Por Bruno Falci (Jornalistas Livres) e Mariana Mollica - Portal Favelas em parceria com o povo KAMBEBA
O sociólogo e professor português Boaventura de Sousa Santos revela através de gesto ético e surpreendente no Programa “Lugar de Escuta” (assista abaixo), no dia 1º de maio, que assim como o vírus invisível traz à tona a incapacidade do Estado neoliberal de valorizar a dignidade e a sustentabilidade da vida humana, a inaudibilidade da voz da cacique Omagua-Kambeba, porta-voz dos povos indígenas da Amazônia, mostra o genocídio dos índios pelo governo Bolsonaro e a tendência à omissão de grande parte da esquerda brasileira em relação ao extermínio dos povos originários. Diferentemente de povos tradicionais de outros países da América Latina, que encontram mais ressonância e apoio, os povos indígenas brasileiros tem sido praticamente ignorados, inclusive pelos partidos de esquerda.
O debate promovido pela TV 247, em parceria com os Jornalistas Livres, entre a linguista e cacique Omagua-Kambeba Eronildes Fermun Omagua, mestranda no Museu Nacional/UFRJ, e Boaventura de Souza Santos, coordenador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, se tornou, em tempo real, um exemplo vivo do que é o processo de descolonização. A presença inaudível e invisível da cacique Kambeba, em função da instabilidade da conexão da internet, que impedia que ela fosse escutada por um público de aproximadamente 4.000 pessoas ao vivo, pedindo socorro para sua aldeia ameaçada de extermínio no interior do Amazonas, não foi, contudo, ocupada pelo ilustre convidado europeu com teorias.
O professor Boaventura, que acaba de publicar um livro no Brasil intitulado “A cruel pedagogia do vírus”, nos mostra que de nada adiantaria ele ocupar aquele espaço ausente com conceitos acadêmicos sem que pudéssemos escutar a própria cacique, já que sua voz é insubstituível e que nossa dificuldade de ouvi-la torna sua voz mais forte:
“Sua inaudibilidade é uma metáfora do que se passa no mundo da invisibilidade dos povos indígenas. Trata-se do descaso e do abandono dos povos indígenas, que Eronildes está a nos relatar. Esta é uma velha questão do governo brasileiro, de não considerar os indígenas urbanizados. Só são indígenas aqueles que vivem em regiões remotas. É a situação das dificuldades em que está Eronilde, que não tem sequer internet. É muito grave também, em Manaus, onde existem 1.255 famílias, indígenas urbanas, cujos meios de vida é vender artesanato nas ruas”.
Enfatizando que o dia do trabalhador não é apenas o dia das lutas sindicais, mas também da resistência e sobrevivência dos povos que vivem do seu artesanato, Boaventura chega a dizer que não estamos acostumados e nem predispostos a escutar os povos indígenas e quilombolas, assim como os negros e pessoas que vivem nas periferias. Mesmo quando estamos dispostos a ouvi-los, há algo como uma linha abissal que separa visíveis de invisíveis, “como essa experiência está nos mostrando através de uma aula empírica”, há um abismo radical “que nos impede de chegar a eles”.
Os entrevistadores, então, passam a tentar encontrar novos dispositivos para ouvir Eronildes. Numa tela de WhatsApp filmada pela tela do dispositivo que transmitia o Programa, com o esforço de todos, a conexão falha acaba por fazer parte da transmissão do conhecimento a ser obtido pelos ouvintes; considerar toda a precariedade permite que possamos finalmente escutar seu pedido de socorro: “Tem invasores entrando nas nossas terras, nos ameaçando de morte. Eles estão aproveitando o silêncio da quarentena. Aqui no alto do Solimões, comunidade de Santa Terezinha, Município de São Paulo de Olivença, Amazônia, não tem exames, não tem protocolo, não tem medicina da saúde indígena que chega até nós. Não chega a informação para que os nossos povos não saiam, porque sair e ter contato com outras pessoas pode nos infectar. Além do Coronavírus, estamos morrendo de fome. Vivemos no meio da floresta, mas como fomos dados como índios urbanos, sofremos discriminação. Falo aqui em nome de todos os povos da Amazônia.”
