Representantes da ANPEd e da UNE defenderam a universidade gratuita para todos e atacaram problemas estruturais, como a Emenda Constitucional 95, o não cumprimento do PNE e o privilégio aos mais ricos. "Redução de desigualdades só se faz numa modificação tributária, tributando quem tem mais, e não usando a universidade"
reportagem: João Marcos Veiga
A Câmara dos Deputados recebeu nesta terça-feira (22) audiência pública que debateu o tema "Pagamento da Universidade Pública pelas pessoas mais ricas". A atividade da Comissão de Educação ocorreu por requerimento (nº 355/2017) do dep. Caio Narcio (PSDB-MG). A mesa principal contou com economistas, professores e representantes de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), União Nacional dos Estudantes (UNE), Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) e Movimento Brasil Livre (MBL). A ANPEd foi representada pela professora Cristina Helena Carvalho (UnB), integrante do GT de Ensino Superior da Associação.
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A representante da ANPEd, também doutora em economia e professora da Faculdade de Educação da UnB, lembrou que o princípio da gratuidade na universidade pública é algo "conquistado a duras penas" na Constituição Cidadã de 1988 e presente na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 - pontuando que a cobrança de mensalidades em escolas públicas remonta ao governo Getúlio Vargas. A partir de dados e pesquisas, também mostrou como o perfil dos estudantes das instituições de ensino superior mudou consideravelmente desde 2004, promovido pelo acesso e permanência dos mais pobres nas universidades e expansão, citando programas como REUNI, PNAs, PROUNI, FIES e a Lei de Cotas. "Houve uma aproximação do perfil sócio-econômico daqueles que frequentam as IES do perfil da população brasileira", diz a pesquisadora. "Ainda há uma sobre-representação das camadas mais pobres, mas isso diminuiu muito." Apesar do agravamento do quadro financeiro da educação superior pública, ela argumenta que a cobrança de mensalidades para os mais ricos não vai resolver a questão, com estimativa de cobrir apenas 4% dos custos mensais de uma universidade. Cristina Helena Carvalho ainda pontuou a grande possibilidade de endividamento estudantil resultante de ação como essa, ressaltando que em países como EUA, Inglaterra e Chile a movimentação tem sido no caminho oposto, de restituir a gratuidade do ensino, de forma a combater desigualdades sociais - e Escócia e Alemanha (desde 2014) oferecem educação gratuita. Para a pesquisadora, há ainda que se definir melhor o conceito de "rico", se pelo viés patrimonial ou de renda. "Redução de desigualdades só se faz numa modificação tributária, tributando quem tem mais, e não usando a universidade", argumenta a professora defendendo a educação superior como bem público.
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Professor do Insper e da USP, Naércio Menezes trouxe dados e análises para balizar a importância do investimento em educação, "única variável que leva ao aumento da produtividade e crescimento com menor desigualdade e pobreza". Segundo o economista, mesmo com um processo de inclusão dos mais pobres na universidade nos últimos 20 anos, com programas e ações de diminuição de desigualdades, não foi alterado o quadro de produtividade no Brasil, ao contrário do que ocorreu em países como Estados Unidos e Coréia do Sul. Nesse sentido, ele citou dados do IBGE que mostram a renda mensal das famílias de alunos da rede pública federal (R$ 1,5 mil) ainda superior a do restante da população (R$ 1 mil). Considerando a penúria atual das universidades públicas, Menezes defende a cobrança das mensalidades para os mais ricos. "Eu considero o atual sistema injusto. Famílias ricas colocam seus filhos em colégios privados e depois na educação pública." Segundo cálculos do economista, se metade dos alunos da USP pagassem 2 mil reais por mês de mensalidade, isso representaria 30% do orçamento da instituição. "Não vai resolver, mas ajuda", argumenta.
Convidado para a mesa, o coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL). Para Kim Kataguiri, a Educação Superior Pública virou uma "verdadeira máquina de transferência de dinheiro dos mais pobres aos mais ricos", dizendo que a chance de uma família pobre (até dois salários mensais) entrar na universidade é de 2%, enquanto de um núcleo familiar com renda de 20 mil reais essa chance é de 40% - sem citar, no entanto, a fonte destes dados. Para Kataguiri, o problema da educação no país é estrutural, atingindo a escola básica, com crianças reféns de colégios precários e municípios sem verba (defendendo assim o pacto federativo). Para o representante do MBL, o recurso arrecadado com a cobrança de mensalidade dos mais ricos deveria compor um fundo destinado à educação básica e aos municípios. "Acho que quem tá defendendo que os que pode pagar não pague, estão na prática defendendo essa desigualdade", concluiu Kim, ainda questionando a qualidade da educação no país e a eficácia de programas recentes, enaltecidos em falas anteriores.
