A Associação Brasileira de Currículo (ABdC) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) publicaram nesta quarta-feira (9) nota de crítica ao edital do Plano Nacional do Livro Didático, PNLD/2019, anunciado pelo MEC no dia 30 de outubro, além de afirmarem que "cabe às entidades da área - já uma minoria na composição das comissões de avaliação das obras - abster-se da indicação de profissionais para atuar nessa avaliação que, considerando o escopo do edital, tende a aprovar obras contrárias ao que acreditam serem necessárias para uma escola pública, de qualidade e socioculturalmente referenciada". Segundo o texto, que pode ser lido a seguir, o edital, em consonância com outras políticas do atual governo federal, desqualifica a função docente, ao propor seu controle; limita as aprendizagens a conteúdos engessados, normatizados e precarizados; reedita a linguagem das “competências e habilidades”, historicamente superada pelos equívocos que possui e aos quais induz; propõe parâmetros e mecanismos de verificação de aprendizagem - erroneamente chamados de avaliação - obsoletos, tecnicistas e desrespeitosos com a necessária autonomia docente no exercício de suas funções. "Nosso entendimento é que o edital se volta, em última instância, à apostilização do ensino que, histórica e radicalmente, rejeitamos", afirma a nota da ABdC e da ANPEd, que ainda criticam a adoção da BNCC como referência para a produção das obras, a partir de um documento sequer aprovado. O posicionamento das entidades expõe os principais equívocos do edital.
Leia a Nota da ABdC e ANPEd sobre o Edital PNLD/2019 - ou acesse em PDF na Biblioteca Digital da ANPEd
O edital de convocação 01/2017 para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD 2019, publicado pelo MEC e voltado para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental I, traz, como outras tantas políticas em andamento no país, uma série de características que exige o posicionamento firme e contrário daqueles que defendem a educação pública de qualidade, laica e socialmente referenciada.
A despeito da importância do PNLD para a qualidade da formação oferecida aos estudantes da escola pública brasileira, consideramos o Edital 01/2017 – PNLD-2019 um equívoco. Embora o Edital contenha, em muitos momentos, discursos em defesa de uma escola plural, rica, criativa e promotora de múltiplas aprendizagens, ao definir algumas de suas prioridades e obrigatoriedades, não deixa margem à dúvida que a proposta, em consonância com outras políticas do atual governo federal, desqualifica a função docente, ao propor seu controle; limita as aprendizagens a conteúdos engessados, normatizados e precarizados; reedita a linguagem das “competências e habilidades”, historicamente superada pelos equívocos que possui e aos quais induz; propõe parâmetros e mecanismos de verificação de aprendizagem - erroneamente chamados de avaliação - obsoletos, tecnicistas e desrespeitosos com a necessária autonomia docente no exercício de suas funções. Nosso entendimento é que o edital se volta, em última instância, à apostilização do ensino que, histórica e radicalmente, rejeitamos.
Considerando as características e propostas redutoras, cerceadoras, padronizadoras e desrespeitosas com a diversidade nacional e curricular do país, a ABdC e a ANPEd entendem que cabe às entidades da área - já uma minoria na composição das comissões de avaliação das obras - abster-se da indicação de profissionais para atuar nessa avaliação que, considerando o escopo do edital, tende a aprovar obras contrárias ao que acreditam serem necessárias para uma escola pública, de qualidade e socioculturalmente referenciada. Reafirmamos a necessidade do diálogo sobre a política educacional se fazer de forma republicana, não apenas em comissões temáticas específicas, mas nas instâncias de deliberação da política educacional, mas com a recomposição do Fórum Nacional de Educação em sua constituição legítima e democrática. Assim, declinamos da indicação de especialistas para Comissão Técnica de Avaliação das obras neste momento e apresentamos, em exposição de motivos anexa, os aspectos que evidenciam nossas preocupações e razões de não indicação de especialistas.
Inês Barbosa de Oliveira (presidenta, pela AbdC)
Andrea Gouveia (Presidente da ANPEd)
08 de novembro de 2017
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA ABdC e ANPEd EM RELAÇÃO AO EDITAL PNLD/2019
O Edital 01/2017 – PNLD-2019 no que diz respeito à Educação Infantil, mesmo reafirmando seu caráter lúdico, determina que as obras, exclusivamente voltadas aos docentes, devem conter propostas concretas e completas de avaliação da aprendizagem, mesmo para as crianças de 0 a 3 anos de idade, o que contraria todo o debate recente que tem sido realizado no campo educacional sobre a educação da infância.
No Ensino Fundamental, o controle dos fazeres docentes está mais explicito em diferentes itens do edital: 1) ao prever que as obras venham acompanhadas de “material digital com conteúdo complementar” contendo “Planos de desenvolvimento bimestral/trimestral, Sequências Didáticas, Propostas de Acompanhamento da Aprendizagem e Material Audiovisual”, ou seja, além da produção da obra, os autores devem formular os mecanismos de controle do trabalho docente; 2) as editoras que tiverem coleções de Língua Portuguesa e Matemática devem comprometer-se com a formulação de “questões” para a constituição de um banco de itens do Ministério da Educação, atrelados aos descritores das Matrizes de Referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A quantidade de itens será definida pelo montante das vendas do material didático e é apresentado como “contrapartida à compra do material didático”; 3) Todo o material a ser produzido deve estar em conformidade com a terceira versão da BNCC (Anexo III-A do Edital) ainda não aprovada pelo CNE, e com previsão de “ajustes”, apenas para pequenas mudanças na proposta em tramitação. Esses elementos expressam uma tentativa de controle absoluto do fazer docente ao alinhar a obra didática à BNCC, aos processos pedagógicos e ao Saeb.