A cacique pede que escutem a sua dor com uma palavra na língua Kambeba - Asemúyta - “somos parentes pela dor”. Ela retoma um conhecimento de seus ancestrais, que foi alçado à categoria de conceito apreendido pelos pesquisadores, educadores e lideranças populares no último congresso da ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), durante a apresentação da oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), no dia 22 de outubro de 2019, na UFF de Niterói. Naquela ocasião, a plenária de cientistas e educadores, que contavam com a presença de Boaventura, interrogavam o que fazer diante do desmonte da Universidade e da Educação brasileira e aprenderam com a sabedoria dos movimentos sociais que a pergunta sobre como transformar medo em esperança pode extrair uma resposta do conhecimento Kambeba primoroso: “cada golpe que sofremos, nos permite um laço de parentesco que nos anima para a luta!” No momento atual de pedido de ajuda, a UPMS lança uma nota em apoio ao povo Kambeba.
As infecções do Coronavírus estão acontecendo entre os povos indígenas, provocadas por invasores como garimpeiros e criadores de gado, e, principalmente, por missionários de confissões evangélicas que insistem em invadir territórios indígenas em polemicas missões de evangelização e espalham doenças. A saída dos médicos cubanos, 90 por cento dos quais atuavam em áreas periféricas, com pouca infraestrutura, incluindo as populações indígenas e tradicionais, segundo o Conselho Indigenista Missionário, e a chegada da pandemia criam um cenário caótico.
O professor da Universidade de Coimbra conclui afirmando que a última palavra deve ser da cacique:
“Quem mais sofre com isso são os povos indígenas, os mais invisibilizados. Eu, neste momento, estou aqui a tentar ser porta voz da Eronilde, que é minha parenta e eu tenho orgulho de estar aqui com ela, com a cacique do povo Kambeba. É realmente um dia extraordinário, ela nos traz força extraordinária. O contato com ela é uma fonte de vida. Estou aqui a esperar por ela para que ouçam o que ela tem a dizer”.
“Em nome dos indígenas do Brasil e da Amazonia Legal”, a cacique Kambema nos pede ajuda: “Queremos uma solução imediata. Pedimos às autoridades do Ministério Público Federal, que dê resposta aos documentos sobre a nossa educação diferenciada que foi retirada pelo poder municipal, protocolados pelo nosso povo desde 2017, ainda hoje sem resposta, o que deixou o povo Kambeba vulnerável diante dos ataques dos invasores, que estão nos perseguindo e nos ameaçando de morte. Pedimos que o DSEI do Alto Solimões faça o cadastro do nosso povo, que na nossa língua era chamada AKARIWAZAU. Com a chegada da igreja católica trocaram o nome sem nos consultar e atualmente se chama “Santa Terezinha”. Quando pedimos ajuda à CTL que representa a FUNAI de São Paulo de Olivença, o coordenador fala não poder resolver nada. Estamos atualmente sem direitos sociais. Diante da situação de pandemia pdeios apoio para que cobrem das autoridades nossos direitos e para agilizar com urgência cestas básicas e material de higiene e limpeza. Nós temos direitos à saúde, à informação e a educação. Pedimos a demarcação urgente das nossas terras Tuyuka Omagua Kambeba que estão sem providências no setor Reginal e Federal da FUNAI. Quero agradecer a todos vocês que estão nos ouvindo, à UPMS, aos jornalistas livres, ao 247, ao Boaventura que me ouve lá de Portugal e a todos que possam nos ouvir: somos raízes dos nossos ancestrais, que enfrentaram todo tipo de doença e que resistem há mais de 500 anos. Nós vamos sofrer, mas vamos seguir em frente. Direto do Amazonas, avante parentes, Assemúyta!”.
Clique aqui e apoie o povo Kambeba através de uma vaquinha que será recebida pela cacique Eronildes, faça a sua parte para a sobrevivência dos povos indígenas brasileiros.
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