Em sua fala, a presidente da UNE, Mariana Dias, lembrou que a União Nacional dos Estudantes completará 80 anos, com um histórico de compromisso com o debate e com a educação. "A afirmação de que a universidade pública não deu certo prejudica o Brasil", afirma, pontuando a radical mudança no perfil de uma universidade elitista como se via na década de 1990 para a atual. Para Dias, a raiz do problema estaria nos cortes de investimentos previstos para os próximos 20 anos, com a Emenda Constitucional 95 de teto para os gastos públicos, reformas diversas que atingem sobretudo os mais pobres e manutenção do privilégio aos mais ricos. "Precisamos sim é de reforma tributária. Injustiça e desigualdade é rico não pagar imposto de carro de luxo, de não ter taxação de fortunas, é pobre pagar mais impostos do que o rico, é ter um governo que aprova teto de gasto público, que será responsável por assassinar a educação pública no Brasil, que inviabiliza o PNE." Segundo a presidente da UNE, a proposta não mexe nos reais problemas do país, desconhece a luta pela aprovação e implementação do Plano Nacional de Educação, em risco atualmente, e ainda pode abrir precedentes para a cobrança da escola pública como um todo futuramente. "Pra nós a universidade pública e gratuita é inegociável", afirma.
A fala seguinte da mesa, de Bruno Coimbra, representante da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) voltou a defender a cobrança da universidade pública para os mais ricos. O assessor jurídico fez referência aos EUA, onde os egressos costumam fazer vultosas contribuições às instituições em que estudaram. No caso do Brasil, a contribuição no momento do estudo seria uma possibilidade importante. "Ser um recurso pequeno não quer dizer que se possa abrir mão perto da situação das instituições", defendeu. Coimbra ainda pontuou que a cobrança diretamente na universidade pública seria um caminho mais fácil e curto para obter o recurso, ao invés da taxação de fortunas. Por fim, o representante da ABMES, citando a fatia de 75% de alunos do país matriculados em universidades privadas, defendeu cursos mais voltados ao mercado como contrapartida à cobrança.
Representando a OAB-SP, Luiz Fernando Prudente do Amaral também argumentou a favor da cobrança como meio mais fácil e direto para obter recursos novos para a educação. O professor universitário lembrou que todos presentes na mesa, apesar das divergências, buscavam a melhoria para a educação e que ele, particularmente, acredita na qualidade atual do ensino superior público - que seria comprovado pela procura dos mais ricos por ela. "A cobrança não vai fragilizar, só agregar", defendeu. Amaral, por outro lado, pontuou a necessidade de melhor definir questões como a destinação dos recursos e a extensão ou não da cobrança à pós-graduação.
Após as falas estabelecidas para os convidados, a audiência passou a ouvir deputados e membros da sociedade presentes à sessão. A proposta de cobrança de mensalidade para os mais ricos foi defendida pelos parlamentares Sóstenes Cavalcanti (DEM) e Pedro Cunha Lima (PSDB), que igualmente fizeram críticas ao contexto atual da educação depois de 13 anos de governo do PT. Já nas falas dos deputados Flavinho (PSB), Pedro Uczai (PT), Amauri Teixeira (PT), Glauber Braga (PSOL), Alice Portugual (PCdB) e Aliel Machado (Rede), foi reiteradamente criticada tal proposição num momento de desmonte social representado pela EC 95. A cobrança de mensalidades seria assim uma ação paliativa injustificável para se alterar direitos previstos na constituição, podendo dar abertura a novas flexibilizações ao caráter público e gratuito da universidade. As falas, sobretudo, relembraram a importância de defesa do PNE como ação concreta de defesa da Educação Brasileira. "O ponto de partida é mudar a distribuição tributária. Esse é o princípio, não esse discurso demagógico e superficial", argumentou o deputado Pedro Uczai. Autor do requerimento de convocação da audiência, o deputado Caio Nárcio saudou a diversidade de posicionamentos e dados para subsidiar o debate em torno da questão sem ações precipitadas.
Depois de debates acalorados, principalmente entre o coordenador do MBL e a presidente da UNE, Cristina Carvalho voltou a frisar a posição da ANPEd e a possibilidade real de recursos para a Educação através de progressividade de imposto de renda e revisões de renúncia fiscal e dedução de impostos praticados atualmente. Para a ANPEd, a defesa do princípio da gratuidade é constitutivo do direito à educação e das condições de construção de uma sociedade com igualdade e justiça social.