Nos anexos são expostos de forma mais clara os parâmetros que se estabelecem e que nos permitem compreender o edital como mais uma ação de enfraquecimento da autonomia docente, fortalecendo a lógica centralizadora e com os fins de homogeneização que pautam as políticas educacionais atuais. Destacamos outros pontos preocupantes:
O Anexo I, ao tratar das características do Manual do Professor para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, define que deverá ser utilizado pelo professor “para aperfeiçoar-se, expandir seus estudos, preparar os planos de aulas e de avaliação formativa e suprir as dificuldades de aprendizagem dos estudantes”. Tratar-se-ia de um Manual que visa, portanto, a se constituir como espaço de formação continuada docente ao mesmo tempo em que deve viabilizar alternativas em caso de não aprendizagem. No entanto, quando da apresentação dos critérios de avaliação do material, no anexo III, o que se constata é a obrigatoriedade de formulação de um Manual que descaracteriza a docência, tornando o professor um mero leitor/ aplicador, daquilo que deve estar detalhado, “mastigado" e inegociavelmente pré-definido no Manual. É um manual que não deixa nenhuma margem de criação ao docente, do início ao fim do processo. Dessa forma, tal descaracterização se espraia também para as concepções de formação de professores, indicada como sendo a aprendizagem de uma roteirização da prática a ser “aplicada”. Exige-se, ainda dos manuais, como forma de monitorar, gerenciar, controlar o trabalho dos professores, em todas as suas dimensões e instâncias apresentando uma lista detalhada aula a aula de como abordar estes itens, que engessam e definem toda a atividade docente. Não menos importante, o Manual deve propor (melhor seria dizer impor) “instrumentos para que o professor verifique se houve domínio das habilidades previstas no período”. Aqui também o detalhamento chega ao absurdo: cabe ao autor “Propor uma avaliação de 15 questões por bimestre ou uma avaliação de 20 por trimestre, sendo 60% de questões abertas e 40% de questões de múltipla escolha, para ser respondida individualmente em instrumento escrito com grade de correção e detalhamento das habilidades avaliadas. Este modelo refere-se a todos os componentes curriculares, com exceção do componente curricular Arte, cuja proposta de avaliação deve considerar as características peculiares ao componente; Apresentar o gabarito das avaliações propostas com orientações para o professor sobre como interpretar as respostas dos alunos e como reorientar seu planejamento a partir destes resultados.” E, reiterando o reducionismo que propõe todo o Edital, “Apenas para os componentes curriculares Língua Portuguesa e Matemática, fornecer ficha de acompanhamento das aprendizagens do aluno que possa subsidiar o trabalho do professor e também as reuniões do conselho de classe”.
No anexo III, que trata dos critérios para a avaliação das obras no que diz respeito à Educação Infantil, aparece, em negrito no documento, a busca de controle do espaço escolar nessa etapa por meio da produção das “aprendizagens esperadas [...] para que tenham condições favoráveis de ingresso no ensino fundamental”, contrariamente os objetivos amplos e plurais de formação da infância. Importa destacar que o Anexo III-A apresenta um link para a BNCC, isso significa que tal formulação remonta a perspectivas de uma EI preparatória, questão amplamente discutida e combatida pelos pesquisadores da área.
Ainda no Anexo III, no item “Considerações gerais – Características e objetivos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental”, surge um dos mais graves problemas do Edital: o reducionismo dos processos de aprendizagem ao ensino da Língua Portuguesa e da Matemática. Afirma o Edital que “os processos de letramento e alfabetização [...] assumiram a dimensão de elementos orientadores, tanto nas reorganizações curriculares para o primeiro segmento, quanto na formação docente continuada, ou mesmo em avaliações oficiais de rendimento, como a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) e a Prova Brasil”. Assim, percebe-se a intenção de se mutilar a escola e suas funções, subtraindo dos estudantes a possibilidade de observar a pluralidade de conhecimentos que advêm de diferentes áreas, bem como o diálogo entre elas. Além de fomentar uma compartimentalização empobrecedora, tal acepção colabora com uma lógica instrumental que se desenha para o ensino fundamental. Nesse sentido, o edital é explícito ao priorizar o contato sistemático, a convivência e a familiarização da criança com “objetos típicos da cultura letrada, ou seja, o reconhecimento das funções sociais tanto da escrita quanto da linguagem matemática”. Pior ainda, informa que os demais componentes curriculares devem se voltar à Língua e à Matemática e “a seleção e o tratamento didático dado aos objetos de conhecimento devem se pautar, predominantemente, pelas demandas dos dois processos; e sua apresentação, no contexto de grandes áreas do conhecimento, deve favorecer uma perspectiva de integração e articulação de conteúdos disciplinares”.
A apresentação dos critérios de avaliação das obras, no Anexo III, é mais clara e precisa sobre o que de fato se quer distribuir para TODAS as crianças do país: um material uniformizado a partir da BNCC (Anexo III-A), voltado à aplicação pura daquilo que os especialistas definirem como satisfatório, voltado apenas “para o alcance dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento da educação infantil e para o desenvolvimento das competências e habilidades envolvidas no processo de aprendizagem nos anos inicias do ensino fundamental”, que deve ser contemplado nas diferentes categorias de obras e independentemente do formato (disciplinar, interdisciplinar ou projeto integrado). Elabora-se o edital para avaliação e seleção de obras didáticas para uso pedagógico nas escolas públicas tendo como referência um documento que pode sofrer alterações e, até mesmo, no percurso, não ser aprovado, materializando por meio das obras didáticas, um guia para a aplicação, passo a passo, de uma BNCC não aprovada. Ao mesmo tempo, reifica-se uma versão do documento como a referência para a elaboração dos materiais didáticos, independentemente da finalização da sua elaboração e análise prevista por lei.