Sei que estamos num momento tenso, mas algo de muito grave vem acontecendo nos últimos dias que merece que paremos tudo e prestemos atenção agora: a nossa liberdade de expressão (que espero que sobreviva a estas eleições) está sofrendo restrições inauditas e as universidades estão sendo censuradas. É um processo que segue o modo como as restrições de direitos e a erosão das democracias modernas têm geralmente ocorrido: por meio do “normal funcionamento das instituições” e, neste caso em particular, por determinações da Justiça Eleitoral.
Alguns dos fatos mais recentes: no dia 23/10, fiscais do TRE do estado do Rio de Janeiro (aparentemente sem mandado judicial) foram até o campus para retirar faixas com dizeres como “Direito UERJ antifascista”, “Marielle presente” e “Ditadura nunca mais”. No dia 24/10 houve determinação para que fosse retirada do portal eletrônico da Universidade Federal de São João del-Rei uma nota do Reitor daquela instituição (que dezenas de universidades brasileiras fizeram de maneira similar, inclusive a nossa UFPR) “a favor dos princípios democráticos e contra a violência nas eleições”. Ontem, em 25/10, foi proibida aula pública na Universidade Federal de Grande Dourados intitulada “esmagar o fascismo”. E também ontem, 25/10, à noite, juíza eleitoral determinou a prisão do diretor da faculdade de Direito da UFF, o colega Wilson Madeira Filho, se não fosse retirada da fachada do seu prédio da Universidade uma faixa em que estava escrito “UFF antifascista”. Fatos como estes se repetiram em no mínimo dezessete universidades brasileiras nesta semana.
A justificativa jurídica que embasa estas ações é sempre a mesma: o art. 24 da Lei 9.504/1997, que estabelece a proibição de publicidade eleitoral em órgãos da administração pública (que é obviamente justificada e razoável). Mas a questão é: todas estas manifestações configuram mesmo “publicidade” para algum candidato? Essas manifestações justificam ações repressivas e de força? E sobretudo: isso justifica jogar na lata do lixo uma das liberdades fundamentais mais caras que conquistamos do ponto de vista civilizacional, a liberdade de expressão?
Claro que haverá aqueles que vão justificar tudo isso pelo citado artigo 24 da lei eleitoral. Mas quero questionar aos censores se esse artigo de lei ordinária tem o valor de mandamento escrito nas tábuas sagradas de Moisés. Quero saber que valor se dá para o direito de liberdade de expressão previsto em todos os tratados e convenções do direito internacional aos quais o Brasil aderiu e reconheceu (Declaração Universal dos Direitos Humanos incluída, conforme seu art. 19). Quero saber afinal o valor que se dá para a Constituição Federal, que prevê o pluralismo político como fundamento da nossa República, que prevê liberdade de expressão e de opinião independente de censura ou licença e que, importante não esquecer, prevê também autonomia das Universidades.
Será que esqueceram que não tínhamos essas liberdades até há bem pouco tempo e que consagrá-las e colocá-las no epicentro do nosso sistema foi penoso e custou caro, inclusive em vidas?
Quero questionar aqueles que restringem liberdades sem pudor e com facilidade desconcertante, se defender a democracia, ser contra a violência, expressar-se contra a ditadura e contra o fascismo é fazer “publicidade” a favor de algum candidato. Até onde sei, a retórica dos dois candidatos atualmente em disputa tenta se afastar nesta reta final da campanha de uma identificação com a ditadura, a violência ou o fascismo. Se essas manifestações são confiáveis ou não, cabe à sociedade ponderar, na arena política; não ao juiz eleitoral.
A pergunta então é: quem vestiu a carapuça? Porque as autoridades do Estado (que mandam apreender, retirar, prender) vão além do discurso oficial dos próprios candidatos e se apressam em reprimir e calar vozes até dentro das universidades?
Mas quero sobretudo invocar o bom senso: em qual mundo se pronunciar a favor da democracia, contra assassinatos, contra o fascismo ou contra a ditadura pode ser considerado como irregularidade jurídica na propaganda eleitoral?
É hora dos juristas se entrincheirarem, hora daqueles que prezam pelas liberdades se atentarem.
Não podemos permitir que se jogue fora aquilo que nos é mais caro e que deve ser perene, comum, sagrado: a manutenção da nossa liberdade de poder expressar o óbvio. Não podemos deixar que as universidades – lugares por excelência do livre debate, do pluralismo, da formação de cidadania – sejam amordaçadas e censuradas (vamos insistir em dar o nome certo às coisas!).
Ou nos levantamos agora contra isto ou permitiremos que se cravem no País cicatrizes que vão nos custar caro no futuro.
Ricardo Marcelo Fonseca – Reitor da Universidade Federal do Paraná