, a proposta de lei 867 de 2015, propõe no artigo 3º “Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.
Além desse artigo, outras indicações de cerceamento da liberdade de aprender e de ensinar estão explicitamente afirmadas na proposta, negando os direitos constitucionais, como por exemplo o pluralismo de ideias. Decorre que esse documento, se aprovado como lei, coloca o professor na condição de réu, aquele que está em julgamento, podendo sofrer sanções, penas e prisão ao exercer um direito fundamental, a de liberdade de ensinar e de divulgar o pensamento, a arte e o saber. O professor é a autoridade que, mediante seus estudos, conquistou legitimamente e legalmente a função social de ensinar. Ele, como autoridade no seu campo de conhecimento, juntamente com os demais membros da comunidade escolar da qual participam pais, alunos, funcionários das escolas, secretarias municipais e estaduais de educação e o próprio Ministério de Educação, tem a prerrogativa de definir os conteúdos que devem ser ministrados na escola em que trabalha.
Portanto, não é o professor quem decide sozinho o que ensinar, mas todo um sistema de educação das instâncias responsáveis pela mesma. Nos parece, que a proposta é absurda, infundada, desnecessária e viola a Lei ao contrapor-se ao prescrito em legislação maior. Mais que isso, representa a criminalização da prática docente, a censura à liberdade de ensinar, a proibição de obras didáticas e não didáticas, a restrição à pluralidade de ideias no âmbito do conhecimento, a institucionalização de práticas que desrespeitam o mais valioso bem que uma geração pode legar aos seus descendentes, o amplo e irrestrito acesso ao saber produzido pela humanidade.
Para além dos aspectos ligados ao exercício da profissão docente, a proposta com seus desdobramentos faz tábula rasa de todo o processo de construção dos campos científicos e suas respectivas epistemologias. Desde o final do século XIX e ao longo de todo o século XX a epistemologia da ciência vem reconhecendo o caráter social, contingente e circunstanciado do conhecimento em todas as suas dimensões, o que significa dizer que não é possível pressupor nenhuma forma de conhecimento pautada no princípio da neutralidade. Especialmente quando lidamos com as Ciências Sociais partimos do pressuposto de que tais conhecimentos são pautados em permanente provisoriedade explicativa e que a elucidação de suas circunstâncias enunciativas diz respeito ao próprio ensino disciplinar de tais ciências na escola. Ignorar tal dimensão é ignorar o fato de que cabe à escola a transmissão da cultura e do conhecimento realizado em consonância com a evolução da Ciência. É advogar para a educação de nossas crianças e jovens, portanto, o irracionalismo, impedindo o desenvolvimento de condições favorecedoras do diálogo intercultural e do reconhecimento de múltiplas identidades e pertencimentos constitutivos da sociedade brasileira.
A proposta da Escola Sem Partido também se contrapõe aos princípios fundamentais que regem uma sociedade democrática ao tender criminalizar a prática partidária. Ora, não é a existência de partidos políticos que precisa ser combatida, pois os mesmos são condição essencial para uma sociedade democrática, mas sim o pensamento autoritário que se impõe na negação da pluralidade ideias. Pluralidade que é ameaçada quando se priva os sujeitos de conhecerem a diversidade de conhecimentos produzidos e disponibilizados a toda humanidade como propõe a Escola Sem Partido.
Diante do exposto, a Associação Brasileira do Ensino de História, repudia veementemente a proposta de Lei 867 de 2015 e se manifesta contrariamente à aprovação da mesma.
Associação Brasileira do Ensino de História
Agosto de 2015.