Alfabetização: o conhecimento da escrita como forma de existência e de resistência | Colaboração de texto | por Cecilia Goulart (GT 10|UFF)

por Cecilia M. A. Goulart/UFF – Vice-coordenadora do GT 10 Alfabetização, leitura e escrita

O ponto de partida do ensaio são breves aspectos de minha experiência de vida familiar, escolar e de formação profissional pelo que repercutem a vida de tantas outras pessoas. Foram recuperados no momento em que preparei o memorial para progressão a professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (2016). Na sequência dessa introdução, o que se destaca é o fluxo da vivência como professora e como pesquisadora, coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagem, cultura e práticas educativas, e o delineamento de uma proposta política-pedagógica de alfabetização.

Entrar na escola pública, aos quase sete anos de idade, e nela permanecer até 18 anos, teve um sentido importante de abertura para o mundo - conhecer novas realidades, novos valores, novos modos de viver e conviver. As características conservadoras de uma família de classe média – mãe que terminou o curso primário com 15 anos, filha de operários da Fábrica Bangu, e pai, com curso técnico de desenhista, de família com escolarização um pouco mais alta, as irmãs eram professoras. O lugar que eu ocupava como menina/mulher nesta família dominantemente masculina, e, ademais, todo o contexto de constituição histórica da sociedade brasileira, foi em parte sendo diluído na experiência de vida coletiva, pública nas escolas. Senti na trajetória uma força viva, por vezes desorganizada, procurando vazão também pela ousadia que não me caracterizava no âmbito privado. O fato é que a escola desde muito cedo me marcou como um lugar para existir, resistir e ser reconhecida familiarmente e socialmente, pelos outros mundos que passei a habitar. Uma história sem fim. Ainda.

Entrei num espaço em que precisei, sem muita clareza, tomar decisões sobre quem e como eu desejava ser. Aos 11 para12 anos, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, uma escola enorme e cheia de atrações, eu era dona de mim, era o que eu sentia. Importantes lições de liberdade e de responsabilidade tive lá. 

Dou um salto para a experiência profissional com a proposta político-pedagógica do Programa dos CIEPs, em meados da década de 1980, depois de ter atuado como professora alfabetizadora e professora de língua inglesa em escolas municipais. Em tempos pós-ditadura militar, a proposta em construção nos levava a um profundo mergulho em estudos sobre educação e cultura, no interior de um contexto filosófico e político que incendiava aqueles que foram convidados-convocados pela alegria de recuperar tempos e vozes calados. Em meio a processos de formação coletiva, repensavam-se caminhos democratizadores para a sociedade, no entendimento de que a sociedade poderia ser diferente, que direitos e deveres poderiam ser discutidos e garantidos, no contexto do diálogo com associações de moradores e outros movimentos sociais. 

A proposta da equipe de Alfabetização em que eu atuava neste Programa se fazia e se abria no cenário da educação para todos e de todos. O título da minha primeira produção escrita, pequeno texto elaborado com o entusiasmo de participar de um trabalho tão instigante, fala da diretriz principal da proposta: Alfabetizar – partilhar com todos o que é direito de todos. Este texto acabou se constituindo como base para a definição da proposta de alfabetização que consta no chamado livro preto dos CIEPs, organizado por Darcy RIBEIRO (1986, p. 61-63). 

Um Programa arrojado que se construiu vinculando um projeto de educação a um projeto de sociedade, azeitado pelo desejo do exercício pleno da cidadania para todos. Mobilizou profissionais de várias áreas e instituições, movidos pelo entusiasmo da possibilidade de mudança social. E tinha como carros-chefe a proposta de alfabetização e de linguagem entendidas no contexto da cultura.

O sentido político da aprendizagem da leitura e da escrita era bastante claro, por um lado. Por outro, entretanto, não se concebia que, no contexto da perspectiva política, qualquer método alfabetizasse. Era preciso saber mais sobre este processo, outras questões estariam envolvidas. Na época, estudando os resultados da pesquisa de doutorado de Emilia Ferreiro, que foi orientada pelo próprio Jean Piaget, muitas questões apareciam, ao lado da valorização daquele estudo bem feito e com resultados importantes. Lacunas se revelavam. Sentíamos a necessidade de compreender melhor o que significa aprender a escrita e, principalmente, como as crianças aprendem a escrita como linguagem.

Desde a década de 1980, marco importante pelo acontecimento da abertura política, muitos e relevantes estudos foram realizados sobre o processo de alfabetização e o ensino da língua portuguesa na escola. A participação em palestras, debates e a realização de leituras de livros e artigos de pensadores de áreas como Filosofia, Sociologia, Antropologia, Educação e Psicologia, acarretaram mudanças no processo de amadurecimento intelectual e político da equipe de professoras, e foram fundamentais para a ampliação de conhecimentos mais abrangentes sobre a realidade da educação e da alfabetização no Brasil. Tais estudos condicionaram e determinaram novas formas de conceber especialmente o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita.

Conceber o processo de alfabetização como a apropriação da escrita no interior do processo geral de apropriação da linguagem nos encaminha para estudos sobre concepções de linguagem, em que dimensões sociais e históricas precisam ser consideradas. Tais estudos foram significativos para compreender o que não era compreendido anteriormente, e para questionar coordenadas de pesquisas como as de Ferreiro e outros. Além disso, o instigante encontro com um grupo de professoras em escola pública que, desde a entrada das crianças na classe de alfabetização, no início da década de 1990, trabalhava com textos produzidos socialmente, de várias origens, e legitimava, como textos, tanto as falas quanto as escritas das crianças, do jeito possível a elas naquele momento, como unidades linguísticas socialmente significativas. 

A análise da produção infantil nos levou a observar a complexidade de conhecimentos e da reflexão das crianças de 6-7 anos de idade, nos dois anos que acompanhei uma das turmas. Os textos escritos a que as crianças tiveram acesso, gerados no interior de práticas sociais, culturalmente determinadas, foram observados como matrizes de soluções para a produção de seus próprios textos, no início e ao longo do desenvolvimento do processo. A organização e o uso social da escrita foram estruturantes da produção. Os textos das crianças se produzem como efeito dos textos de seus interlocutores, tanto escritos, quanto ao vivo, falados, da professora e dos colegas. Os processos fundam-se na escrita social e convergem para a escrita social, por caminhos singulares.

Na continuidade, no grupo de pesquisa desde 2001, o estudo sobre os processos de aprendizagem da escrita com base em concepção de linguagem intrinsecamente ligada aos sujeitos concretos que a produzem, vem sendo construído, e vem-nos provocando todos os dias. A dimensão discursiva dos processos de produção de linguagem tem-se mostrado fundamental. Mikhail Bakhtin é o autor de referência, ao projetar como esteio do seu edifício teórico a concepção de linguagem entrelaçada à concepção de homem, de vida social e de mundo. O autor concebe as relações entre linguagem e sociedade, na perspectiva da dialética interna do signo, enquanto efeito das estruturas sociais. A linguagem, concebida como produto da atividade humana coletiva, reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica quanto a sociopolítica da sociedade que a gerou (Voloshínov, 1993, p. 227).   O diálogo como princípio constitutivo de toda construção do quadro conceitual e categorial dos estudos cria focos de aproximações e dispersões, e também cria e tensiona teórico-metodologicamente visões de sociedade, linguagem e sujeito. 

Na interação e na ação com professoras alfabetizadoras no grupo de pesquisa, temos avançado na investigação teórico-prática de como as crianças elaboram seus próprios discursos no processo de aprender a escrever, mesmo que ainda produzam grafias e leituras incipientes, inventadas, no esforço de dar conta do sistema alfabético de escrita, mas já dizendo suas palavras. Observamos como a escrita as leva a novas formas de dizer e conhecer o mundo, novas formas de neste mundo se reconhecerem e existirem. 

Continua a ser penoso saber que aproximadamente 8% da população brasileira são formados de analfabetos absolutos. Também continua penoso saber que quase 40% da população brasileira que passaram pelo menos quatro anos na escola realizam leituras comedidas, superficiais, mesmo de textos considerados simples. A aprendizagem da escrita precisa fazer sentido nas vidas das pessoas: o sentido da transformação, da renovação político-social, o sentido da resistência a um país que nega e sonega seus cidadãos. 

O grupo de pesquisa Linguagem, cultura e práticas educativas compreende que a ação alfabetizadora deve ser vivida como espaço de reflexão, de crítica e de criação do mundo, no encontro das muitas perspectivas culturais e valores com que as crianças, jovens e adultos chegam à escola.

Que sentido tem a aprendizagem da escrita para a maioria da população brasileira? Como, de um modo geral, aprendem a ler e a escrever? O que as pessoas fazem com a escrita socialmente? E, perversamente, o que a escrita faz com elas, além de ampliar o sentido de exclusão, de inadimplência, de dificuldade, de erro, como se a culpa fosse das pessoas que têm acesso limitado à escrita e dela se apropriam obliquamente. A escrita vista por um monóculo, afastada das condições sociais, culturais e políticas em que é produzida. Infelizmente, estas considerações continuam pertinentes, apesar de já termos avançado em práticas e nos estudos.

No movimento histórico de formulação de propostas e de currículos para o período de alfabetização (mas não somente), temos continuamente forjado explicações e saídas para os não enquadramentos nas formas (ô) e formas (ó) que advêm de certa pasteurização da língua. Estruturas de consolação, como diria Umberto Eco, e estratégias de compensação, como temos denominado nós, geradoras de políticas que estão longe de garantir a dignidade da experiência escolar, a que todos têm direito. 

A linguagem, matéria de que somos entretecidos em nosso processo de humanização, se manifesta em textos orais e escritos, impregnados e tensionados de múltiplos sentidos na dinâmica discursiva opaca do movimento social. Nossos discursos se coletivizam, se marcam e se singularizam com os e nos eventos de nossas vidas, histórias, experiências. Daí ressaltamos a importância de se considerar e trabalhar a chamada “variedade culta” da língua no contexto linguístico da pluralidade de variedades em que essa variedade chamada culta vive. A realidade linguística de um país não se resume a ela e este fato só a enriquece, diferentemente do que é em geral pensado e efetivado em salas de aula. A língua se atualiza permanentemente, movida por muitos fatores, abrindo sem cessar novos horizontes; apresentar um mundo e uma língua homogêneos aos alunos é sonegar informações; preterir e preconceituar variedades de discurso diferentes das que conhecemos ou que são valorizadas socialmente, também. 

A construção de um país democrático se faz na compreensão deste pluralismo linguístico que envolve tensões axiológicas, históricas fraturas sociais e culturais, a escola precisa assumir este papel político, a pública e a particular. Por meio da diversidade, trabalhar e enfrentar as desigualdades, tantas. O processo de alfabetização significativo deve ecoar a heterogeneidade de vários tipos e origens. Este é a nosso ver o trabalho mais político de que toda e qualquer escola deve se ocupar. Educamos pessoas com conhecimentos, sentimentos, fantasias, para aumentar a bagagem que toda e qualquer pessoa já traz para a escola; ampliar seu pertencimento, com a integração e o aprofundamento sucessivo dos sujeitos na vida social, que os tornam mais livres e criativos. Aprender para viver e participar de modo mais íntegro da sociedade e, do mesmo modo, para assumir a incompletude e finitude humana, enquanto mulheres e homens - uma educação responsável. 

A palavra é o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, produto da interação viva das forças sociais. Isto considerado, perguntamos: Em que práticas de linguagem os alunos estão aprendendo a ler e a escrever? Que mundo, que realidade de país, conhecem por meio dessas práticas? Nas propostas de trabalho para alfabetizar na escola, de acordo com Goulart (2013), a litania de textos, a litania de tudo persiste em prevalecer - a repetição para ordenar, catequizar -, no interior de uma sociedade pensada unidiscursivamente, que age para a submissão dos sujeitos pela negação do plurilinguismo de suas falas. 

Uma escola preocupada com o pragmatismo de resultados imediatos, como tem sido concebida em políticas públicas, não reconhece os processos de aprendizagem dos sujeitos, suas histórias, existências e experiências. Deixa de perceber a inteligência das crianças e seus pensamentos complexos. No processo de viver e aprender, as crianças articulam a imaginação, a realidade, a casa, a escola, a rua, o medo, a coragem, com os conhecimentos, transitando livremente entre saberes, sentimentos e sensações.

É animador saber que já existem muitas experiências em nosso país de escolas e professores percorrendo caminhos alfabetizadores em que a ciência, a arte, a filosofia, a política dialogam. E este trabalho não quer dizer espontaneísmo, não quer dizer que não haja método: há princípios e pressupostos orientadores de ações de ensino. Todos podem propor. Uma educação com cultura. Uma educação em que limites possam ser ultrapassados, palavras possam ser inventadas, em que vidas, valores e sentimentos possam ser discutidos. Um processo de alfabetização discursivamente orientado por ter como mola mestra seus sujeitos e suas realidades de vida. Cada vida é única, insubstituível. E temos perdido muita gente, de várias maneiras. Pela alfabetização, também.

No GT 10 – Alfabetização, leitura e escrita, diferentes perspectivas teórico-metodológicas são postas à mesa e debatidas. Essa é uma delas.

Referências

GOULART, Cecilia M. A. Política como ação responsiva – breve ensaio sobre educação e arte. In: FREITAS, M. T. (Org.). Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.69-93.

RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.

VOLOCHINOV, V. N. ¿Qué es el lenguaje? In: SILVESTRI, A. & BLANCK, G. Bajtín y Vigotski: la organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993, p. 217-243.